maio 17, 2012

Crioestaminal: da culpa irreversível

O novo anúncio da Crioestaminal é do ponto de vista ético, um desastre. Está escrito por forma a apelar a uma ideia na qual os autores do filme acreditam ser a única verdade possível, e dizendo a quem não concorda com eles, que estão completamente errados. Mas não se fica pela atribuição de valor moral, e apresentação da sua posição, e aqui é que fica ferido de morte o seu propósito, é que parte para culpabilização de quem não pensa como eles.


Vejamos em detalhe o artefacto, analisando o que pretenderia a Crioestaminal e o que temos realmente no filme em análise.

Público alvo da Crioestaminal: Futuros pais

Publico alvo do filme: Pais actuais, o futuro pai não se identifica com aquela criança nem com aqueles pais. Ainda não conceptualiza o filho naquela forma. Esta coisa de ser pai/mãe transforma-nos, e o anúncio está trabalhado para tocar quem já é pai, quem percebe o alcance do que está ali em questão.

Mensagem pretendida pela Crioestaminal: a preservação das células estaminais pode salvar a vida do seu filho no futuro.

Como é que esta mensagem chega ao público alvo acima identificado. Como se trata de um anúncio básico em termos de mensagem, sem amplitude de sentido, existem apenas duas leituras que são estimuladas, já que o climax do anúncio é baseado numa pergunta lançada ao espectador, que possui apenas duas respostas possíveis: "Mãe, Pai, guardaram as minhas células?"
“Há uma hipótese em 200 de um dia ser diagnosticado ao seu filho uma doença cujo tratamento pode encontrar-se nas suas células estaminais (...) uma doença como a Leucemia (...), nesse dia está preparado para responder a esta pergunta: Mãe, Pai, guardaram as minhas células? Crioestaminal, o futuro guarda muitos milagres”.
A) Reacção dos pais que depositaram as células num banco: Nós somos boas pessoas, sempre fizemos, e sempre faremos tudo para proteger os nossos.

B) Reacção dos pais que não depositaram as células num banco (por várias razões não guardei as células: falta de dinheiro, prática ainda não instalada, ou estudos ainda duvidosos): Nós não agimos bem, nós não somos bons pais. Não fiz aquilo que a sociedade esperava de mim, por isso sou mau pai

Mas isto vai muito mais longe do que esta simples dicotomia A e B. Porque este filme não está a falar de uma regra de boa-educação, de ensinar o meu filho a não cuspir para o chão. Quando eu vejo aquele grande plano daquela criança, com aquele texto, o que eu infiro, enquanto espectador, é que eu, não apenas falhei como membro da sociedade, mas eu sou o único culpado por o meu filho poder vir a morrer. O filme funciona como o anúncio da salvação, mas não é uma salvação que se possa caminhar para, que se possa construir algo no futuro. É uma salvação que está apenas ao alcance dos eleitos, dos que preservaram as células. Todos os outros devem ser excomungados.

Mãe, Pai, guardaram as minhas células? 

Ou seja, o que um pai sente quando vê este anúncio, é o poder da culpa irreversível. Poucas coisas na vida são irreversíveis, por isso a morte se opõem tanto à vida, porque esta é definitivamente irreversível. Ora o que anúncio diz é que o facto de não ter colocado as células estaminais num banco, assinei a sentença de morte do meu filho. Porque eu não posso fazer nada, não existe nada que eu possa fazer para reaver aquelas células. Terei de carregar para o resto da minha vida junto do meu filho o fardo da culpa irreversível.

Este não é um anúncio criado pela Crioestaminal, mas criado por Pedro Bidarra, um dos criativos de publicidade mais conceituados em Portugal para a Crioestaminal. E acredito que o estado de negação da Crioestaminal em não aceitar retirar o anúncio deva ser receita do próprio Bidarra. Mas nada disto nos admira. Quem já uma vez disse que devíamos mudar a cor da nossa bandeira, porque o facto de ter cores demasiado africanas nos tornava menos produtivos, eficientes, no fundo preguiçosos como os africanos!!!

E mais ainda, para quem também já disse que os cursos de Comunicação e Publicidade seriam "cursos inferiores", porque sobre a publicidade nada há a dizer, são apenas "coisas pequenas e engraçadas", isso quando são bons, porque quando são maus "nada há a dizer"!!! Vê-se aqui e agora o resultado cabal da sua visão do mundo, a tal que este diz ter aprendido nos livros. Vê-se neste filme, o resultado do auto-didatismo quando misturado com a falta de humildade.


Mas isto não pode ilibar a Crioestaminal. Esta tem por obrigação, e no mais curto espaço de tempo, de tirar a campanha do ar, e fazer um pedido desculpas público à sociedade portuguesa.


Declaração de interesses: tenho dois filhos, do primeiro não guardei as células por ser caro e por os estudos ainda serem dúbios quanto ao seu valor efectivo. Do segundo, por sentir culpa do que tinha acontecido com o primeiro, e imbuído de um sentimento de que as células de um irmão podem ajudar a salvar, guardei as células na Crioestaminal.

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