agosto 26, 2015

A narrativa em “Mrs. Dalloway”

Virginia Woolf como muitos outros modernistas foi uma profunda estudiosa de arte, em particular da narrativa, não se limitando a estudar a mesma, publicando numerosos ensaios, mas procurando inovar aplicando o conhecimento granjeado. É deste modo que “Mrs. Dalloway” acabará por emergir como a sua primeira grande criação, em termos de inovação, marcando para sempre o mundo das letras. Woolf não inventou o “fluxo de consciência”, mas o modo como o trabalha permitiu-lhe criar o seu próprio estilo, e mais do que isso, fazer deste um quase-substituto da forma narrativa.


Woolf não se socorre do fluxo de consciência como estilística narrativa, ou seja, para ir dando conta dos objectos da história que nos conta, ela descarta por completo a forma regular de contar histórias, e em seu lugar usa exclusivamente o fluxo. Isto pode ser notado desde logo pelo facto de o livro não apresentar capítulos, sendo apresentado como um bloco único de texto, como se de um único jorro de ideias se tratasse, apresentado aos nossos olhos, como pensamento plasmado em estado bruto, sem tratamento ou filtragem, simplesmente o que é.

Em termos retóricos Woolf não procura narrar, nem sequer descrever, expor ou argumentar (as chamadas quatro formas básicas de comunicação), ela está claramente à procura de uma forma de transpor estas formas convencionadas de comunicação, como se ela na verdade não pretendesse expressar-se, mas antes e apenas, dar acesso ao seu pensamento interior. Em suma, o fluxo de Woolf mais parece emanado do não-consciente do que do consciente, não no sentido descritivo de sonho (conceito usado no passado), mas antes num sentido cognitivo, enquanto bloco de fiapos de ideias, ligadas por pequenos nós de familiaridade e proximidade, sem linearidade nem noção de todo, à qual a consciência (aqui o leitor) acede por meio da força de processos mentais de estruturação e associação que originam ligações entre mais nós, fazendo emergir um todo, e assim sentido.

Daí que uma análise exclusiva da obra, sem tomar em conta o trabalho do leitor, acuse um texto não-narrativo, sem eventos, nem sucessão dos mesmos, não originando qualquer arco dramático, no texto não se encontra fechamento nem mesmo propósito. Por outro lado, o modo como Woolf trabalha esta ausência de marcas narrativas, não é inocente, antes pelo contrário, imensas “pistas” vão sendo espalhadas no texto, de modo a contribuir para os processos associativos que o leitor precisa de desenvolver para assim reproduzir em si mesmo, o conjunto narrativo, o todo e o sentido.

Uma dessas estratégias assenta na polifonia de vozes de personagens, que parecem por vezes emanar diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, que acabam gerando redundâncias, repetições e por sua vez familiaridade no leitor. Ou seja, mesmo que possamos ler todos aqueles personagens como existentes apenas no interior da mente de Woolf, como pensamentos seus nas vozes de personagens por si imaginadas, elas acabam por funcionar como âncoras do que se vai dizendo, fazendo de si mesmos os eventos, gerando sucessão e coerência, por forma a garantir ao leitor um acesso narrativo ao texto.

Tudo isto não seria o que é, não fosse o virtuosismo e lirismo da prosa de Woolf que nos garante todo um universo impressivo de sons e imagens, facilitando-nos, no meio do caos, a reconstrução dos seus mundos. O modo como escreve aproxima-nos, pede-nos para que toquemos as suas palavras, as sorvamos, e é isso que nos permite seguir atrás de si, apesar de toda a desconexão superficial do seu texto.

Em termos da obra de Woolf, considero que “Mrs. Dalloway” (1925) foi o seu primeiro grande experimento, e que como tal sofre de alguma imaturidade, excessiva desconexão, talvez em parte por ser uma obra reconstruída a partir da fusão de dois contos seus, mas essencialmente porque quando comparada com “Rumo ao Farol” (1927), a obra seguinte, podemos notar um amadurecimento de toda a técnica acima descrita. Em ambos os livros usa - o caminhar para algo - (a festa e o farol) para nos facilitar a linearização de ideias, com o desenvolvimento a cargo do - desenrolar de expectativas e antecipação. Mas o segundo caso resulta melhor, talvez por apresentar um número mais limitado de personagens, permitindo mais marcas de redundância, e também por termos um propósito refletido num espaço geográfico, o que em conjunto facilita a nossa apreensão do trabalho de Woolf.

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