junho 23, 2007

violência e contexto

A violência sempre esteve na ordem do dia desde que os media existem. Ou seja, a terapia em casos de violência recomenda que se deixe o assunto de lado, se avance no sentido construtivo de um novo real abandonando o que não queremos, esquecendo-o. Os media fizeram o favor de deturpar esta possibilidade ao trazer constantemente as más memórias sobre o que representa ser-se humano para o topo das prioridades informativas e recreativas. Na verdade, os media só o fazem porque assim o exigimos, e exigimos porque está na nossa natureza equacionar constantemente os limites da nossa espécie. Até onde é possível ir, até onde é possível avançar, onde está o ponto de não retorno. De certa maneira, faz sentido, e relembra-nos The Matrix (1999), quando construída, pela primeira vez, pretendia dar um mundo perfeito aos seres que habitariam aquela simulação, mas os humanos não se adaptaram àquela realidade, demasiado perfeita, e definharam autodestruindo-se.

Assim é natural que de tempos a tempos, novos estudos (nomeadamente das áreas da psicologia e sociologia) apareçam apontando problemas nos diferentes tipos de media, nomeadamente na contaminação e poluição de ideologias de violência. Tem acontecido desde sempre, começou com a escrita (livros e jornais), passou pelo cinema, música, rádio e televisão e nos últimos anos chegou aos videojogos. Num post recente de Totilo (2007)[1], este dava conta após a leitura do livro "American Movie Critics: An Anthology From the Silents Until Now", com alguma estupefacção, que os críticos dos inícios do cinema fizeram tudo o que estava ao seu alcance para denegrir aquela forma de arte ou media. O que ele aqui não dá conta, é que esta foi apenas uma das batalhas que o cinema teve que travar, pois demorou quase 40 anos até que o cinema pudesse começar a ser olhado como uma verdadeira arte, apesar de o seu reconhecimento como 7ª arte datar de 1927. De qualquer forma é interessante ler algumas dessas criticas para se perceber com alguma profundidade o que aqui tratamos, e ver o quão pouco pode mudar a mentalidade face ao desconhecido (novos media), que é sempre encarado com medo, fruto da nossa necessária desconfiança evolutiva.

«Criminologist in a 1916 article: "85 percent of the juvenile crime which has been investigated has been found traceable either directly or indirectly to motion pictures which have shown on the screen how crimes could be committed."»

«"Movies weren't just low art. They were potentially brain-warping. One early critic likened the appeal of movie-watching to entering a trance at the behest of a hypnotist. Seldes quoted a psychoanalyst who was concerned about how movies granted their viewers a "magic omnipotence wish" and that films showed the audience a world in which every problem could be solved and all questions could be answered.»

Correndo o risco, mais uma vez, de parecer demasiado conservador, na verdade sinto que algo existe por detrás de todo este medo e de todo este instinto humano. Não é que me sinta amedrontado pelo poder dos media, nem vejo com bons olhos a censura, nada deve estar acima da liberdade, e da liberdade de expressão. No entanto como bem sabemos, nem tudo o que se diz tem apenas um sentido, e dessa forma a liberdade só existe, enquanto for coerente, ou seja enquanto se expressar de um ser livre para outro ser livre. No momento em que a minha liberdade coloca em causa a liberdade do meu próximo estamos perante uma justificação plena de término dessa mesma liberdade. É por isso que é necessário discutir-se a liberdade, e é por isso que a liberdade necessita de limites, ou em alternativa deixaríamos de viver numa sociedade livre para viver numa sociedade do mais forte (não é que não seja assim, nos tempos que correm).

Porquê todo este discurso sobre a liberdade? Porque julgo que está no cerne da discussão sobre a violência nos media. Desde sempre o soubemos, mas os recentes estudos da neurociência (Ramachandran, 2006) [2] tem confirmado de forma veemente que o ser humano, é uma máquina de aprendizagem por via da imitação. O livro dá a ler, o cinema dá a ver, o videojogo dá a fazer. O livro é essencial à aprendizagem em profundidade, porque permite ir além da imagem e da acção obrigando a cognição a gerar num modo mental simulações dos processos que por sua vez se espalham pelo nosso cérebro em forma de conhecimento. O cinema contém em si um poder de assimilação no imediato, superior ao livro e até mesmo ao videojogo, uma vez que sem esforço podemos assimilar toneladas de pormenores sobre uma determinada actividade em pouquíssimo tempo. Contudo, o videojogo porque nos reporta para um contexto repetitivo e somático da acção torna a tarefa de retenção da informação mais fácil.

Se estas capacidades forem aplicadas ao discurso da violência, então em que ficamos? Como podemos admitir que o facto de representarmos a violência no seu modo visual, sonoro ou escrito não contém em si mesmo qualquer incremento de violência sobre o ser humano? Sou livre de invocar a violência, mas poderei ser livre de a "impor" à sociedade, sabendo que esta será inevitavelmente assimilada, decorrendo daí os riscos que conhecemos? Julgo que o problema aqui recai, por completo, sobre o contexto.

O contexto, é aqui, essencial à determinação dos limites da liberdade de expressão. O contexto pode e deve ser determinado pelo conteúdo do artefacto assim como pela sua forma. Não é porque um filme tem menos sangue, que é menos violento, nem é porque um filme está cheio de imagens de pessoas mortas que é mais violento (sobre a distinção da violência na forma e conteúdo ver post anterior). Desta forma, interessa aqui focar e enfatizar que não é a simples representação da violência visual ou sonora que nos deve importar analisar mas antes o modo como esta é tratada, ou o modo como esta é contextualizada. E aqui podemos ir ainda mais longe do que apenas a própria forma ou conteúdo, se bem que já fora do alcance dos produtores/autores desses conteúdos, e reportar-nos ao modo como os artefactos desses media são utilizados, ou seja são ou podem ser, recontextualizados num novo modo de assimilação deturpado (ex. casos de pedofilia).

Mesmo quando pensamos num filme, em que o actor estrela, assume um papel de mau da fita, como é o caso de Tom Cruise em Collateral (2004) o modo como este se contextualiza não deixa dúvidas ao espectador, sobre o que acabou de ver, sobre o que acabou de assimilar. A violência, estava lá, foi mostrada, foi perpetrada por um actor que a sociedade idolatra e imita, mas foi suficientemente contextualizada, para que o espectador percebesse que a imitação daquelas acções não obteriam frutos benéficos. A assimilação da acção sem deturpação, leva a um reconhecimento do que está errado. Aceita-se no entanto, que possa existir o cuidado com algumas idades mais susceptíveis à mensagem. Aliás os recentes estudos mais uma vez da neurociência, têm demonstrado que os adolescentes possui uma menor capacidade para discernir a emocionalidade do seu próximo, e desse modo podem mesmo não perceber correctamente a mensagem não verbal e emocional enviada por alguém em sofrimento ou com medo em seu redor.

Já nos videojogos, a violência representada, tem sofrido da falta de capacidades de estimulação emocional, tanto ao nível ficcional do conteúdo como da forma. Se pensarmos em um dos títulos mais badalados sobre a violência, Grand Theft Auto III (2001), facilmente podemos ver que o atropelamento de uma pessoa é tudo, menos realista na sua representação. Desde o modo como as animação do carro a passar por cima das "pessoas" e as trucida com as rodas do carro ou simplesmente as deita ao chão ao modo como estas gritam quando isso acontece. Primeiro as animações das pessoas, são vistas a uma enorme distância, não são apresentadas quaisquer traços visuais dos efeitos do carro nas pessoas, os gritos das pessoas possuem um acento agudo que lhes dá um ar cómico. Ou seja, tudo soa a um mundo alternativo, não real, que lembra constantemente o jogador que o mundo em que ele está a perpetrar aquelas acções, não é real. Não existe nada nestas sequências que envolva verdadeiramente o jogador na acção executada, e isso é propositado. O objectivo dos criadores do jogo não é que os jogadores matem pessoas com o carro, mas é antes que este sinta que desfruta de uma total liberdade naquele mundo que até matar aquelas pessoas lhe é permitido e no seu essencial, é interactivo. Mas não é realista, não possui a capacidade de envolver o jogador e estimular a sua emocionalidade primária para procurar imitar aquelas acções no mundo real.

Assim, o problema que aqui levanto não está relacionado com a violência apresentada no cinema e videojogos de um modo genérico, mas prende-se mais com casos específicos de artefactos destes media, que fazendo uso das capacidades destes e conhecendo os seus potenciais efeitos, usam e abusam da chamada liberdade de expressão.

Podemos começar por falar dos casos em que é evidente a necessidade da censura e proibição completa, não apenas da sua distribuição mas acima de tudo da sua criação/produção. E aqui falamos do chamado "snuff cinema", e que por ser tão extremo não possui sequer uma definição formal, mas é mais catalogado desta forma seguindo um raciocínio genérico, que se define num filme "showing the actual murder of a human being that is produced, perpetrated, and distributed solely for the purpose of profit"[3]. Muitas vezes citado de mero mito urbano, mais pela dificuldade de provar que o que se apresentar no filme, é a morte real de alguém, do que propriamente pela impossibilidade prática de se realizar. As notícias vão aparecendo, e o fenómeno da web elevou a procura e a facilidade de distribuição deste tipo de produtos. Numa operação levada a cabo pela policia britânica e italiana, sobre uma rede de pedofilia, foram encontradas vários filmes dos quais alguns incluiam "footage of children dying during abuse" [4]. Uma recolha dos e-mails transacionados entre o vendedor e o comprador registavam mesmo, «vendedor: 'What do you want?'» «comprador: 'To see them die.'». Neste caso, estamos perante um crime penal que começa na produção e deste modo sendo um caso tão extremo, é flagrante a necessidade de uma proibição total. Esta é uma situação, que à partida não chegará à área dos videojogos.

Entrando agora em casos de fronteira, em que será menos evidente declarar a proibição, porque entramos em situações de violação da chamada "liberdade de expressão". Falamos de cinema hard-core extremo ou cinema de ideário político. No caso do primeiro a violência aparece representada num modo gráfico/visual muito intenso. O hard-core ou pornografia violenta abordam normalmente temáticas de mau trato do ser humano, onde o fetiche do sadomasoquismo e violação são elevados ao ponto da normalidade. Descrições de sequências de filmes, banidas em UK, podem ser lidas em melonfarmers.co.uk. Ou seja, a representação é efectuada de um modo visual muito agressivo e realista e para o qual não se apresenta qualquer justificação ou reprovação, podendo mesmo "ler-se" uma clara defesa das acções representadas nas sequências.
No segundo existe uma clara manipulação da mensagem face aos elementos visuais que desenvolve uma contextualização da violência representada. Falamos de filmes de discriminação, seja ela de que área seja, mas os mais conhecidos são de ordem racial. A "indústria" de propaganda nazi, controlada por Goebbels, recorreu fortemente a este cinema, fazendo representar os judeus como ratos [5], destruidores do ecossistema humano, e que por isso deveriam ser eliminados. Claramente aqui, a violência foi mais subtil, aliás porque o que se pretendia era preparar as pessoas para o que se viria a fazer nos anos seguintes e desse modo não interessava assustar o povo, mas antes realizar uma espécie de "lavagem cerebral" sobre a ideia que os alemães tinham dos judeus.

Ora o que está aqui em causa nestes dois casos, que utilizam metodologias distintas, mas que em ambos os casos se definem por atentados às liberdades do "outro", é acima de tudo o roçar, ou por vezes até bastante evidente, do incitamento ao crime. E aqui falo de casos borderline, porque nem sempre é fácil distinguir o roçar do evidente, uma vez que um filme de 90 minutos pode conter variadíssimas e diferentes sequências que contenham cenas totalmente contrárias aquelas aqui descritas. Desse modo, torna-se complicado justificar que um determinado filme seja banido, contudo e tal como a BBFC faz, pode recomendar-se a eliminação de cenas muito especificas em que essa leitura é possível.

Estes casos, não tem então qualquer relação com os chamados blockbusters da indústria de Hollywood. Trouxe aqui todos estes casos, porque recentemente a BBFC resolveu banir um videojogo de classe AAA (equivalente da designação blockbuster do cinema), sendo mesmo o primeiro videojogo banido de UK até à data. Já anteriormente tinha sido banido o videojogo Carmageddon (1997), mas o ban foi retirado após alguns cortes realizados pelos produtores do jogo. O videojogo é uma sequela, de um jogo de bastante sucesso já anteriormente classificado com maiores de 18, trata-se de Manhunt 2. O jogo foi no entanto aceite pelo ESRC dos USA mas ao que parece tanto a Sony como a Nintendo, recusaram para já lançar o jogo nas suas plataformas tal como se encontra. Videojogo produzido pela Rockstar, bastante experiente nestas discussões, lembre-se o recente caso da sequência Hot Coffee escondida em GTA: San Andreas (2004) e que não terá sido analisada pelas comissões de consumidores, por não lhes ter sido comunicado a existência de tal sequência no jogo por parte da Rockstar.

Neste caso especifico de Manhunt 2, que ainda não foi lançado sequer, a Rockstar já veio dizer que os "adult consumers who would play this game fully understand that it is fictional interactive entertainment and nothing more". E nós interrogamos-nos, será mesmo assim? A verdade é que muita violência se tem produzido e reproduzido nos videojogos, mas até agora ainda não se tinha ouvido falar de nenhum caso em que um videojogo fosse banido num país, dito, desenvolvido. Apesar de eu sempre ter defendido a indústria dos videojogos contra esta guerra persecutória de alguns lobbies instalados, lembro-me perfeitamente de quando saiu Manhunt no final do ano de 2003. Lembro-me de ter ridicularizado os media por mais uma vez atacarem um videojogo, mas também me lembro de pensar que aquele videojogo só era aceitável tendo em conta o panorama das capacidades de representação da emoção dos personagens, uma vez que do ponto de vista gráfico o jogo era de uma violência extrema e fazia-se acompanhar de uma temática de fundo em tudo ligada aos temas acima retratados sobre o Snuff Cinema. E se bem que tenha sentido que o jogo não merecia todo aquele frenesim dos media, a verdade é que não concordei nunca que um jogo com aquela abordagem pudesse ser comprado por menores de 18 anos e se a memória não me falha lembro-me de este ter sido catalogado em Portugal apenas para maiores de 16 anos. Mas pior que isso era ver nas lojas da especialidade e nos hipermercados, miúdos com 12 a 16 anos a comprar os jogos enquanto os pais os acompanhavam, como se fosse apenas mais um brinquedo lá para casa. É verdade que os selos da comissão portuguesa o IGAC tem pouco ou mesmo nenhum valor no panorama nacional, mas exigia-se que os pais estivessem um pouquinho mais atentos. Até porque no caso de Manhunt, as cópias vendidas em Portugal são as provenientes de Inglaterra que ostentam imprimido na própria capa (não em formato de selo destacável, como o do IGAC) o logo, com um fundo vermelho bem visível, da proibição a menores de 18. Talvez seja altura de reformar o IGAC e dar-lhe uma pouco mais de relevo no que toca a análise dos artefactos de grande consumo para que as pessoas passem a atribuir-lhe alguma credibilidade, ou então extinga-se e promova-se as classificações de outros países europeus.

Voltando a Manhunt 2, interrogo-me porque terá sido este desta vez travado pela BBFC e tenha a Sony e Nintendo à perna. Como ainda não foi colocado à venda, tinha data prevista, meio de Julho, nada posso dizer sobre o jogo em si mesmo. Mas pensando no primeiro jogo e colando-lhe agora as palavras do Director da BBFC, David Cooke, julgo que não será difícil perceber o porquê:

"Manhunt 2 is distinguishable from recent high-end video games by its unremitting bleakness and callousness of tone in a game context which constantly encourages visceral killing with exceptionally little alleviation or distancing. There is sustained and cumulative casual sadism in the way in which these killings are committed, and encouraged, in the game." [6]

Ou seja, o problema não será tanto a capacidade de representação gráfica, até porque Manhunt 2, foi produzido apenas para a PS2 e a Wii, mas centra-se sobre o seu conteúdo, o modo como a violência extrema é apresentada, sem qualquer contextualização que a justifique. Torres e Cocker da Gamespot [7], referem que o jogo não terá um impacto maior do que teve Saw (2004) ou Hostel (2005). Realmente são dois filmes muito duros, visualmente muito fortes e ao nível de conteúdo talvez ainda mais fortes mesmos. Mas não comparemos, nem confundamos as coisas. A violência em Saw e Hostel, apesar de extrema, é contextualizada, sendo que em nenhuma situação são geradas possibilidades para a empatia ou vicariedade face aos perpetradores de violência, o que não me parece ser o caso de Manhunt 2 no qual o suposto herói, e homem a ser caçado, é um ser brutal capaz de desancar tudo o que lhe aparece pela frente, mesmo quando o jogador nem sequer nessa hipótese tenha pensado...



[1] Mtv multiplayer
[2] Edge culture
[3] Wikipedia (a)
[4] Guardian
[5] Wikipedia (b)
[6] Times
[7] Gamespot

1 comentário:

  1. Faz-me lembrar a história do lobo. Quando vinha mesmo o lobo, ninguém acreditou.
    Por isso, quando a CS generalista se refere aos videojogos fico de pé atrás.
    Neste caso, há razões para se estar alerta. O que me irritou na notícia foi o título* e a referência ao debate. Voltando agora à referida notícia*, gostei de ler os comentários. Afinal a notícia lançou algum debate... :)

    * Suspensão de "Manhunt 2" reabre debate sobre violência nos jogos de vídeo

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