julho 22, 2012

"Dear Esther", essência dos videojogos

Dear Esther (2012) representa a consagração da especificidade expressiva dos videojogos. É verdade que tem sido atacado por muitos dizendo que este não se trata de um videojogo, que em vez de fazerem um jogo deveriam ter feito uma curta-metragem, mas sobre isso só posso dizer que é totalmente errado. Dear Esther (DE) é uma experiência de entretenimento apenas possível graças à linguagem dos videojogos. 


Começando pelo básico do que nos é dado a ver em DE, se transformado em cinema não daria para mais do que um filme de cinco minutos, ora o que aqui temos é traduzido numa experiência com cerca de 90 minutos, o equivalente a uma longa-metragem. Deste modo é preciso perceber o que acontece nestes 90 minutos, quais são as especificidades desta experiência que leva a manter-nos totalmente imersos e engajados ao longo de 90 minutos.


O que temos em DE está além da mera passagem de mensagem, assim como está além da mera execução de tarefas e ultrapassagem de obstáculos. DE assenta fundamentalmente num processo de criação de uma experiência emocional estética. Sendo que aquilo que DE nos faz experienciar seria impossível com qualquer outro medium. Construímos uma relação com o espaço, na interacção com esse espaço por meio da navegação, mais do que com a história que nos é narrada.


Aliás, reflectindo à posteriori sinto a narração em DE como a letra de uma música. É relevante, mas serve mais de complemento do que de essência. A essência está na experiência sensorial que se constrói na base das notas musicais, na sua sucessão e ritmo. Em DE é igual, o que sentimos é construído na base da experiência da interacção com o espaço, na navegação através da sucessão de espaços, nas suas formas e padrões. 


É muito interessante ver as pessoas revoltarem-se contra DE dizendo que não se trata de um jogo, quando este usa um dos elementos fundamentais dos videojogos, o labirinto. Em termos formais de design existirão assim tantas diferenças entre DE e Pac-Man? É verdade que não existem inimigos, e a experiência de morte é aqui muito menos premente, mas o objectivo é o mesmo, passar pelos sítios predeterminados para poder continuar a avançar. Nesse mesmo sentido o design da navegação de DE não difere do design de Doom, Zelda ou Myst, onde o que se pretende é criar no jogador uma vontade de saber como será o mundo/nível seguinte.


Não é por acaso que no mundo dos videojogos a arquitectura tem enorme relevância, porque a experiência é grandemente fruto da navegação no espaço. Jenkins disse mesmo que em vez de contadores de histórias, os game designers deviam ser apelidados de “arquitectos de narrativa” porque os “game designers não contam simplesmente histórias; eles desenham mundos e esculpem espaços”[1]. O que nos move na interacção com estas obras não são tanto os eventos e as causas, mas a exploração espacial. Como nos dizia Murray [2],
“The new digital environments are characterized by their power to represent navigable space. Linear media such as books and films can portray space, either by verbal description or image, but only digital environments can present space that we can move through.”
O que está em questão é o tratamento dado a esse espaço, que pode ser meramente descritivo ou assumir um carácter dramático, como assume em DE. Deste modo o que acontece em DE não difere daquilo que acontece em Em Busca do Tempo Perdido de Proust ou mesmo em O Senhor dos Anéis de Tolkien, porque o aqui temos é uma descrição total e em detalhe do espaço da história. O espaço é a história, e DE apresenta um dos espaços mais detalhados até agora vistos. É difícil olhar em nosso redor em DE e não pensar na sua beleza, na sua subtileza e comparar isto com a “madalena" de Proust. A beleza está no detalhe, está no processo, está no caminho, está no que vem a seguir. A condição de eficiência de uma narrativa literária é conseguir manter o leitor interessado ao ponto de se manter num constante questionamento sobre o que vai acontecer a seguir. Nos videojogos a narrativa espacial assume o questionamento sobre o espaço que vamos encontrar a seguir, como será, o que teremos de fazer, por onde iremos passar, que forma terá, aonde nos levará.


Dito tudo isto, acredito em DE como o objecto que demonstra todo o amadurecimento da arte dos videojogos, no sentido em que deixou de ter complexos, em que se assumiu e se concebeu num objecto integralmente dedicado à sua força expressiva – a navegação no espaço. DE é o que Myst deveria ter sido, porque todos aqueles enigmas e puzzles contribuem muito pouco para a essência da expressividade, identidade e dramaticidade narrativa. A sua presença ali é mais uma imposição da linguagem tradicional de jogo, do que da nova linguagem dos videojogos.


A linguagem criada pelos videojogos está claramente enraizada na ideia de jogo, mas também na ideia de história, no entanto a sua essência resulta num novo todo, não numa mera soma de ambas.


[1] Henry Jenkins, “Game Design as Narrative Architecture” in Noah Wardrip-Fruin and Pat Harrigan (eds.) First Person: New Media as Story, Performance, Game MIT Press, 2004,  
[2] Janet Murray, “From Additive to Expressive Form", in Hamlet on the Holodek: The Future of Narrative in Cyberspace, MIT Press 1998, 

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