dezembro 29, 2015

“The Beginner's Guide” (2015)

Numa primeira impressão surge-nos como uma espécie de pequena história entre dois amigos, um criativo com vergonha de falar do seu trabalho, e um seu amigo que se dedica a demonstrar o trabalho por si. Os vários projectos vão sendo demonstrados, e no final percebemos que a relação entre ambos não é tão próxima ou tão íntima como o segundo nos quer fazer crer, mas o interessante surge quando percebemos a razão do conflito e o ligamos com a história do verdadeiro autor do jogo, David Wreden, é aí que percebemos que “The Beginner's Guide” pode ser bastante mais do que uma mera história de ficção na forma de jogo.






(O texto que se segue apresenta ligeiros spoilers).

Tendo em conta esse contexto, podemos qualificar “The Beginner's Guide” como uma espécie de grito catártico, provável fruto do impacto do sucesso inusitado do seu jogo anterior, “The Stanley Parable”. Ou seja, Wreden terá passado os últimos dois anos a experimentar conceitos de game design em busca do graal que lhe iria permitir ir além do seu sucesso anterior, servindo “The Beginner's Guide” como diário/roteiro criativo desses dois anos de esforços. Para nos contar a sua história Wreden socorre-se do género walking simulator que lhe permite revelar o processo criativo de modo expositivo e linear, fazendo uso da sua componente interativa para demonstrar alguns elementos dos conceitos que foi explorando. Se a história passa, nem sempre a escolha do walking simulator ajuda a dar conta das várias mecânicas (veja-se o caso da máquina criativa).

Tendo o foco na análise dos processos criativos assim como na crítica do design de videojogos, “The Beginner's Guide” torna-se num videojogo obrigatório para qualquer criador ou estudioso de videojogos, já como experiência de jogo para o comum jogador dificilmente consegue fazer passar a ideia, desde logo porque este conta com o facto de conhecermos a obra anterior do autor, mas mais do que isso, porque os conceitos explorados e a meta-análise envolvida dificilmente ecoará nas cabeças dos jogadores, o que toca no questão central explorada pelo jogo em termos criativos.

Ou seja, “The Beginner's Guide” questiona quão longe pode ir um criador em termos criativos tendo em conta a capacidade do jogador para entender o que pretende dizer. Uma discussão que bate de frente com um dos mais antigos tópicos da arte, a intenção artística, nomeadamente se uma obra precisa de “trabalhar” para se aproximar dos seus receptores, ou se são os receptores que precisam de “trabalhar” para chegarem ao que o autor tem para dizer. Falamos aqui da essência do que deve ser a arte, deve ela ser fundamentalmente expressiva ou ter uma função comunicativa?

Um dos exemplos discutidos acontece numa prisão, quando o jogador se enclausura numa cela, este teria de aguardar 1 hora de tempo real até que a cela se voltasse a abrir para poder sair. Assim seria possível ao criador expressar bem o conceito de se estar preso, o problema é que o pedido pode não encontrar receptividade no jogador, a comunicação pode não acontecer, e desse modo este simplesmente desistir do jogo, provocando o dilema criativo. Diga-se que seria algo bem menos “doloroso” do que ver um filme de 8 horas, no qual se vê, ao longo de todo esse tempo, apenas uma pessoa a dormir num sofá (“Sleep”, 1963 de Andy Warhol). Este exemplo da arte cinematográfica, é um exemplo que dá conta da experimentação artística, capaz de pôr a prova a intenção do artista e o modo como choca com os standards aceites pelos espectadores, habituados a exigir e a conseguir, filmes narrativos de 1h30.

A farsa por detrás de “The Beginner's Guide” dá bem conta deste tópico, através da relação entre o criador e o amigo (que no fundo representa o público), nomeadamente quando o amigo começa a alterar estas mecânicas, para as poder demonstrar rapidamente — no caso da prisão, em vez de ficarmos uma hora ali presos, ele altera o jogo para nos permitir saltar essa parte. Quando o criador descobre que andam a alterar os seus jogos para os mostrar, fica decepcionado, chegando ao ponto de desistir da criação de videojogos. Sendo este o clímax, assim como a essência da mensagem, com a intenção autorial a afundar-se face à não aceitação do público.

Dito tudo isto, é um jogo para quem cria, qualquer tipo de arte, e está habituado a refletir sobre o processo, ou para quem se interesse pelos processos criativos, mas é um jogo difícil para o jogador comum, porque apesar de até poder chegar à compreensão do que se discute, dificilmente sentirá o dilema, já que o assunto é apenas debatido, nunca chegando a ser verdadeiramente representado, isto é não existe nenhuma parte do jogo em que sejamos levados a experienciar o processo criativo, ou a intenção artística, desse modo o jogo trabalha sobre o pressuposto de que o seu público já compreende os seus fundamentos.

The Beginner's Guide” acaba sendo um magistral sucessor, em termos conceptuais, de "The Stanley Parable", pois se este questionava o sentido das ações do jogador num jogo, este questiona o sentido das ações do criador de um jogo.

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