maio 04, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume III

O Lado de Guermantes” parece encerrar um primeiro ciclo no romance “Em Busca do Tempo Perdido”, no início Marcel tinha-nos dito que a sua casa, em Combray, apresentava dois lados, com dois caminhos de passeio possíveis, o de Swann e o de Guermantes. Assim, e depois de termos passeado com Swann no primeiro volume, neste terceiro volume visitámos e conhecemos em profundidade o lado que leva à família, de linhagem real, os Guermantes. Marcel deixou a adolescência e com ela as duas paixões do segundo volume, é agora um rapaz novo, conhecedor de arte e por isso uma figura burguesa interessante de convidar para os salões mais restritos da Paris do século XIX, podendo assim seguir a sua nova paixão, uma das mais relevantes figuras da família Guermantes.


Este terceiro volume segue a mesma lógica dos precedentes dois, com uma escrita irrepreensível, uma composição majestosa, e descrições de minúcia. À medida que a obra avança sinto que dois registos narrativos assumem a sustentação estrutural: por um lado os diálogos entre os personagens, que servem a criação de conflito e intriga, encenando o lado mais tradicional da figura do romance; por outro, os monólogos do narrador, em primeira pessoa, que se interrogam sobre o todo e o nada, assumindo um carácter profundamente filosófico. Aliás vem esta minha constatação de encontro a um registo encontrado num dos cadernos de Proust, no qual antes de iniciar a escrita se interrogava se deveria escrever um romance ou um ensaio para dizer aquilo que tinha em mente.

Aliás, esta semana fui intercalando este terceiro volume com o livro "Consciousness and the Brain: Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts" (2014) no qual, o investigador Stanislas Dehaene vai citando amiúde Proust, essencialmente no modo detalhado como este descreveu os processos da consciência humana. Deixo duas dessas citações:
“I do not mean, of course, that we can always accurately express our conscious thoughts with Proustian accuracy. Consciousness overflows language: we perceive vastly more than we can describe.” Stanislas Dehaene (2014)

“A person . . . is a shadow which we can never penetrate, of which there can be no such thing as direct knowledge." Marcel Proust in "The Guermantes Way", citado por Stanislas Dehaene (2014)
Em Busca do Tempo Perdido” é assim uma obra maior da literatura mundial, não apenas pela imensidão da beleza que a escrita de Proust lhe imprime, mas por tudo o aquilo que consegue questionar, usando para tal um registo que apenas hoje, em pleno século XXI, compreendemos ser o melhor modo de comunicar. Hoje o "storytelling" é requerido como fundamental em todas as áreas da comunicação, da gestão à medicina, como forma de fazer passar a informação, de conseguir estabelecer envolvimento. Mas se voltarmos atrás no tempo podemos ver que isto não é um exclusivo de Proust, nos anos 1980 tivemos um grande comunicador, longe de possuir o brilhantismo literário de Proust, mas capaz de ombrear nessa arte da mescla entre histórias e informação, neste caso ciência, falo de Carl Sagan e “Cosmos”. Sagan usou esse modelo para penetrar em nós e incutir o bichinho da ciência, por seu lado Proust usa o modelo para nos incutir o gosto pela argumentação e discussão filosófica, com um registo orientado à estética.

Proust é assim, antes de romancista, um esteta, alguém profundamente interessado na forma - estruturas, elementos, categorias - das ideias e conceitos. Diverte-se a brincar com o registo do texto, através do qual aprofunda até à essência a desconstrução da realidade humana. Ler Proust é assim não apenas ler um desvelar de um enredo, as peripécias de Marcel, mas também um desvelar do mundo e dos seres que o habitam. É conhecer mais aqueles que nos rodeiam, aquilo que nos rodeia assim como aquilo de que somos feitos. Ler Proust, é ler-nos a nós a mesmos.

O livro termina com dois declarados ganchos narrativos, a “ira” de Charlus e a doença de Swann, que nos instigam a continuar na leitura para o volume IV. Ficam algumas frases,
“Palpitava com a mesma angústia que, num passado distante, sentira em tempos, num dia em que, criança pequena, a perdera no meio da multidão, uma angústia não tanto de não a encontrar como de sentir que ela me procurava, de sentir que ela estava a pensar que eu andava à procura dela; angústia bastante semelhante à que viria a sentir no dia em que se fala aos que já não podem responder e a quem pelo menos tanto desejaríamos fazer ouvir tudo o que não lhes dissemos, e a certeza de que não estamos a sofrer.”

“Não lia quase nada. A maior parte do seu pensamento tinha já passado do cérebro para os seus livros. Estava emagrecido como se tivesse sido operado deles. O seu instinto reprodutor já não o induzia a actividade, agora que tinha posto cá fora quase tudo o que pensava.”

"Mandaram-me enxugar os olhos antes de ir beijar a avó (..) Quando os meus lábios lhe tocaram, as mãos dela agitaram-se, foi inteiramente percorrida por um longo arrepio, talvez por reflexo, talvez porque certos afectos têm a sua hiperestesia que reconhece aquilo que ama através do véu da inconsciência quase sem precisar dos sentidos para isso."

[Marcel Proust, (1920), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume III - Do Lado de Guermantes”, Relógio D'Água, ISBN 9727087450, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 608]



Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

Sem comentários:

Enviar um comentário