setembro 02, 2016

“Assassin's Creed Syndicate” (2015)

É o sexto tomo da série Assassin's Creed (AC), que por razões do flop ocorrido com o seu antecessor, “Assassin's Creed Unity” (2014), vinha obrigado a dar mostras de que a série não seria votada ao esquecimento. Syndicate conseguiu grande apoio da crítica, mas não se pode dizer o mesmo do público que, apesar de reconhecer as melhorias, sente estar apenas a obter mais do mesmo. Do meu lado, e por ter adorado Unity, não tinha qualquer ânsia de jogar Syndicate, contudo ainda bem que o fiz, já que o prazer que foi passear por Paris foi totalmente replicado com o passeio por Londres. Em síntese, Syndicate melhorou a jogabilidade, melhorou a sensação de ambiente vivo, incluiu duas personagens ricas, incluindo uma feminina, mas ficou-se quanto à história, nem mesmo os personagens históricos — Charles Dickens, Charles Darwin, Karl Marx ou Rainha Victória — salvam a fragilidade do guião.





Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.

Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.

Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.

O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.

No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.

No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.

setembro 01, 2016

“Viagens de Gulliver” (1726)

Gulliver pode não ser a maior obra de arte literária, mas é uma das obras literárias de maior impacto narrativo na nossa civilização recente. Não existe meio expressivo — cinema, rádio, banda desenhada, teatro, etc. — que não tenha visto surgir a sua versão de "Viagens de Gulliver", sendo que desde que foi publicado, há quase 300 anos, não deixou de ser reapresentado a cada nova geração. Gulliver é fruto do mais nobre que a imaginação humana nos pode dar, o puro ato de fantasia, em todo o seu esplendor criativo.


Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.

A ilha de Laputa em “As Viagens de Gulliver”

Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
“Por vezes pousavam [moscas] em minha comida, e deixavam nela seus asquerosos excrementos ou ovas, que para mim eram perfeitamente visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos grandes não eram tão aguçados quanto os meus quando se tratava de ver objetos pequenos.”
Como texto, Gulliver surge com a aparência de mera reunião de contos, a cada viagem, novas ilhas com novas pessoas que nos permitem aceder a novos modos de compreender a realidade, contudo a sucessão de viagens acaba por desenvolver um impacto final no nosso personagem, fruto do cumulativo de experiências, garantindo assim unidade à história, ao personagem, e no fundo a toda a obra. Swift parece um tanto obstinado na sua sede de crítica à sociedade e aos homens que a compõe, por via da sátira, hoje de difícil interpretação sem acesso a enquadramento histórico*, traçando desse modo um quadro de amadurecimento de ideias, no que toca à percepção daquilo que somos enquanto espécie.
“Perguntou-me ele quais eram as causas ou motivos usuais que levavam um país a ir à guerra contra o outro. Respondi que eram inumeráveis, porém mencionaria apenas umas poucas entre as mais importantes. Por vezes a ambição dos príncipes, que jamais julgam ter terra ou Gente suficiente para governar: por vezes a corrupção dos ministros, que induzem seu senhor a fazer guerra a fim de sufocar ou desviar o clamor dos súditos contra sua má governança. As diferenças de opiniões têm custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne é pão, ou o pão é carne; se osSuco de uma certa fruta é sangue ou vinho; se assobiar é um vício ou uma virtude; se é melhor beijar uma tábua ou jogá-la no fogo; qual a melhor cor para uma túnica, preto, branco, vermelho ou cinza; se ela devia ser longa ou curta, estreita ou larga, suja ou limpa, e muitas outras coisas. E não há guerras tão furiosas e sangrentas, nem tão duradouras, quanto as que são ocasionadas por diferenças de opinião, especialmente quando se trata de coisas sem importância.”

Assim, e apesar de apontado como livro de histórias para crianças, sendo-o mais pelo texto simples e muito acessível assim como pelo apelo à imaginação e fantasia das duas primeiras viagens, por sinal as mais conhecidas, é contudo uma obra com várias camadas de significado, que se vão abrindo a cada um em função do que se traz para leitura do mesmo.


* Esta edição da Penguin vem com muito boas notas do prof. Robert DeMaria Jr., a tradução de Paulo Henriques Britto, para a Companhia das Letras, está também muito boa.

agosto 27, 2016

“Fome” (1890), arte e ideologia

Há muito tempo que tencionava ler “Fome”, mas quanto mais fui lendo sobre o livro, mais fui sabendo sobre Knut Hamsun, e isso fez com que fosse protelando a leitura. Li-o agora, depois de ter deixado assentar os meus temores, e já pouco lembrado dos mesmos dei início à leitura que estacou ao fim de cerca de 20 páginas, por me ter recordado da razão porque tinha retardado a leitura, a xenofobia do autor.


Hamsun esteve banido das livrarias norueguesas (não de forma oficial) até há bem pouco tempo, e pelo mundo fora muitos académicos têm-se dedicado a dissecar o autor no sentido de compreender a ambivalência latente entre o legado escrito e o legado político (Zagar, 2009; Blamires, 2006; Krouk, 2011). Para muitos, é doloroso (Ferguson, 1987; Troell, 1996; Kolloen, 2003) suportar a ideia de que alguém tão brilhante no mundo das letras, um artista original e de vanguarda, possa ao mesmo tempo ter defendido um dos regimes, Nazi, que maior atrocidades cometeu contra à espécie humana. Mas a verdade é que os factos estão à vista, não é possível escamotear, não existem sequer atenuantes que possam justificar uma tal atitude, com a agravante do próprio Hamsun sempre ter recusado o arrependimento. Dos imensos factos que se podem inventariar, deixo apenas o obituário escrito por Hamsun para Hitler, após a sua morte:
"Hitler era um guerreiro, um guerreiro da humanidade e um pregador da doutrina da justiça para todas as nações. Ele era um reformador da mais elevada ordem, e o seu destino histórico surgiu por este ter trabalhado num tempo de brutalidade sem exemplo, que no final acabou por o fazer cair. Assim, podem os Europeus de Leste olhar para Adolf Hitler. E nós, os seus seguidores mais próximos, baixar as nossas cabeças à sua morte.” Hamsun, 1945
Podemos questionar-nos, como foi possível? Por outro lado, podemos questionar-nos antes, como não haveria de ser possível? No meio do varrimento levado a cabo pelo regime Nazi, alguma profissão terá ficado de fora? É óbvio que não, e no campo das artes outros artistas houve, criadores de obras disseminadoras de ideologia, alguns mais assumidos que Hamsun, como Fritz Hippler, outros menos, como Leni Riefenstahl.

Fome” não é uma obra xenófoba, mas o seu protagonista — maníaco-depressivo, elitista e intolerante — sempre à beira de esgotamento nervoso, provocado pela fome, por sua vez provocado pelo seu comportamento, acaba por registar momentos que rasam o xenófobo. Se me veio à mente o passado político do autor, foi porque lia o escárnio de um louco esfomeado contra um coxo que supostamente o perseguia, e logo a seguir contra um anão. Por outro lado, e continuando a leitura, percebe-se como este estima a autoridade, a polícia que tão bem realiza o seu trabalho, ou como este coloca os profissionais liberais — advogados, fotógrafos — acima dos meros empregados ou pobres. Um personagem não diz sempre aquilo que um autor pensa, ele é antes de tudo um objeto de ideias, mas ele também não é desprovido do sentir e pensar do autor, mais ainda, quando como no caso, o livro se baseia em memórias de fases da vida do próprio autor. E é exatamente isto que levanta os meus maiores problemas face à obra, esta ou qualquer outra deste autor.

Porque uma obra não existe sem um autor. Nos casos em que não existe, como as obras criadas por máquinas, a nossa relação com as mesmas praticamente desaparece, pela simples razão de que não existe um interlocutor. Ou seja, a relevância da arte pressupõe que um criador tem algo para dizer. Por outro lado a experiência de uma obra de arte, pressupõe que o criador sente e pensa próximo do seu leitor, por forma a ser capaz de avançar, mostrando o caminho, sobre os redutos que a ambos impedem de ver além. Deste modo, para mim, é impossível separar o artista do político, já que não existe artista sem político, um artista sem ideias é artista nenhum.

Por tudo isto, posso até admirar a sua arte, nomeadamente a beleza da sua prosa, a enorme capacidade para aprofundar o traço psicológico, ao qual Dostoiévski em nada fica atrás, e mesmo a sua tão louvada primeira-pessoa que já se tinha visto com idêntica beleza em Twain. Tenho também de admitir que terá sido imensamente influente na literatura do início do século XX, nomeadamente para autores como Kafka, Mann, Miller ou Hesse. Mas, nada disto me obriga a aceitar o seu legado. Cabe a nós selecionar, filtrar, e escolher aquilo que deve perdurar, e de entre tanta obra criada, e tanto ser humano íntegro, não podemos permitir que uma simples medalha dite um cânone.

Como nota final, outro autor, que recentemente li, e senti um travo inusitado, foi Céline, que por estranho que pareça tem também uma história problemática com o regime Nazi. Aquando da sua leitura e resenha, não dei conta desta sua ligação, julgo que a história no seu caso foi mais benevolente e foi apagando muito desse passado, algo que parece querer começar a acontecer na última década com Hamsun. Contudo, por mais que se branqueie, menorize, ou secundarize, em ambos estes autores sinto algo que me distancia deles, os tópicos dos seus textos estão pejados de uma intolerância que tenho dificuldade em aceitar como mero excentrismo artístico.

agosto 25, 2016

“A História de Uma Serva” (1985)

As distopias nunca estiveram tanto na moda, na última década tivemos para todos os gostos, desde o erudito “A Estrada” (2006) de Cormac McCarthy às várias séries juvenis “Os Jogos da Fome” (2008) de Suzanne Collins, “Maze Runner” (2009) de James Dashner, “Divergente” (2011) de Veronica Roth, ou ainda “O Silo” (2012) de Hugh Howey, para não falar dos universos zombie, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) e homónima série (2010) ou videojogos “The Last of Us” (2013), não esquecendo o retorno do culto de “Mad Max” (2015). Não sendo de agora, a lista de histórias criadas, independentemente do meio, principalmente ao longo do último século é deveras impressionante. O fim do mundo, o fim da espécie, ou o fim da vida/costumes como a conhecíamos, são tópicos imensamente atrativos para quem se aventura na escrita de histórias a partir do imaginário, científico ou fantasioso, quanto mais não seja por se darem imensamente bem ao questionamento próprio das boas histórias: “e se?” ou “e depois?”


Como confessa Margaret Atwood, muito do trabalho do escritor assenta no “brincar com hipóteses”, e este livro surgiu-lhe a partir de uma hipótese simples, baseada nos credos de grupos religiosos extremistas: “Se o lugar da mulher é em casa, então o quê? se decidirmos forçar isso, o que se segue?”, embora como ela diz nesta mesma entrevista, o objetivo não tenha sido o da defesa do lugar da mulher, mas antes “um estudo sobre o poder, como ele opera e como ele deforma ou modela as pessoas que vivem dentro desse tipo de regime” Atwood (1986).

Deste modo, na distopia de Atwood apesar da mulher surgir no centro, como o género a quem tudo se pede e nada se dá em retorno, na verdade isso só assim é, porque o relato é feito por uma serva, já que ao longo de todo o livro podemos perceber como ninguém, mulher ou homem, está live da imposição totalitária do governo. Os homens são vistos como meros animais, sedentos de sexo, que precisam de ser domesticados a qualquer custo, enquanto as mulheres são vistas como meras ferramentas, garante da manutenção da espécie.

As distopias, enquanto conceitos, são interessantes por funcionarem como modelos que nos permitem reequacionar a civilização, já que por norma surgem a partir da necessidade de dar resposta a problemas concretos que impedem a sociedade de funcionar como antes (ex. vírus, água, clima, gestação). Por outro lado acabamos por verificar que os verdadeiros problemas estão em nós, ou seja, o que dá origem à maior parte dos problemas a que assistimos assenta no balanceamento entre o individual e o coletivo. Somos uma espécie mamífera, como tal só conseguimos sobreviver em grupo, por outro lado somos dotados de consciência de nós, o que nos impele à construção de identidade, e por conseguinte à necessidade de espaço individual. Politicamente, e de forma simplista, isto define-se como esquerda e direita, a esquerda preocupada com o coletivo, e a direita com o indivíduo, mas como diz o ditado, “a virtude está no meio”, o que faz desse meio, ou centro, uma utopia, já que para agradar a uns é preciso desagradar a outros, daí que os extremos acabem por vezes a conseguir angariar seguidores e assim a produzir sociedades distópicas.

No cerne de “A História de uma Serva” temos Offred, a quem tudo foi retirado — mãe, marido, filha, emprego, dinheiro — pedindo-se em seguida que tudo dê à espécie — ofereça o corpo para a gestação de bebés de outras famílias, por forma a garantir a continuidade da espécie, que entretanto se viu ameaçada por alterações na natureza. Percebe-se que Atwood procurou trabalhar a ambivalência dos dois pólos — negativo e positivo —, acabando por criar uma personagem ambígua, com quem  que se torna difícil empatizar. Por outro lado, o facto de tudo aquilo que esta perdeu ser concreto, mensurável, e aquilo para que ela trabalha ser de certo modo abstrato, existir ainda apenas em potência, torna-se ainda mais complicado compreender porque não reage ela de forma mais efetiva, porque parece aceitar tudo, mais ainda quando ao contrário de outras distopias é uma personagem de transição, ou seja, que conhece bem a sociedade que precedeu aquelas novas regras.

Do meu lado, e mais em concreto, julgo que o problema não surge tanto dessa ambiguidade, que diga-se é característica dos protagonistas de distopias, que têm de lidar com a enormidade da situação, mas antes pela leveza, ou superficialidade de alguns dos seus sentires, como a preocupação com o creme para as mãos, assim como muitos dos comentários que vai fazendo sobre a esposa ou o comandante, que dão conta de uma personagem ligeira, que parece a tempos ser capaz de passar ao lado daquilo que nos pareceria ser à partida um verdadeiro terramoto psicológico.

Apesar destes problemas com a personagem considero-o um livro relevante, nomeadamente por ser capaz de levantar a discussão em redor dos problemas de género, assim como e à semelhança de outras distopias nos fazer lembrar que o totalitarismo pode estar ao virar da esquina, mas também pelo modelo não-linear que a autora escolheu para nos dar acesso ao passado e presente, que funciona muitíssimo bem na manutenção do nosso interesse. Ainda assim, não o colocaria a par de obras como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”, ou pelo menos das recordações que mantenho dessas obras, já que foram lidas em idade bem diferente.

agosto 24, 2016

"Rei Lear" (1605)

À terceira peça de Shakespeare, depois de "Hamlet" (1602) e "Macbeth" (1606), padrões começam a emergir e as minha ideias sobre a sua obra começam a ganhar consistência, das quais extraio duas grandes conclusões: uma sobre as qualidades dramáticas, e outra sobre as insuficiências do texto.

"King Lear and the Fool in the Storm" (1851) de William Dyce 

Shakespeare é considerado um dos maiores arautos das letras, sendo provavelmente o autor mais estudado nas Faculdades de Letras de todo o mundo. Uma das principais razões para esta adoração prende-se com a profundidade da análise psicológica realizada por Shakespeare sobre os seus personagens, ou seja a profundeza a que leva a dramatização das suas histórias. À distância de mais de 400 anos impressiona tanta clarividência, tanta mestria na desconstrução da natureza humana e sua remontagem enquanto histórias capazes de seduzir qualquer ser humano. A forma como o fez, na escrita, foi à data inovadora, já que Shakespeare não se coibia de criar novos termos para se expressar, mas seria suficiente? Ou seja, será suficiente ler Shakespeare para compreender Shakespeare?

Esta pergunta leva-me à minha segunda constatação sobre Shakespeare, da insuficiência do texto. Ou seja, à leitura da sua terceira peça, e concordando com as qualidades enquadradas acima, não posso deixar de questionar o modo como o texto falha, ou melhor, é insuficiente no garante da expressividade subjacente ao mesmo, funcionando mais como esboço, mero registo de ato cénico, e não obra final, completa. Não digo que a peça que lemos é guião, até porque lhe falta toda moldura descritiva de cenário e palco, mas pouco se destaca desse formato. Neste sentido, falta ao texto não apenas a capacidade para situar espacialmente o ambiente, mas mais importante do que isso, faltam duas componentes essenciais ao drama: a direção de atores e a performance.

Aliás, não raras vezes as resenhas feitas aos textos de Shakespeare incluem análises às diferentes encenações vistas do mesmo, o que reforça o que tento aqui estabelecer, de que quando apenas de frente ao texto, perdemos parte significativa da ideia expressiva do seu autor. É verdade que não podemos mais aceder à ideia total do autor, a encenação e sua performance são artes efémeras não passíveis de registo.

Por outro lado, também é verdade que podemos, enquanto leitores, dar vida à encenação nos bastidores do nosso consciente, embora isso não impeça a distância e fragilidade do texto, desde logo porque não foi com essa ideia que o texto foi criado, e este é o meu ponto fulcral. Ao contrário de Cervantes, Shakespeare não estava a tentar conversar com o leitor, mas antes a tentar impressionar o espectador.  O objetivo das suas linhas assentam na maquinação de cenas vivas — visuais, sonoras e atores —, é isso que podemos tentar ver, antecipar ao ler, mas ao fazê-lo damos connosco no isolamento da relação com o texto, ausentes de performers e público.

"Lear and Cordelia in Prison" (1779) de William Blake

Dito isto, quero dizer que “Rei Lear”, tal como “Hamlet” e “Macbeth”, impressiona, pelo modo como nos envolve, nos instiga a seguir a história, como nos aproxima e distancia dos diferentes personagens. Não me parece que se ganhe, entrando em atos de pura interpretação simbólica, como os realizados por alguns académicos, incluindo Freud. O texto é claro e fala da chegada a uma idade em que todo o ser humano se questiona sobre as suas faculdades, focando-se sobre os efeitos de legado e sucessão, algo que desde tempos imemoriais tem provocado guerras atrás de guerras, e ainda hoje é capaz de provocar as maiores cisões familiares, desde as que muito têm às que nada têm, denotando mais uma vez a centralidade dos textos de Shakespeare que o tem mantido sempre atual.

agosto 22, 2016

“Almas Mortas” (1842)

Uma comédia negra social e uma introdução à arte de Tolstói e Dostoiévski. Dito isto, “Almas Mortas” é uma obra relevante em termos históricos pela sua a sua arte e crítica social, no entanto continua a ler-se imensamente bem, com bons momentos de humor e uma belíssima escrita.


Este livro deveria ter sido o primeiro de uma trilogia, mas face às reações violentas da sociedade Gogol que tinha já iniciado o segundo volume acabaria por o destruir pouco antes de morrer. Contudo e sendo este o seu único romance, não desmerece em nada a leitura, já que o livro se fecha, deixando claro, caminho aberto para novas aventuras que nunca viremos a conhecer. A agressividade despoletada pela obra é facilmente entendível, já que Gogol desfaz tudo e todos ao longo do texto, desde os grandes proprietários, aos camponeses, aos funcionários públicos, incluindo procuradores, chefes de polícia, etc. Nada escapa à sátira, frontal e direta, que hoje está já muito distante desse real, mas que facilmente percebemos, já que se muito mudou, muito ainda continua na mesma.

Chichikov é alguém com anos de experiência na função pública russa do século XIX, sabe manejar a máquina e ganhar com isso. O seu mais brilhante esquema é o foco deste livro, e passa por comprar "almas mortas", nesta Rússia as "almas" eram servos, os camponeses que trabalhavam para os grandes proprietários que por sua vez mediam a riqueza em função do número de almas que possuíam. As almas mortas eram os servos mortos, que pagavam impostos enquanto o senhorio não desse baixa dos mesmos. Chichikov pretendia comprar os contratos dessas almas, conquanto os senhorios não os dessem como mortos. O fundamento e o esquema é revelado no final do livro, mas ficamos a perceber assim que o nosso herói é um vilão, mas é-o no sentido da sátira, já que para Gogol ele encarna o espírito da época, o que se levados a refletir sobre os esquemas criados pela banca internacional nos dias de hoje (ex. subprimes, ativos tóxicos, etc.) rapidamente percebemos que pouco mudou, neste caso apenas passou do público para o privado.

Claro que toda esta análise social pode ser também encontrada em Tolstói, e tendo em conta o facto de Gogol no fim do livro dizer que o escritor tem o dever de relatar e criticar o social, nenhum outro sucessor de Gogol poderia ter sido mais efetivo nessa função. Já Dostóievski é bem mais psicológico, embora traga sempre rente ao texto o olhar social, mas considero que aquilo que melhor recupera de Gogol é a descrição realista com laivos poéticos. Aliás Gogol sempre que se refere ao livro, já que enquanto autor se assume como narrador e vai falando com o leitor em apartes à história de Chichikov, fá-lo como poema. Para quem tenha lido Tolstói e Dostoiévski facilmente sentirá ao ler Gogoel as suas reminiscências.
"Feliz o viajante que após longa e incómoda jornada, durante a qual suporta o frio, a chuva, a lama, o tilintar contínuo dos guizos, as constantes reparações nas estradas, as sempiternas zaragatas dos cocheiros com os ferradores, chefes de posta ensonados e demais canalha dos caminhos, volta a ver enfim o telhado familiar, as luzes e os lugares que conhece, as pessoas que estima e acorrem, calorosas, a recebê-lo, e a ouvir as alegres exclamações dos criados, as turbulentas correrias das crianças, os relatos de tudo quanto se passou na sua ausência, estes entrecortados de abraços e beijos tão ardentes que varrem logo da memória todos os desgostos sofridos.” (p.141)

Edição do Círculo de Leitores, 1977, p.263, trad. José António Machado

agosto 20, 2016

“Corre, Coelho” (1960)

John Updike é uma das figuras mais emblemáticas da crítica literária americana, tendo ao longo da sua vida (1932-2009) realizado análises de obras dos mais conceituados escritores do século XX, na sua maioria para a The New Yorker. Updike fugiu à norma de que “quem não sabe ensina, ou crítica”, porque sabia, e sabia muito, como fica evidente neste magnífico opus que é “Corre, Coelho”, escrito em 1960, com apenas 28 anos. O livro é o primeiro tomo de quatro, tendo os restantes saído desde então sempre espaçados por períodos de 10 anos, dos quais dois tiveram direito a Pulitzer.


Antes de entrar no livro quero deixar duas referências que senti ao lê-lo. No primeiro terço da minha leitura senti uma enorme proximidade entre o personagem principal, Rabbit e Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” (1951) de Salinger, pela zanga com o mundo à sua volta e uma inquietação centrada sobre si muito americana, mas ao chegar a meio do livro, o fascínio pela personagem, capaz de se libertar de todas as amarras, começou a converter-se em desdém e aos poucos mesmo em repulsa, e foi aí que comecei a estabelecer o paralelo com outra obra, “Lolita” (1955) de Nabokov, já que ambas dão vida a personagens repugnantes mas ambas fazem-no por meio de prosa tão graciosa que nos obrigam a continuar a ler, até respeitar a obra.

No campo da escrita Updike apresenta uma capacidade descritiva absolutamente soberba, com um vocabulário rico, mesmo erudito, e um encadeamento frásico capaz de nos manter colados, dotando o texto de um ritmo que sustenta totalmente a nossa atenção e foco. Por vezes temos mesmo Updike a entrar em fluxo de consciência, quando descreve o pensar dos seus personagens, fazendo desses momentos pontos altos do sentir do texto, duas das melhores descrições acontecem quando Ruth e Janice se dão a conhecer.
“Pelo menos tem a sensação de que ‘existe’ para ele em vez de ser uma coisa colada no interior de uma cabeça pervertida. Meu Deus, costumava odiar os homens com as suas bocas húmidas e risinhos, mas quando o fez com Harry perdoou a todos os outros, pareceu-lhe que a culpa era só a meias, que eram uma espécie de muro no qual ela continuava a esbarrar porque sabia que ali havia alguma coisa, e de repente com Harry encontrou essa coisa e esse achado fez com que tudo o que tinha acontecido antes parecesse irreal. Afinal ninguém a tinha de facto magoado, ninguém lhe tinha deixado cicatrizes, e quando tenta recordar-se do que passou parece-lhe por vezes que aconteceu a outra pessoa. Parecem-lhe mais ou menos vagos, como se ela tivesse mantido os olhos fechados, vagos, patéticos e ansiosos, desejando qualquer coisa que as mulheres legítimas não lhe davam, palavrões ou gemidos, ou actos com a boca.” (p.145)
Em relação ao protagonista, Harry Rabbit (Coelho), julgo que que a sinopse do livro dá conta do seu historial, e vendo bem pouco mais sobre este há para dizer. No fim da leitura escrevi algumas frases que me passaram pela cabeça, que transcrevo de seguida, e que julgo darem conta de quem é Harry.
Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,
A minha mulher não é suficientemente boa para mim,
O meu filho, a minha irmã, os meus pais, ninguém é suficientemente bom para mim,
O meu emprego não é suficientemente bom para mim,
A minha vida não é suficientemente boa para mim,
Mereço mais, muito mais,
Fui uma estrela. Sou uma estrela.
Ao escrever isto, e confrontando com as várias listas que citam esta série de livros de Updike como imensamente relevantes para compreender a América, não consegui deixar de ver os exploradores do oeste americano, os “self-made man”, ou o americano empreendedor, todos aqueles que não tiveram medo de deixar para trás e seguir atrás do sonho, independentemente de quem fica. E depois encontrei ainda uma entrevista de Updike de 1969 em que este confidencia que o livro lhe tinha surgido como resposta aos beatniks dos anos 1950, nomeadamente a “On the Road” de Kerouac, dizendo:
“o livro pretendia ser uma demonstração realista daquilo que acontece quando um jovem homem de uma família Americana vai para a estrada: as pessoas que ficam para trás magoam-se” (The Cambridge History of American Literature, p.191)
Ou seja, estamos perante uma crítica brutal de Updike à essência individualista da identidade americana, algo que em minha opinião Kerouac viu mais como necessidade de crescimento interior na idade pré-adulta, mas que outros, nomeadamente Ayn Rand, com livros como “The Fountainhead” (1943) e “Atlas Shrugged” (1957), estabeleceram como o fundamento filosófico da identidade americana, essência do capitalismo em contra-ciclo ao comunismo. Se quiserem saber mais sobre Rand, recomendo a biografia em banda desenhada que aqui dei conta recentemente.
“Uma vez vestido, Coelho sente a calma regressar. O acordar devolveu-o de certo modo ao mundo que abandonara. Sentira a falta da presença avassaladora de Janice, do miúdo e das suas incómodas necessidades, das paredes da sua casa. Tinha perguntado a si próprio o que estava fazer, mas agora esses reflexos que só lhe haviam chegado à superfície tinham-se consumido e brotam nele instintos mais profundos que lhe dão toda a razão. Sente a liberdade como oxigénio em seu redor.” (p.53)
Torna-se assim difícil fazer uma leitura prazeirosa do texto, exceptuando a beleza da prosa, mas um livro não é obrigado a fornecer-nos personagens empáticos, a sua recompensa pode surgir por outros meios, nomeadamente fazer-nos pensar, tal como ajudar-nos a compreender melhor a sociedade em que vivemos e os sonhos que propagandeia.

agosto 19, 2016

Aveiro Visto do Céu

Fizeram-me chegar a conta de Instagram do designer Paulo Cunha, na qual este se dedica a publicar fotos aéreas de Aveiro, a sua ria e praias. O facto de cá morar aproxima-me bastante destas imagens, mas a sua beleza extasiante fez com que resolvesse partilhá-las. Não sendo, de todo, um trabalho com o mesmo alcance, fez-me lembrar o magnífico "Home" (2009) de Yann Arthus-Bertrand, e a série fotográfica que o precedeu "La Terre Vue du Ciel" (1999) (+imagens).

Sem ter informação, arrisco a dizer que todas estas fotografias foram capturadas a partir de parapente com motor, algo bastante comum aqui em Aveiro, nomeadamente no verão.

Costa Nova

Costa Nova

Porto de Aveiro

Ponte da Barra

Praia do Areão

Praia da Barra

Ria de Aveiro

Ria de Aveiro

Para ver mais imagens como estas sigam o Paulo Cunha no Instagram.

"A Letra Encarnada" (1850)

Considerada uma obra maior do romantismo americano (século XIX), a par com “Moby Dick” (1851), sendo por isso mesmo de leitura obrigatória nas escolas americanas, “A Letra Encarnada” relata uma história, passada dois séculos antes, centrada na moral de uma sociedade nascente, a dos EUA.

Uma tradução de Fernando Pessoa

Pelo facto do livro aparentemente se centrar sobre o adultério e a punição do mesmo pela sociedade, numa primeira leitura pode ficar a ideia de que o livro perdeu o seu valor para os dias atuais, algo que fica patente nas imensas discussões presentes no Goodreads, iniciadas por muitos dos que foram obrigados a ler o livro nas escolas americanas e se sentiram ultrajados, não apenas pela história mas também pela dificuldade de aceder à mesma já que o livro foi escrito seguindo os preceitos estéticos do romantismo, reconhecidamente menos acessíveis que os do realismo de hoje.

Mas esta obra de Hawthorne vai bastante mais longe do que o motivo que mantém o enredo vivo. Ao contrário de todos os indicadores, desde o título à sua constante menção no texto, o foco não é o Adultério, marcado pela letra A, mas antes a Redenção. O adultério serve aqui apenas como rampa de lançamento da narrativa, com o objetivo de aprofundar o sentir dos personagens para trazer à flor do texto a vergonha, a culpa, a vingança e o desespero. Repare-se como Hawthorne nunca dá conta, de modo explícito, do que verdadeiramente aconteceu, iniciando o relato in media res, com Hester já sobre o cadafalso de letra ao peito.

O que verdadeiramente interessa, e por isso o livro é tão relevante, é o modo como os diferentes atores se relacionam com o sucedido, desde a visada, à filha, ex-marido, companheiro, e claro sociedade. O adultério é apenas um móbil, em seu lugar poderíamos ter o suicídio ou a perda de um filho, claro que com impactos distintos, mas que serviriam do mesmo modo à desconstrução que Hawthorne procura fazer do ser humano e seus laços societais. Para uma obra do período romântico, não deixa de impressionar a capacidade de ir ao fundo da psicologia humana, de nos fazer entrar pelos personagens adentro e compreender como sentem.

Toda esta capacidade para perscrutar o sentir humano é no fundo a essência da arte literária, e cada época apresenta os seus melhores exemplos, que muitas vezes, sem sequer o procurarem, ultrapassam e precedem a ciência e filosofia, como fica evidente na obra de Lehrer, “Proust era um Neurocientista” (2007). Neste caso temos Hawthorne, em 1850, a preceder Nietzsche, que escreveu em “Crepúsculo dos Ídolos”, em 1888 a tão citada expressão “o que não me mata torna-me mais forte”, da seguinte forma:
“Faltava a esta — o que a muita gente falta toda a vida — uma dor que profundamente a ferisse, e assim a humanizasse e tomasse capaz de sentir profundamente.” (p.191)
“A letra encarnada era o seu passaporte para regiões onde outras mulheres não ousariam entrar. O Opróbrio, o Desespero, a Solidão! Tinham sido estes os seus mestres — mestres severos e desregrados — e tinham-na tornado forte, ainda que não fosse bom o que com eles tinha aprendido.” (p.210)
Hester Prynne é assim uma das primeiras grandes heroínas da literatura, e de certa forma uma clara homenagem de Hawthorne à perseverança e dureza das mulheres, comumente catalogadas como sexo fraco, frágeis e incapazes do uso da força, a demonstrar aqui que por debaixo da capa de fragilidade que se lhes atribui, existe muito mais, existe toda uma capacidade não apenas de suportar a dor mas de ir além, de fazer brotar e renascer, sempre mais forte. No fundo a obra reflete a vida de Hawthorne, pessoa tímida e frágil, imensamente dependente de sua esposa, Sophia Peabody Hawthorne, artista dedicada à pintura e ilustração, e o pilar psicológico do casamento, sem a qual muito provavelmente Hawthorne não teria deixado o legado que deixou.

"The Scarlet Letter" (1861) de Hugues Merle. Na frente temos Hester Prynne com a sua filha Pearl, em fundo e à esquerda surgem Arthur Dimmesdale e Roger Chillingworth.

Por fim, e voltando à questão estética, o texto é de difícil leitura, embora reconheça que o facto de ser uma tradução de Fernando Pessoa ajuda imenso. Hawthorne escreve muitíssimo bem, e quando traduzido por Pessoa eleva-se a um nível de beleza por vezes extático. (Interessante que não se saiba ainda hoje porque Pessoa traduziu esta obra, tendo sido encontrada no meio da sua documentação apenas anos depois de ter morrido.) Contudo, e apesar de belo, o texto dá trabalho a "mastigar", já que se oferece muito trabalhado, como que talhado pelo seu sentido estético e não narrativo. Ou seja, antes de garantir a compreensão, o romantismo procurava impactar sensorialmente pela forma, daí que os textos surjam extensos e labirínticos, carregados de simbolismos, obrigando o leitor a esforçar-se para extrair sentido do que vai lendo.

agosto 17, 2016

“Crónica do Pássaro de Corda” (1994)

A poucos capítulos do início senti-me de novo no universo Murakami, e apesar de estar a gostar uma preocupação apossou-se do meu espírito, estaria eu perante mais um livro-tipo de Murakami, desenhado a partir de uma mesma fórmula? Quando li “Kafka à Beira-Mar” (2002) isto foi o que mais me incomodou, a proximidade com “1Q84” (2010), e por isso a um terço da obra ponderei mesmo desistir, não queria ler “mais um”, queria ler o livro de Murakami que é citado como a sua obra-prima, e que como tal deveria ter algo para além da fórmula. Ainda bem que não desisti, “Crónica do Pássaro de Corda” é bem mais amplo e rico que os exemplos acima citados.


Do lado da fórmula podemos dizer que Murakami é um mestre na arte de contar histórias, algo que podemos encontrar na maior parte dos seus livros. A sua mestria surge através do modo como mantém o nosso interesse constantemente vivo baseado em dois elementos-chave — o fantástico e a subtração de informação —, ora as respostas que tem para dar às questões são de ordem sobrenatural, fora dos reinos dominados pelas leis da física e química, surpreendendo-nos e obrigando-nos a questionar sobre a real exequibilidade dessas explicações, ora simplesmente não dá respostas, abre questões a que não responde, prolongando a nossa necessidade de continuar a ler para chegar a explicações.

Do lado não formulaico, “Crónica do Pássaro de Corda” é uma obra maior pelo modo como constrói o seu mundo, assim como pelo modo como cria o acesso a esse mesmo mundo. Ou seja, a “realidade” que se nos abre não é constituída pelas mesmas regras da nossa, tanto no espaço como no tempo, nem tão pouco é constante, sendo desmultiplicada em diferentes camadas à medida que vai progredindo. Por outro lado, o modo como vamos acedendo a essas diferentes realidades, ou seja, a estrutura narrativa, é não só não-linear como multimodal, isto é, e seguindo de perto Joyce, a história salta, sem pré-aviso, entre passado e presente, entre sonho, realidade e realidade alternativa, assim como entre prosa, cartas, textos de jornal e até transcrições de conversas na net. Murakami puxa ao limite a experimentação, por vezes roçando o mero exibicionismo sem o chegar a ser, não só porque tudo funciona de modo integrado e "coerente", mas essencialmente porque mantém sempre a capacidade de nos surpreender e arrebatar.

No campo temático, temos Murakami no seu registo normal a discutir a efemeridade do amor nas relações, mas temos também política com algum posicionamento ideológico (com um herói desempregado jovem que não sente propriamente necessidade de procurar emprego, e um vilão político assertivo com uma carreira de sucesso), e temos ainda discussão histórica sobre a ação do Japão na 2ª Grande Guerra Mundial. Claro que tudo isto é envolvido pelo mundo Murakami que é comumente dotado de estranhamento, exotismo, misticismo e fantasia, ingredientes que lhe garantem uma arena muito particular para alavancar a expressividade pessoal a coberto de algum simbolismo, escapando ao criticismo realista.

Murakami faz-nos lembrar Philip K. Dick pelas diferentes camadas de realidade, faz-nos lembrar Bret Easton Ellis pela escrita direta e o niilismo urbano, mas faz-nos lembrar Kafka pela complexidade e opressão do real, à qual parece procurar fugir por via de algum surrealismo Lynchiano. Temos assim um texto que funciona como escape, envolvendo-nos ao ponto de nos sugar para uma nova realidade, criando uma espécie de rasgo alternativo em que a vida corre a um ritmo distinto, lento, porque nem tudo tem de ter uma causa, porque a lógica não garante explicações para tudo. Deste modo, somos obrigados a deixar-nos levar pelo que vai sendo apresentado, pondo de lado muita da ansiedade que nos habituámos a sentir na espera por respostas dos romances realistas. Ao congregar todas estas distintas abordagens Murakami, mais do que criar uma fórmula, criou uma identidade literária.