julho 23, 2015

“O Som e a Fúria” (1929)

Terminada a leitura, são muitas as ideias que pairam e iluminam caminhos de análise. Resolvi assim indicar brevemente as impressões sentidas, e depois focar-me mais sobre os aspectos narrativos do texto. Vi-me obrigado a separar os aspectos impressivos dos estéticos, porque são ambos imensamente salientes, fazendo mais sentido discuti-los em separado, no entanto o grosso da análise acaba por se deter sobre os aspectos estéticos.


Impressão emocional
Intenso e cru. A leitura de “O Som e a Fúria” impacta forte, por vezes indigesto, mas sempre muito envolvente, mantendo-nos agarrados ao que vem a seguir, na ânsia por respostas e explicações. Se a história é simples, a forma como se conta é brutalmente complexa, se a história não apresenta temas novos, a crueza com que o faz surpreende-nos. Os personagens são tão reais, e ao mesmo tempo tão brutais que dói ler certas páginas. É uma viagem complexa e difícil, porque difícil de assimilar e difícil de aceitar o que vamos lendo, mas talvez por isso mesmo nos mantemos numa espécie de transe até ao virar da última página. É mesmo o som (a vida) e a fúria (a emoção).


Leitura racional da obra
[Ler por quem já leu, ou procure pistas para uma leitura mais orientada]

“O Som e a Fúria” é provavelmente o romance mais experimental que li, e por essa mesma razão, o romance que melhor expõe a técnica narrativa de “fluxo de consciência”. Faulkner ao contrário de outros autores, não faz apenas uso da técnica, ele usa-a e molda-a em três variações distintas, numa mesma obra, desenvolvendo assim todo um leque de possibilidades da técnica, que não só a tornam auto-explicativa, como nos impressiona pelo virtuosismo técnico de Faulkner.

O livro é composto em 4 grandes blocos, divididos por datas claras. Dos 4 blocos, apenas o último é relatado na terceira-pessoa, com um narrador heterodiegético, enquanto os primeiros três são servidos na primeira pessoa, por cada um dos irmãos da família central do enredo. O último bloco assume-se assim como o indicador da normalidade, ou relato clássico, e permite ao leitor comparar discursos, identificando rapidamente as diferenças.

Ora as diferenças não se ficam pelo uso da primeira-pessoa, cada uma das pessoas por detrás da narração, possui uma particularidade cognitiva, que pelo facto de se estar a utilizar a técnica de “fluxo de consciência”, contamina completamente o discurso. Assim, no primeiro bloco o personagem que relata sofre de atraso mental, por essa razão o discurso é profundamente caótico, temporal e espacialmente, ora fala alguém com 3 ou 4 anos, num discurso entrecortado e básico, ora fala alguém muito mais velho, com um discurso fluído e mais refletido. É sem dúvida o bloco mais difícil de todo o livro, e questiono-me porque Faulkner o terá colocado logo a abrir! No segundo bloco, o narrador sofre de depressão e tendências suicidas, assim e apesar do discurso ser menos caótico inicialmente, à medida que se vai aproximando do final do bloco, e a pressão se vai agudizando, vai-se tornando mais e mais incompreensível, com frases e pensamentos deixados a meio, sem nexo, ou conexão com o que se diz antes ou depois. Por fim, o terceiro bloco, é servido por um personagem, ainda que sui generis, perfeitamente normal em termos cognitivos, construindo-se assim aquilo que podemos designar por um registo regular de “fluxo de consciência”. Se o quarto bloco serve comparativo entre a narração clássica e o “fluxo de consciência”, o terceiro bloco serve de comparativo dentro dos registos de “fluxo de consciência”.

Sobre o primeiro bloco, é interessante verificar que Faulkner tinha a intenção de apresentar o texto colorido (14 cores) para permitir que o leitor pudesse seguir cada um dos fios discursivos, tendo percebido que aquilo que pretendia expor seria praticamente impossível de assimilar pelo leitor. No entanto, por razões técnicas e comerciais, tal não foi possível, o que obrigou a várias reescritas do bloco. Em 2012 foi lançada uma versão com as supostas cores, mas acredita-se que depois das revisões feitas pelo autor isto talvez já não faça sentido. Isto porque Faulkner ao perceber que não poderia usar cores, ter-se-á obrigado a moldar todo o texto de modo a torná-lo, ainda que no seu caos, de algum modo compreensível. Por isso mesmo fica a dúvida, se Faulkner não tivesse sido impedido de usar cores, teria ele conseguido criar o texto que criou? Usando ele as cores para controlar a lógica discursiva, provavelmente não teria precisado de fundir tanto o texto, ou de diferenciar tanto as diferentes vozes no discurso deste bloco!

Edição limitada de 2012, com as vozes do discurso diferenciadas por cores, segundo orientação de Faulkner.

Voltando ao experimental, o livro acaba por não funcionar como um todo, no sentido tradicional a que estamos habituados, já que o discurso de Faulkner não é uno, nem sequer coeso em termos estilísticos, são vários mundos, apesar de ser sempre o mesmo tema, a mesma família. Consigo até sentir a unidade, emocionalmente, mas quando racionalizo, a obra fragmenta-se nos 4 blocos, por isso mesmo dividi este texto em dois momentos reflexivos. O que me leva a inevitavelmente rotular este livro como um experimento faulkneriano, que apesar disso representa um enorme valor pedagógico, não apenas na compreensão das técnicas narrativas, mas também na compreensão dos fundamentos do modernismo.

Ou seja, a leitura deste livro permitiu-me compreender melhor o que separa o modernismo do pós-modernismo, porque se eles parecem usar técnicas similares, como a não-linearidade e a fragmentação discursiva, o seu propósito é bastante distinto. Ou seja, Faulkner não deslineariza o discurso baseado numa questão estética, mas antes numa questão funcional, por exemplo a fragmentação discursiva que aqui ocorre procura representar uma realidade cognitiva concreta. O que Faulkner faz é criar novas formas de representação textual do real, que estão para além daquilo que os discursos clássicos da literatura permitiam. Por exemplo se contrapormos com “Infinite Jest” de DFW, um discurso assumidamente pós-moderno, vemos uma enorme diferença, já que aí a fragmentação e deslinearização é um atributo exclusivamente estético, o autor está focado na modelação da forma pela forma, num levar ao limite o discurso, para de certa forma assim estabelecer uma maior relação de proximidade com o leitor, ao o obrigar a participar na co-construção do enredo.

De certa forma o modernismo acaba por sofrer de um excesso de racionalização, na ânsia por se libertar das regras do classicismo, sem contudo perder noção da relevância das regras. Pelo seu lado o pós-modernismo na sua ânsia por voltar a libertar-se, e como que funcionando numa força de segunda vaga, nomeadamente depois do ainda mais regrado estruturalismo que sucedeu ao modernismo, abandona tudo, desistindo das regras assim como da racionalização. O discurso em si mesmo é o único limite, é o de cada criador, não existindo limites externos, nem cânones.

Julgo, em certa medida, que tudo isto que acabo de expor justifica a manutenção desta obra como um clássico obrigatório para quem quer que goste de literatura, ou queira compreender melhor a sua história e estética. É uma obra profundamente emocional, e ao mesmo tempo profundamente pedagógica, não se lhe poderia exigir mais.

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