julho 31, 2014

Entrevista com Luís António, director de arte de videojogos

Luís António nasceu em Lisboa há 32 anos, trabalha em São Francisco na Thekla Inc, mais propriamente como sénior na equipa responsável pela direcção artística do novo projecto de Jonathan Blow, "The Witness", para a PS4. Antes de se aventurar pelo mundo dos videojogos, licenciou-se em Design de Comunicacão na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa.


No passado mês de Março apresentou a comunicação "The Art of the Witness" na GDC 2014, na qual explica minuciosamente o processo criativo por detrás da arte de "The Witness". Foi depois de ver essa talk que tive vontade de o entrevistar. Trocámos alguns e-mails, e aqui ficam algumas questões e respostas. A partir do meio da entrevista, as questões surgem com alusão directa ao que o Luis António nos apresenta nessa comunicação, por isso aconselho vivamente a verem o vídeo da palestra na GDC Vault.




- Porque foste para UK em 2006?
:: No final da minha licenciatura eu já sabia que queria trabalhar na área dos videojogos. Na altura, a industria em Portugal era praticamente inexistente pelo que a única escolha era começar a minha carreira no estrangeiro. A Inglaterra, em termos de videojogos, sempre foi muito desenvolvida e a proximidade de Portugal fez-me sentir que seria um bom sitio para começar.
Mal terminei a licenciatura, comecei a enviar CVs para vários estúdios em Londres, até que acabei por ter uma resposta da Rockstar Games e parti sem olhar para trás.


- O que te motivou a trabalhar em 3d para jogos? O que representam os videojogos para ti?
:: Desde criança que estou rodeado de tecnologia, desde o Spectrum ZX à espera que a cassete fosse carregada até aos comandos do MS-DOS para instalar um jogo (o Doom em 10 floppy disks....). Os meus pais nunca me compraram consolas e por causa disso comecei a apreciar os computadores e a tecnologia tanto pelo lado do entretenimento, bem como pelo da criação.
O nível de intimidade que os videojogos são capazes de criar com o utilizador é fascinante. São o único meio que conheço capaz de produzir experiências que não são estáticas. Ao contrário de livros ou filmes, os videojogos reagem e adaptam-se durante a sua utilização criando emoções e experiências únicas. Também o facto de ser um medium recente faz com que cada projecto seja um desafio novo. Fazendo uma comparação com o cinema sinto que ainda estamos na época das películas a preto e branco e dos filmes mudos.


- Antes de trabalhares nas grandes empresas - Rockstar, Ubisoft - tinhas trabalhado em pequenas empresas? Como é o ritmo e a liberdade criativa nessas grandes empresas? 
:: Antes da Rockstar, como mencionei, estava ainda na Universidade. Nessa altura o meu sonho era ser ilustrador e fazer banda desenhada. Durante esses anos trabalhei como freelancer para vários jornais e revistas (Expresso, Unica, SIC, Maxim, etc).
Foi quando comecei a aprender 3D que reparei que a minha paixão pelo lado digital era muito mais forte. Felizmente a minha experiência em 2D complementou esta nova aprendizagem.
Quanto à liberdade criativa nas grandes empresas… acho que é um processo muito “industrializado” . Existe criatividade mas dentro de modelos pré-definidos. Ao fim do dia o objectivo é fazer lucro, o que faz com que as boas ideias não tenham espaço para crescer.
A Rockstar tem uma identidade muito forte e a filosofia de nunca lançar um jogo até este estar fenomenal, mesmo que se arraste for vários anos, é excelente. Quanto à Ubisoft… ao contrário do que eu esperava,  estão praticamente focados no lucro (o que faz sentido visto que originalmente eram uma Publisher).
O que me atraiu no Canadá foi a promessa de uma equipa pequena,  projectos criativos com muita liberdade e o conforto financeiro de um gigante. Infelizmente, isso traduziu-se em pressão constante por parte dos produtores e accionistas que não confiam na equipa, porque as ideias não se enquadram no modelo de produção que eles consideram seguro.


- Qual é a progressão normal na carreira do 3d no mundo dos videojogos? Artista 3d, Lead Artist, Art Director, o que definem em concreto estas etiquetas?
:: Acho que hoje em dia é difícil definir uma “progressão normal” devido à diversidade de funções/posições que continuam a mudar constantemente à medida que a tecnologia evolui. (e.g. Character Artist, Environment Artist, Texture Artist, Sculpter, etc.).
A progressão em termos de experiência é algo como: Junior Artist (sem qualquer experiência a iniciar a carreira), Artist (3 ou mais anos de carreira), Senior Artist (5 ou mais anos) e depois, dependendo das escolhas pessoais e oportunidades, pode-se chegar a Lead Artist (coordenador de uma equipa ou de uma parte da equipa - eg. Lead Technical Artist ou Lead Character Artist) e finalmente Art Director (coordenador de toda a arte num projecto/estúdio).
Mas mesmo em grandes estúdios estas posições flutuam, dependendo do projecto e dimensão da equipa. Por exemplo, na Valve, pode-se ser um Producer num projecto e Lead Artist no seguinte, dependendo da forma como as respectivas competências funcionam com o resto da equipa.


- Foste para o Quebec para a Ubisoft, mas acabaste por ir parar a San Francisco ao projecto "The Witness". Como é que isso aconteceu, submeteste o CV, tiveste entrevista?
:: Já acompanhava o trabalho dos Indies na zona da São Francisco como Jonathan Blow e Chris Hecker há vários anos.
Ainda no Canadá, troquei correspondência com o Chris com propostas para os personagens de SpyParty. Fiz alguns modelos no Zbrush e mantivemos contacto para criar uma possível colaboração quando o protótipo estivesse suficientemente avançado.
Como demorou mais do que ele estava à espera e eu sentia que era altura de mudar, ele pos-me em contacto com o Jonathan Blow para colaborar com o “The Witness”.
Trocámos correspondência e fiz alguns testes visuais, deslocando-me depois a San Francisco por alguns dias, para nos conhecermos pessoalmente. Sinceramente, estes foram os testes de arte mais interessantes que já fiz. O Jonathan estava mais interessado na minha capacidade em resolver problemas visuais de game design e praticamente desinteressado no meu nível técnico para 3D. Foi um processo muito diferente comparado com os outros estúdios.


- Quando referes que as hierarquias são orgânicas na Thekla, referes-te à ausência de etiquetas hierárquicas, mas como é que isso afecta o vosso trabalho?
:: Sim, neste estúdio não existem hierarquias ou posições. Cada um contribui com o talento que tem. Claro que fomos contratados com base no nosso background (e.g. Programadores, Artistas, etc), mas as disciplinas podem-se cruzar, se necessário.
Acho que o maior impacto é em termos de dedicação e paixão pelo projecto. Cada pessoa participa o quanto quiser e, o facto de não ser obrigada a fazê-lo, cria um laço mais sincero e mais forte de confiança e honestidade.
Todas as discussões acabam por colocar a equipa ao mesmo nível e chegamos a resultados em que todos concordam e ninguém abusa da sua posição. Acaba por nos tornar mais humildes e abertos à crítica, venha de um Júnior ou de um Sénior.


- É inevitável ver o trailer de "The Witness" e não pensar em "Myst", concordas? Estamos perante um jogo sem personagens, ou não? Os architects de que falas são personagens do passado dessa ilha? E as mecânicas são essencialmente puzzles visuais ou existem mecânicas com os objectos de jogo, além do laser?
:: Em termos do game design, infelizmente não posso revelar nada até o jogo sair. Acho que o Myst é, sem dúvida, uma influência (um dos artistas na equipa é Eric Anderson, agora Art Director em Obduction, a sequela do Myst a ser feita pelo estúdio que criou Myst). A maneira como os puzzles são desenhados é bastante diferente, mas em termos de ambiência e mistério sinto que existe definitivamente uma influência.


- Aquilo que aqui nos apresentas é a desconstrução de uma verdadeira aventura científica ao mundo da arte visual. Ou seja, a vossa forma de fazer as Art Guidelines que nos apresentas, não são a normal forma de trabalhar a arte nos grandes projectos, correcto? Porque parecem mais uma abordagem da engenharia, ou de design, em que claramente vocês estão a tentar resolver um problema (What and how to simplify?), e dão passos em direcção a ele, procurando extrair daí regras, padrões de acção para serem replicados no resto do trabalho? 
:: Pergunta difícil… o modo como abordamos a direção artística foi baseada no que eu aprendi e funcionou no passado. Penso que cada projecto e cada estúdio aborda esse desafio de maneira diferente, e a indústria é muito nova para ter modelos bem definidos. A maior diferença em relação a estúdios AAA é que eles não se podem dar ao luxo de ter um protótipo de alta qualidade antes de começar a exploração pelo estilo visual, pois têm uma equipa de +300 artistas à espera de orientação.



- Quem é que desenhou esse objectivo para as Art Guidelines, foi o Blow? Julgas que a sua formação em Computação pode estar de algum modo relacionado com essa lógica?
:: Sim, os objectivos foram definidos por Jonathan Blow. Sempre me impressionou que desde o início do projecto ele tem um objectivo muito especifico para a arte do jogo.
O seu background em programação dá-lhe o poder de criar conceitos sem precisar de terceiros, mas parece-me que é mais a filosofia de vida e o seu modo de pensar que definem a sua lógica.


- Isto leva-nos ao campo da autoria, da visão criativa. E da tua talk pode-se depreender uma filosofia base que nos aponta para algo como, “Da complexidade do Real à Simplicidade e Unicidade de um Mundo Autoral”. De que modo é que esta visão estabelecida para as Art Guidelines se relaciona com a narrativa, e com o gameplay? 
:: Este jogo é baseado em clareza e simplicidade. Ser capaz de transmitir uma mensagem do modo mais puro e preciso possível sem qualquer “ruído” desnecessário.
Visto que os gráficos são o canal principal para a transmissão de informação entre o jogo e a nossa mente, temos que ser extremamente cuidadosos quando criamos a arte do jogo e definir claramente o que deve ser relevante ou secundário.
Seguindo este princípio, acho que podemos dizer que está tudo interligado. O facto de necessitarmos de ter gameplay e narrativa de base para definir o estilo visual, faz com que a arte se torne uma extensão da mensagem do jogo. Esta abordagem permite que os princípios fundamentais do jogo, a mensagem que o Jonathan quer transmitir, seja reforçada pelo aspecto visual.



- No final falas de algo que venho considerando ser de extrema relevância no campo da autoria visual, e que tem que ver com o tempo. Ou seja, para se conseguir imprimir uma marca autoral numa obra visual é preciso tempo de contacto com a obra, e iterações várias ao longo desse tempo. Julgo que concordas, mas gostava de saber como analisas esse processo em termos criativos pessoais?
:: Penso que a quantidade de tempo necessária é relativa. Jogos como “Papers, Please” ou “Ernesto”, o novo jogo de Daniel Benmergui  são exemplos que mostram que realmente importante é ter uma visão clara dos objectivos que pretendemos atingir com o nosso projecto e ser capaz de os destilar no processo de iteração (ambos os jogos foram relativamente rápidos a criar).
Este objectivo pode mudar radicalmente apesar da raíz do conceito já existir na nossa mente;  é quase como criar uma palavra nova.
Este processo pode demorar muito tempo e é fácil para um autor perder-se nessa viagem durante vários anos e chegar a um ponto de saturação e desgaste onde o resultado final não é proporcional ao tempo e esforço despendido. (como por exemplo "Shadow Physics" de Steve Swink)
O “The Witness” mostrou-me que horários e deadlines são inimigos da criatividade e do processo de criação. Uma ideia, enquanto está a ser desenvolvida, não pode ser colocada num projecto com Milestones e Budgets, necessita de espaço para crescer e se redescobrir se necessário.


julho 30, 2014

LA Noire (2011)

Começo por uma declaração de gosto pessoal. Não sou propriamente fã do género Noir, na sua encarnação hollywood studio-system (1940-1950), não tendo que ver com a fase, mas antes com um conjunto de lógicas formulaicas que se repetem e acabam criando uma espécie de fuga ao real. Gosto de algumas obras mais experimentais como "Third-man" (1949) ou "Touch of Evil" (1958) mas são excepções. Na verdade nunca gostei muito de Bogart, não das suas competências, mas dos papeis encarnados. O meu maior problema com o género julgo ser o enfoque no plot, perdendo o desenvolvimento dos personagens. Nos anos 1990 tivemos “L.A. Confidential” (1997) de Curtis Hanson, em 2000 tivemos “The Black Dahlia” (2006) de Brian de Palma, ambos tentando recuperar o género, mas nenhum destes me demoveu. Ora os problemas que apresento ao género cinematográfico Noir, não podiam deixar de aparecer no videojogo "LA Noire" (2011), pois ele procura fielmente emular esse género cinematográfico, e fá-lo com uma enorme qualidade, tanto em abrangência como profundidade. Dificilmente alguém que adore o género cinematográfico, não gostará do videojogo. Por isso muito do que direi poderá estar contaminado com alguma desta minha aversão ao género.




No campo da arte podemos dizer que "LA Noire" é quase irrepreensível, tanto no campo visual como sonoro. Entrando no jogo é muito fácil sentirmo-nos imersos numa cidade de LA dos anos 1940, desde a arquitectura, aos cenários, passando pelos outdoors publicitários, roupas, carros, etc. A sua apresentação é de excelência, tanto em realismo como na composição gráfica, de cor e de paisagens sonoras. Dá vontade passear por LA em "LA Noire", a pé ou de carro. Para ajudar, o motor do sistema permite-nos não apenas passear pelas ruas, mas entrar em lojas, conversar com personagens, voltar a sair, tudo sem pausas nem esperas. Finalmente ainda no campo da arte, é possível jogar a preto e branco, para se aproximar mais do género cinematográfico dos anos 1940, mas apesar de ficar bastante bem, aconselho antes a versão a cores, já que o trabalho de cor é soberbo e garante uma imersão mais fácil.

Sobre o gameplay "LA Noire" é na sua essência um jogo de aventura gráfica, apesar de conter algumas cenas de acção. Até porque tendo em conta que o tema de fundo é a resolução de mistérios, nenhum outro género se adaptaria melhor à constante procura de pistas. A base do jogo assenta assim na reconstrução do puzzle narrativo que explica o que se passou, que desvela o mistério. Neste sentido é um modelo que cruza na perfeição as necessidades do jogo e do enredo da narrativa. Embora como disse já acima, acaba por atirar para segundo plano os personagens.

Assim somos um polícia que será promovido a detective, e depois novamente despromovido. A progressão desenrola-se ao longo de 5 secções, que correspondem à nossa progressão de competências como polícia (patrulha, trânsito, homicídios, narcóticos e incêndios), e ao longo dos quais teremos de resolver cerca de 20 casos. Os primeiros casos explicam como funcionam as mecânicas, o que é esperado de nós. No final da primeira secção já compreendemos o alcance das nossas acções, sendo que nas secções seguintes resta-nos repetir o que já aprendemos. Cada uma tem a sua esquadra de polícia, em cada uma tenho um novo parceiro, e em cada uma resolvo crimes distintos, e em cada uma faço sempre o mesmo. Para piorar o cenário, o que vou fazendo em cada secção tem pouco ou nenhuma influência nas seguintes.

O ponto alto do gameplay, e do próprio jogo são os inquéritos e o sistema de expressão facial. O jogo foi extremamente bem recebido muito por conta deste elemento, que consiste fundamentalmente numa capacidade do sistema de nos mostrar através das caras de cada personagem, se este está a mentir ou não. Ou seja, a implementação do jogo é minuciosa ao ponto de se poderem notar trejeitos faciais, pequenos movimentos de músculos na cara, ou gestos com as mãos e os ombros que nos iluminam sobre a potencial veracidade do que está ser dito pelo personagem. Em termos tecnológicos e técnicos, temos de admitir que foi um avanço considerável face ao que tínhamos até "LA Noire". Mesmo o efeito de uncanny valley que surge aqui, não é suficiente para danificar a eficácia expressiva concebida pela equipa de desenvolvimento.


Mas se a componente técnica é de excelência, o mesmo não direi do gameplay associado. E julgo que o problema surge essencialmente pelo facto de terem criado um sistema de inquisição baseado em três vectores (Lie - Doubt - Truth). Se na maior parte das vezes conseguimos percepcionar a verdade ou mentira, a dúvida gera, como a própria indica, demasiadas dúvidas. Acredito que o tenham feito, para evitar ter um sistema demasiado fácil, ou seja a Doubt introduz um bom nível de incerteza na jogabilidade, mas irrita, porque percebemos que não temos como nos tornar verdadeiros mestre do sistema.

Ainda assim, estes problemas acabam por ser muito bem compensados, já que o jogador nunca é impossibilitado de prosseguir, mesmo que falhe todas as perguntas. Ou seja, existe uma certa condescendência por parte do jogo, que está muito mais centrado no fluxo narrativo, do que na componente de jogo. Isto é algo que se pode verificar também por exemplo nas missões de maior acção, em que ao fim de três tentativas seguidas, nos é dada a opção de avançar para o momento seguinte da história sem ter de realizar a peripécia pedida. Ou ainda, o facto de podermos evitar conduzir o carro a maior parte das vezes. O mesmo se pode dizer sobre o método de busca das pistas, o sistema sonoro desenvolvido, funciona como uma espécie de jogo de quente-frio, e quando as pistas necessárias estão colectadas novo aviso é dado, para que possamos prosseguir na história, e não perder tempo no espaço aberto.

Do que vimos então temos um videojogo que funciona muito mais em função da história, do que do jogo em si. E isso acaba sendo ainda mais incomodo quando percebemos que a própria história, nomeadamente o desenvolvimento de personagens e a progressão narrativa são amplamente descuidados. Começando desde logo pelo próprio Cole (protagonista), a sua construção faz-se ao longo de todo o jogo, como um apanhado de pistas que vão sendo dadas em flashback. Mas na verdade nunca chegamos a ser apresentados ao verdadeiro Cole, quem é, o que pensa, que família tem, que relação tem com ela, o que sente realmente, além de resolver mistérios.

A cena crucial do jogo é aquela em que somos despromovidos dos narcóticos aos incêndios. É algo que é fruto de uma acção que nos é atribuída, mas para a qual nada contribuímos. Sentimos aí a injustiça a funcionar. O que por outro lado é bem conseguido, já que é esse o tipo de sentimento que o jogo pretende estimular naquele momento. Mas se o sentimos naquele momento, rapidamente se desvanece e voltamos aos mistérios e pistas como antes. Não fosse estarmos na última secção em que todas as histórias do jogo começam a ser coladas e a fazer sentido. Ou seja passamos 18 horas a repetir acções para experienciar o mundo do jogo, e só nas últimas duas horas é que nos é dado a sentir a verdadeira progressão narrativa. Mais, só aqui percebemos o que vai dentro da cabeça de Cole, e o porquê de tanta confusão com a sua personagem.

LA Noire não deixa de ser uma boa experiência, mas está longe de ser um jogo memorável como alguma imprensa nos vendeu quando saiu.

julho 28, 2014

Animação da revolução francesa de "Assassin’s Creed"

"Assassin’s Creed 5" (ou Unity) promete tornar-se no mais importante videojogo da série, e as razões para tal são várias, desde logo porque a acção se situa em França, país de onde são originários os responsáveis máximos da Ubisoft. Mas também porque o momento histórico escolhido para este volume, a Revolução Francesa, é um dos mais incisivos da série, tendo em conta o contexto atual que vivemos, sob o reinado do capitalismo selvagem (1% vs. 99%), próximo dos reinados que se viviam em França antes da revolução.




Assim e para demonstrar o empenho que a Ubisoft está a colocar neste novo tomo, além dos vários trailers e vídeos históricos, de gameplay e do engine, foi agora publicado uma curta de animação que retrata os momentos históricos que antecedem a acção do jogo. O filme poderia ser apenas uma acção de marketing, mas é mais do que isso, é uma obra criada por Rob Zombie, fundador da banda White Zombie e realizador de vários filmes do género de horror, e conta ainda com a ilustração de Tony Moore, o célebre desenhador da banda desenhada "The Walking Dead" (2003) de Robert Kirkman.


"Rob Zombie’s French Revolution" (2014) de Rob Zombie

Em termos formais, gostei muito da animação criada por Nick Young, motion designer, a partir do trabalho de Tony Moore. As várias técnicas utilizadas para conferir movimento ao desenho através do corte, fundamentadas no uso de "squash and stretch" e na excelência do manuseamento do movimento de câmara, demonstram que para fazer uma boa animação, as competências não estão no desenho, mas na noção de movimento, e na capacidade de potencializar as tecnologias para imprimir esse movimento aos objectos. É óbvio que o desenho é fundamental, o trabalho de Tony Moore contém em si mesmo já uma enorme dimensão dinâmica, mas cabe ao animador depois conferir o movimento, a animação. Fica o making of realizado que dá mais algumas pistas interessantes sobre todo o trabalho.


Behind-the-scenes of Rob Zombie’s French Revolution

julho 26, 2014

Preservação de memórias nos videojogos

Uma história pessoal contada numa simples caixa de comentários de um Youtuber (PBS Game/Show) há cerca de um mês, acaba de tomar a rede de assalto, nomeadamente toda a comunidade de videojogos. É uma história de carácter intimista que joga com um dos temas de maior perplexidade para humanidade, a partida de entes queridos. O YouTuber Jamin Warren tinha realizado um programa sobre a espiritualidade nos videojogos em Maio, no entanto foi um comentário ao seu programa, feito há umas semanas atrás, que ganhou o interesse da comunidade e se espalhou viralmente pela rede. Se a forma e os efeitos são interessantes, mais interessante ainda é a própria história, daí o seu poder de viralidade.


Antes de citar a história deixo uma linha introdutória para quem não está por dentro das tecnicalidades dos jogos de corridas. Alguns videojogos de rally ou formula 1 oferecem uma função de ajuda que consiste em manter ao longo de cada nova corrida uma transparência do carro da volta mais rápida anterior. É uma transparência, não se pode interagir com ele, serve essencialmente para que o jogador possa perceber o que fez antes, e como pode melhorar o seu resultado. A sua transparência acabou por definir este elemento dos jogos de corridas como “Ghost”. A história que se segue, é relatada por 00WARTHERAPY00 nas caixas de comentário do YouTube dando conta de uma experiência muito particular com um destes Ghosts.

“Well, when i was 4, my dad bought a trusty XBox. you know, the first, ruggedy, blocky one from 2001. we had tons and tons and tons of fun playing all kinds of games together - until he died, when i was just 6.
i couldnt touch that console for 10 years.
but once i did, i noticed something.
we used to play a racing game, Rally Sports Challenge. actually pretty awesome for the time it came.
and once i started meddling around... i found a GHOST.
literaly.
you know, when a time race happens, that the fastest lap so far gets recorded as a ghost driver? yep, you guessed it - his ghost still rolls around the track today.
and so i played and played, and played, untill i was almost able to beat the ghost. until one day i got ahead of it, i surpassed it, and...~
i stopped right in front of the finish line, just to ensure i wouldnt delete it.
Bliss.”
A rede reagiu quase em uníssono e profundamente emocionada a esta história, porque ela dá conta de algo raro, o registo, a preservação, do comportamento de alguém que já partiu, de algo que apenas um videojogo poderia registar. Os site que falam sobre esta história multiplicam-se e as reacções no YouTube também, ficam alguns desses comentários
SoonKyu515: “one of the most touching comments i've ever seen on youtube..”
Jayden z: “really really touching story, I cried after read your story. “
Hochi1983: “sure your father will feel happy in heaven because he knows his son can do better than him :D”
Ng Karsten:  “It did really touched me.Your dad will be proud of you as you have broken his record.”
A Sd: “When I read your touching story...just feel a shudder…”
Waye Fok: “this is really a touching story... Backup the data and never loose it :)”
Douglas AS: “You are not alone brother, your father will be at your side forever...Remember this…”
Chega a estabelecer-se algum diálogo com algumas pessoas que recordam histórias parecidas
TommyJ77: “Dude I can't handle this. This hits me so hard. I used to play video games with my dad too. We'd play Mario Kart 64 and Zelda. He died when i was 16. How i envy that Ghost racer. :’(”

00WARTHERAPY00: “+TommyJ77 Memories are what counts. afterall, all i have is a bit of coded data. its only in their memorial meaning that it stands out.”
O autor da partilha, 00WARTHERAPY00, procura minorar o sofrimento de TommyJ77, outra pessoa que também perdeu o pai, dizendo que são apenas umas linhas de código, mas na verdade são bem mais do que isso. Estas linhas de código, tal como os compostos químicos de uma fotografia ou o magnetismo de uma cassete de audio, preservam uma parte do ente que partiu. Se uma fotografia preserva a imagem e a cassete de audio preserva o som, este videojogo preservou o comportamento traduzido em acções de um carro de corridas. Ou seja, cada viragem, aceleração ou travagem representam decisões e escolhas únicas, pertença exclusiva dessa pessoa. Uma pessoa que já não existe, mas que de cada vez que se liga a consola parece emergir ali na nossa frente.

Sobre a veracidade desta história não temos como a confirmar, faz parte da rede e das suas possibilidades. Mas a forma como é descrita, e as possibilidades relatadas leva-nos a crer que seja real. Um dos criadores do jogo em questão, Rally Sports Challenge, reagiu já, também emocionado, no Twitter, conferindo mais alguma credibilidade ao relato.

Esta história não é única, outras existirão que desconhecemos, mas uma outra ficou também imensamente conhecida, ocorreu em 2007, na altura a propósito de uma mãe que jogava Animal Crossing. O impacto levou à criação de tiras de banda desenhada da história, e à geração de vídeos dessas tiras, aqui abaixo deixo o mais recente vídeo. São os videojogos a demonstrarem o melhor da essência de que são feitos, arte e media.


[Quero agradecer ao Diogo Gomes o envio desta história.]

julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


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julho 20, 2014

"Assassin’s Creed III" (2012)

A série “Assassin’s Creed” (AC) da Ubisoft representa um feito inestimável no campo da representação histórica audiovisual. Com base num fio de história suportado por uma ficção templária, o primeiro da série, “Assassin’s Creed” (2007), aborda a Terceira Cruzada, a luta entre o cristianismo e islamismo no início do primeiro milénio. O segundo volume, "Assassin’s Creed II" (2009), inicia-se passados 400 anos, na Renascença Italiana, período nobre de emergência da razão e arte, mas também do início da decadência da igreja. Neste terceiro volume, mudamos de continente, passaram-se mais 250 anos, a América prepara-se para lutar pela Independência. Cada um destes jogos permite-nos viajar e experienciar, de forma participativa, momentos fascinantes da história fazendo uso de níveis de realismo audiovisual extremamente gratificantes.



Dos três, e porque não só as tecnologias evoluem mas os artistas vão passando a deter melhor conhecimento dos motores de jogo, o terceiro é o que apresenta um nível visual mais elaborado e rico em detalhe. Desde a animação dos personagens, ponto alto de toda a série e que se destaca no mundo dos videojogos, aos ambientes e cenários, a perfeição gráfica, sonora e de movimento abunda. Jogar AC3 é um constante deleite, a contemplação constante de um mundo que já não existe que parece emergir de cada vez que ligamos a consola. Viajar por Boston ou Nova Iorque entre 1700 e 1800, interagir com os seus habitantes, encarar os seus costumes, é uma delícia. O director de arte, Chinh Ngo, referencia a inspiração na técnica de pintura chiaroscuro, na qual Caravaggio foi exímio, como central no desenvolvimento visual de AC3,
“I was inspired by the chiaroscuro style of painting. They are filled with contrasts, saturate colors, light and dark. Very early on in the production I knew I wanted to bring these visual contrasts, these colors, into the art direction for all the night shots. That may differ a bit from the end result but that’s a part of the challenge for the art direction.” [fonte]
Em termos de design de jogo temos do melhor, mas também temos do pior. AC3 tem uma curva de entrada baixa, ao fim de 5 horas estamos ambientados, e percebemos as possibilidades do jogo, sentimos a mestria emergir, e a partir daí começamos a viver a experiência participatória. Por outro lado, muito do que descobrimos, do potencial de jogo, acaba tendo pouca relevância para a história principal. Ao contrário de AC2 em que muitos dos elementos que apanhávamos (ex. páginas do codex, etc.) ou do dinheiro que conseguíamos, contribuíam para melhorar as nossas competências no mundo de jogo, aqui é tudo muito secundarizado. AC3 deixa para trás o foco no personagem, e diria mesmo a relação entre jogo e narrativa, para se focar na acção e história, procurando sempre que possível potencializar a fluidez, evitar as pausas e as demoras.

Mas o pior do design surge nas falhas de implementação. Das corridas aos saltos e ataques que falham, à minuciosidade de execução de alguns segmentos de missões. De modo a tornar AC3 verdadeiramente deslumbrante visualmente, grande parte das nossas acções no jogo são profundamente trabalhadas em termos de animação. Esta abordagem dificulta imenso a gestão da interacção, acção e uso de animação pré-gravada. Uma das cenas mais fantásticas que se pode apreciar quase desde início é o atravessar do interior de casas, quando entramos em casas nas quais não é suposto existir interacção, somos levados por meio de uma animação até ao outro extremo da casa, ou por exemplo quando matamos alguém, ao movimento normal de uma acção do braço, pode suceder-se uma animação com uma vista de câmara de cima que enfatiza o assassinato. Tudo isto torna a gestão técnica destes momentos por parte do jogo muito mais complexa. Deste modo, ao longo do jogo vão acontecendo falhas que nos obrigam a repetir sequências, criando irritação porque o personagem não reage como esperado, porque o mundo não se dá. Estes problemas não estão sempre presentes, mas são pouco admissíveis ao nível de um jogo deste porte.

Sendo um jogo tão focado na narrativa, no conteúdo, aquilo que tem para dizer é bem trabalhado e suficientemente detalhado e suportado. Por outro lado o design do storytelling acaba por falhar no momento crucial, o fechamento. Ou seja, estamos ali para contribuir para a independência dos EUA e para salvar o nosso povo, mas tudo isso passa e acontece, sem que se sinta um clímax. Não existe o desenho de uma curva emocional que nos estimule, nos suspenda, para que depois queiramos acreditar no seu desvelamento e sentir a recompensa. No final parece mais que se buscou um discurso documental, de descrição daquela época, em que nos deixaram participar, mas posto isso, continua tudo igual a si próprio, antes e depois da nossa actuação ali.

Por outro lado, julgo que o problema talvez assente também no facto de terem procurado estabelecer uma relação muito mais forte entre a história do passado (dentro do Animus) e o presente. Isto foi um erro, porque AC vale o que vale pelas histórias dentro do Animus, a corrente ficcional do presente, assente nas guerras entre sucessões de templários é demasiado frágil, sem coerência, e totalmente incapaz de motivar, seja o jogador seja o espectador. Não joguei ainda o 4, mas espero ansiosamente pelo 5, e aquilo que me move é a Revolução Francesa, não os templários.




No cômputo geral AC3 é uma experiência bastante rica para quem se interesse pela componente histórica. Poder dialogar com George Washington ou Benjamin Franklin, participar em momentos históricos como - a Boston Tea Party, o Great Fire of New York, as Battles of Lexington and Concord, ou a Declaration of Independence - é entusiasmante e envolvente. Tudo isto suportado por uma obra de qualidade estética ímpar, porque mesmo quando a jogabilidade não acerta a atmosfera nunca se esvai por completo, mantendo-nos interessados no continuar do desvelamento da narrativa.

julho 18, 2014

Processos de escolha em Mass Effect

Já era para aqui ter analisado a trilogia Mass Effect mas como tenho andado a mastigar a mesma para um texto académico, acabei por não o fazer. Entretanto, como tinha de fazer uma apresentação no Retiro do Programa Doutoral em Média-Arte Digital da Universidade Aberta e Universidade do Algarve sobre narrativas interactivas, acabei por aproveitar uma parte desse trabalho que andei a fazer.


O essencial das minhas preocupações com Mass Effect centram-se sobre o modo como o receptor é incluído na construção do universo narrativa, desde a representação (mundo e personagens) à mensagem (eventos apresentados), e ainda sobre o modo como são trabalhados alguns momentos de decisão mais complexos. Deixo abaixo os slides da apresentação, espero em breve produzir o texto completo.

julho 10, 2014

Daqui a 30 anos, segundo Negroponte

Nicholas Negroponte é um dos principais responsáveis por eu fazer o que faço hoje. Nesta sua TED de 2014 diz a certo ponto que quando a Wired saiu, os miúdos deixaram de comprar a Sports Illustrated para passar a comprar a Wired, no meu caso deixei de comprar a Cahiers du Cinema, mudando claramente os meus interesses. Mas provavelmente o mais importante tenha sido o seu livro "Being Digital" (1995) que me fez despertar para todo um novo mundo da tecnologia no qual o computador passava a assumir o lugar de extensão expressiva do humano.



Nesta TED Negroponte passa em revista as 14 TED talks que deu, um número que dá bem conta da sua importância na arena dos desenvolvimentos das tecnologias da comunicação. Ao mesmo tempo aproveita para enfatizar o facto de ter sido responsável por alguns projectos e algumas afirmações visionárias que em tempos foram motivo de chacota ou refutação mas que hoje são amplamente usadas ou aceites.

Nesse sentido, e respondendo à questão que Chris Anderson (director da TED) lhe tinha lançado, “qual é a sua previsão para daqui a 30 anos?”, Negroponte responde com uma ideia simples, mas ao mesmo tempo tão ficção-científica, que nos parece tão impossível como ter um carro nas estradas sem condutor!
“one of the things about learning how to read, we have been doing a lot of consuming of information going through our eyes, and so that may be a very inefficient channel. So my prediction is that we are going to ingest information You're going to swallow a pill and know English. You're going to swallow a pill and know Shakespeare. And the way to do it is through the bloodstream. So once it's in your bloodstream, it basically goes through it and gets into the brain, and when it knows that it's in the brain in the different pieces, it deposits it in the right places. So it's ingesting.”


Acredito nesta previsão, só não sou tão optimista como Negroponte, talvez porque como ele diz, daqui a 30 anos já cá não estará, mas eu talvez ainda cá esteja. Por isso acredito antes que isto possa vir a ser possível dentro de 50 anos. Mas tenho de acrescentar aqui uma variação ao que é dito por Negroponte, eu não acredito que esta ingestão venha substituir a leitura, pela simples razão que aquilo que vamos ingerir não serão comprimidos de texto. Aquilo que vamos ingerir são os filmes e videojogos do futuro, realidade virtuais que simularão no nosso cérebro histórias, acções e experiências. Aliás falei disto quando aqui discuti o último filme de Ari Folman, "The Congress" (2012).

julho 06, 2014

Torna-te artista, agora!

Kim Young-ha (1968) é um dos escritores mais respeitados da Coreia do Sul. Depois de vários anos como professor na Korean National University of Arts resolveu deixar tudo para trás, ir morar para NY e viver apenas da escrita. Nesta TED, “Be an artist, right now!” dada em Seoul em 2010, Kim Young-ha fala sobre os dilemas que nos impedem de nos tornarmos artistas, as amarras que nos prendem, e aquilo que podemos fazer para as quebrar.



Uma frase vai ficar marcada para mim depois de ver esta palestra “The moment kids start to lie is the moment storytelling begins.”. Se nada mais fosse dito de relevo, esta frase teria sido suficiente para justificar o tempo que investi a ver a comunicação. É algo pelo qual já passei em casa, e já me interroguei, não neste sentido, mas nas razões do seu surgimento. Esta explicação apresentada por Kim Young-ha diz muito, se não tudo, sobre aquilo que somos e porque a arte é tão importante, mesmo quando sabemos, e como ele defende no final, respondendo à questão, “Para que serve a arte?”, “But art is not for anything. Art is the ultimate goal. It saves our souls and makes us live happily. It helps us express ourselves…". Isto porque criar arte é acima de tudo um acto que nos permite depurar aquilo que somos, porque o fazemos pela espontaneidade do nosso devir, emergindo do largar das amarras do dever, envolvido por actos de puro brincar. Como diz Young-ha, "just for the fun of it. Sorry for having fun without you”.

julho 05, 2014

Asghar Farhadi e os dilemas

Asghar Farhadi iniciou-se nas longa-metragens em 2003 e desde então realizou seis filmes. Hoje acabei de ver a sua filmografia, e se a procurei ver foi porque considero Asghar Farhadi o mais relevante realizador da atualidade. Farhadi não é apenas realizador das suas obras, é também o escritor destas, ainda que por vezes em parceria. Tal como com outros grandes realizadores, o facto de se escrever o texto de suporte à obra audiovisual faz diferença, no momento em que se procura dizer algo, em que se procura dar forma audiovisual a um sentir, a expressividade ganha com a fusão entre a mensagem e a forma. Farhadi fez a sua licenciatura e mestrado em cinema na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de Teerão, Irão.

Asghar Farhadi (1972)

Em 2003 realizou a sua primeira longa-metragem, “Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust), que tive o prazer de visionar na semana passada. É um primeiro filme, nota-se que existe ali algo pronto a emergir, mas isso nunca chega verdadeiramente a acontecer na tela. É uma obra inicial em que Farhadi está claramente mais preocupado em ser capaz de dar conta da história em termos audiovisuais, do que propriamente em inovar ou aprofundar o meio. Apesar de tudo, o filme indicia desde logo os temas de fundo que movem a escrita de Farhadi, o amor e as divisões sociais, os sacrifícios que este impõe e o modo como a cultura islâmica o aprisiona.

Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust) (2003)

O cerne do trabalho de Farhadi está centrado sobre a moral, essencialmente sobre os seus dilemas, capazes de levar os seus personagens ao extremo de si próprios, colocando-os à prova e obrigando-os a reagir. Neste sentido Asghar Farhadi aproxima-se bastante de Krzysztof Kieslowski, sendo que aquilo que os diferencia é apenas a camisa moral que vestem, uma de fundo cristã, a outra de fundo islâmica.

"Shah-re Ziba" (Beautiful City) (2004)

Se em 2003 Farhadi procurava apenas pôr-se à prova enquanto realizador, em 2004 a sua segunda longa-metragem, “Shah-re Ziba” (Beautiful City), surge já com toda a força da sua veia narrativa e exposição audiovisual. “Shah-re Ziba” põe em cena personagens que começam por parecer tão simples, discretos e fáceis de compreender, mas à medida que progridem com a narrativa vão-se densificando, enfrentando questões que parecem abrir-se para outras ainda mais complexas. Os personagens vão-se abrindo, como camadas de uma cebola em direcção centro, sentimos com o evoluir da história que estamos cada vez mais próximos dos seus âmagos, até que deixam de ser meros personagens e passam a ser pessoas de carne e osso na nossa frente, com as quais não conseguimos deixar de empatizar.

Isto acaba resumindo o modo de trabalho de Farhadi que se propaga através de todas as suas obras seguintes, "Fireworks Wednesday" (2006), "About Elly" (2009), "A Separation" (2011) e "Le Passé" (2013). Sobre este último e como já tinha dito antes, acredito que o facto de ter sido a primeira experiência de Farhadi fora do Irão, não tenha resultado tão instigante. Aliás basta ler as suas entrevistas para compreender o quanto do que está nos seus filmes está ligado à cultura do local que habita. Em certa medida, nota-se, tal como se notou na sua primeira longa “Raghs dar ghobar”, alguma preocupação maior em fazer bem e perfeito, e com isso acaba-se perdendo alguma arte e mestria. Mas estas duas obras denotam ainda mais toda a sua qualidade enquanto artista, como alguém que precisa primeiro de respirar o mundo que quer verbalizar, de o sentir na sua essência para então dar conta dele em imagens, sons e textos. Farhadi está assim bem distante do mero realizador de serviço, do técnico que marcha em função do predeterminado.

Julgo que aquilo que esta sua forma de trabalhar - viver, escrever e realizar - permite-lhe chegar a níveis que dificilmente se poderiam atingir de outra forma. O que podemos sentir nas suas obras é algo extremamente impregnado no todo, numa narrativa sempre densa com personagens sempre bastante complexos, tudo envolvido por uma realização muito próxima das questões, preocupada em transmitir os dilemas, secundarizando totalmente o acessório, encaminhando o espectador para o interior das suas personagens. Farhadi cria em cada uma das suas obras, momentos de profunda análise do que é ser-se humano, do que é viver-se com o outro, depender-se do outro, formar um todo com o outro.

Cada um dos seus filmes tem sido bastante fértil em prémios nos vários festivais internacionais de topo - Cannes, Veneza, Berlin - incluindo o primeiro oscar para o Irão em 2011. Fico agora ansiosamente a aguardar pelo seu próximo trabalho.

julho 04, 2014

Filmes e jogos de Junho 2014

Em junho tive oportunidade ver mais uma obra-prima do cinema francês, assim como assistir ao derradeiro trabalho de Miyazaki, tendo conseguido ainda ver o primeiro filme realizado por Farhadi que não me surpreendeu, embora para primeiro filme funcione bastante bem. Algo que não foi desilusão, mas antes surpresa, dado o excesso de violência foi "300 Rise of an Empire", para quem como eu se tem sentido chocado com a ultraviolência nos videojogos, "300..." vai muito além do que se tem visto por aí, e no entanto a classificação em vários países situa-se nos 16 anos.

xxxxx Blue Is the Warmest Color 2013 Abdellatif Kechiche France [Análise]


xxxx The Wind Rises 2013 Hayao Miyazaki Japan

xxxx Enemy 2013 Denis Villeneuve USA

xxxx The Quatermass Xperiment 1955 Val Guest UK


xxx Non-Stop 2014 Jaume Collet-Serra USA
xxx Layer Cake 2004 Matthew Vaughn UK
xxx Dancing in the Dust 2002 Asghar Farhadi Iran


xx 300 Rise of an Empire 2014 Noam Murro USA
xx The Monuments Men 2014 George Clooney USA


No mundo dos videojogos não consegui tempo para ir além de terminar a trilogia de Mass Effect. Tenho vários jogos abertos, mas não tenho conseguido sentar-me e dedicar-lhes tempo.

xxxx Mass Effect 3 2012 BioWare Action USA [análise brevemente]

julho 03, 2014

Problemas do marketing digital

Hoffman é autor de "101 Contrarian Ideas About Advertising" (2011) e do blog Ad Contrarian, é ainda CEO da agência americana Hoffman/Lewis, tendo desenvolvido campanhas para a McDonald's, Toyota, Shell, Nestle, etc. Com formação de base em ciências e sendo assistente especial da California Academy of Sciences, parte do seu discurso move-se no sentido da obtenção de fundamento e evidência científica. E é por isso que esta palestra dada em Março na Advertising Week Europe 2014, intitulada, “The Golden Age of Bullshit” é extremamente interessante.

Bob Hoffman

Bob Hoffman procura ao longo de uma hora de palestra desmontar alguns mitos do mundo da publicidade e do marketing digital, com base num estudo comparado entre aquilo que os Marketeers e Publicitários foram dizendo ao longo dos anos e aquilo que verdadeiramente foi acontecendo no mundo real. Um dos maiores criadores desses mitos tem sido Seth Godin, um dos grandes gurus dos novos paradigmas de marketing, e em quem eu tenho vindo a confiar cada vez menos, nomeadamente desde que resolveu começar a aplicar as suas ideias sobre marketing, como grande martelo para tudo, como é o caso do livro autopublicado “Stop Stealing Dreams: What is School For?”. Esta crença nos gurus não acontece por acaso, mas porque como diz Hoffman no final da palestra, e citando Daniel Kahneman, "People don't believe in facts, they believe in experts."

Assim algo concreto de que tenho desconfiado no marketing contemporâneo, é o hype em redor do storytelling e dos videojogos. Ideias que têm sido vendidas como uma necessidade para criar relações com os consumidores. Ora, se é verdade que estas duas formas de construir experiências trabalham sob o desígnio do engajamento e envolvimento, ligando as pessoas às obras, não é claro que isso seja facilmente trespassável para o mundo do marketing ou branding. Mais, se tem sido imensamente difícil passar estas abordagens para o mundo da educação, porque é que haveria de ser tudo fácil no mundo do consumo? Deste modo Hoffman abre a palestra dizendo, o seguinte,
“We’re so drunk on this stuff that we’re starting to believe our own bullshit.
There are people in our business who believe that consumers are in love with brands! They believe consumers want to have relationships with brands. They want to have brand experiences and be personally engaged with brands. This people actually believe in this. You go to their Twitter profiles,
- “I’m passionate about brands”
- “You’re what? Dude get a fucking girlfriend”
There are people in our business who believe that consumers are going on Facebook and Twitter and having conversations with each other about  brands. All you have to do is going to your Facebook page, and if you can read, you can see that people are having conversations about everything in the universe, except brands.
And yet the bullshit we tell ourselves is apparently so powerful that it supersedes the evidence of our own eyes.”
Esta é a dura realidade que o marketing digital ainda não quis encarar de frente. Ninguém online fala das marcas, nem sequer está importado com as páginas das marcas, a não ser quando elas fazem asneira, tendo assim uma espécie de canal directo para lançar algum fel. As pessoas procuram outros seres humanos, não procuram objectos, artefactos, e menos ainda marcas. Quem tem página online de uma empresa, associação ou blog de certeza que já percebeu a diferença entre publicar algo no facebook sob o nome da página ou sob nome individual. As pessoas clicam mais quando a partilha é feita por uma pessoa, do que por uma marca, uma identidade abstracta desprovida de sentir. As pessoas querem a garantia que do outro lado está alguém capaz de interpretar aquele clique, aquele like. Clicar num like não é uma mera acção abstracta, é um acto de comunicação, é um acto de aceitação do outro.

Bob Hoffman, "The Golden Age of Bullshit" na Advertising Week Europe 2014

Isto não quer dizer que o marketing não está a mudar, que o digital não lhe serve. Serve sim, mas serve essencialmente para compreender melhor para quem se fala, e como se deve falar. O Facebook é muito útil para conseguirem compreender melhor o que move as pessoas, e conseguirem assim criar e desenhar para as suas verdadeiras necessidades. Mas não esperem que porque têm um discurso mais próximo, até mais humano, as pessoas desatem a envolver-se com as marcas, ou como diz o Hoffman, “amem as marcas”, isso não vai acontecer.

Plágio Castello

Esta semana estalou a polémica em redor de uma campanha da Agua Castello, tendo na altura escrito sobre o assunto no facebook, aproveito apenas para colocar o texto aqui sem alterações, como forma de registo. O artigo do Dinheiro Vivo saiu no dia 30 Junho, por volta do meio-dia, eu publiquei o meu texto no facebook com o título "Não é Strat. É Charles Burns" por volta das 14h00, no final desse mesmo dia, por volta das 19h00, a Água Castello retirava a campanha. Apesar disso a Fantagraphics tinha exposto a campanha três dias antes, a 27 de Junho.


A Água Castello portuguesa foi exposta internacionalmente à vergonha do plágio. A culpa não é sua, mas da agência que contratou para criar a nova campanha baseada em quadros de banda desenhada. Quem acusa é a Fantagraphics editora do trabalho de Charles Burns, autor dos alegados desenhos originais.

Inicialmente tive dúvidas, mesmo depois de ver algumas imagens da editora, principalmente porque não gosto de embandeirar com ataques de plágio no mundo das artes visuais já que tenho visto demasiado trabalho ser atacado injustamente. Mas vista a composição de desmontagem visual realizada pela Fantagraphics (imagem acima) as minhas dúvidas desvaneceram-se por completo (a cara do topo da garrafa é composta a partir da parte inferior da cara de um desenho, e da parte superior da cara de outro desenho). Estamos perante um trabalho de remix muito bem feito, o que para mim não teria nenhum problema caso fosse para ser usado sem fins lucrativos. Mas a ser usado deste modo, é mau, é muito mau.

Da análise do trabalho da Strat, a agência que criou a campanha, verifico que são muito bons em manipulação de fotografia. Ora é isso que temos nas garrafas da Castello, quadros de desenhos de Charles Burns manipulados (redimensionar ou rodar imagens, adicionar traços ou pontos, sobreposição de diferentes imagens para formar outras, etc.). Por isso vir dizer que meramente se “serviram de referências” é altamente abusivo, pois não estão cá referências, mas antes o trabalho em concreto de outro autor.

Sei bem porque a Strat diz isto, porque à partida não existe cobertura legal para que a Strat possa ser processada, uma vez que a manipulação deste tipo é muito usada exactamente para fugir aos direitos de autor. Ou seja em vez de pagar os direitos, alteram-se os trabalhos originais para ficarem ligeiramente diferentes, e assim passarem no crivo.

Mas se isto pode ser “aceitável” na faculdade ou em trabalhos sem componente comercial, desde que citadas as fontes, não é, nem pode ser, tolerado a uma empresa que quer trabalhar a este nível. Porque o que vemos aqui é simplesmente o cortar de custos. Não se contrata um ilustrador, nem se quer pagar quem desenhou o que se encontra online, mas pretende-se receber por um trabalho não realizado.

A Água Castello deve mandar retirar a campanha sem demoras, realizar um pedido de desculpas a Charles Burns, e pedir a total devolução da verba paga à Strat.


Fica a mensagem da Água Castello, deixada no Facebook, e que não me satisfaz, no sentido em que não realiza um claro pedido de desculpas ao autor e de certa forma quase protege a agência responsável pela campanha:
Declaração: A Água Castello enquanto marca portuguesa sempre se guiou por valores de responsabilidade, qualidade e transparência o que lhe grangeou a admiração e o respeito dos seus inúmeros consumidores.
A Água Castello quer acreditar que a Agência de Publicidade que desenvolveu a campanha “Não é Água. É Castello” se pautou pelos mesmos princípios como tem reiterado.
No entanto, para que nenhuma dúvida subsista e como prova de boa fé, a Água Castello vai dar por terminada esta campanha. A Água Castello quer continuar a merecer o respeito dos seus consumidores, dos criadores e de todos os que amam a verdade.
Água Castello

julho 01, 2014

Corrida contra a automação da informação

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee são dois académicos de economia do MIT que procuram perceber os impactos e efeitos das tecnologias de informação sobre o trabalho e a produtividade. “The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies” (2014) é o resultado de vários anos de investigação, e uma espécie de edição definitiva do livro que ambos auto-publicaram em 2011, “Race Against The Machine”.


O cerne da teorização apresentada assenta sobre a ideia de que a Primeira Era das Máquinas (revolução industrial) tratou da automação do trabalho manual, enquanto a Segunda Era das Máquinas trata da automação do trabalho com informação. Esta segunda era é motivada pela quantidade de informação acessível em tempo-real e os algoritmos de tratamento da mesma, sendo um dos grandes exemplos apontado pelos autores, o carro sem condutor da Google, algo que foi apenas possível graças ao manuseamento de massas de dados existentes combinados de forma contínua com a captura em tempo real de dados no carro.

Lexus da Google sem condutor

A primeira parte do livro centra-se sobre as alterações na paisagem tecnológica, sustentando-as com exemplos e demonstrações do que está acontecer no mundo em que nos movemos. Os autores trabalham sobre a exponenciação da capacidade tecnológica baseando-se no princípio de Moore, trabalham questões sobre a digitalização de cultura, sobre a inovação e os efeitos benéficos destas alterações. Nesta fase do livro o discurso é bastante optimista, o futuro será melhor e mais fácil graças ao desenvolvimento tecnológico, e essencialmente ao avanço das tecnologias de informação e de aprendizagem por parte das máquinas. É aqui que se introduz um dos conceitos chave do livro, BOUNTY (recompensa), que dá conta dos ganhos que a sociedade viveu nas últimas décadas graças ao avanço da computação. O facto de podermos aceder a cada vez mais e melhor tecnologia, e consequente conforto, pagando cada vez menos para tal, assim como o facto de termos cada vez mais tempo livre que nos permite gerar toda uma nova economia social.

No entanto o livro não se fica pelos ganhos, nem pelo avanço tecnológico, os autores especialistas em economia, passam a segunda metade do livro a trabalhar o assunto do ponto de vista das pessoas, dos seres humanos que se relacionam com a tecnologia, e os impactos que esta teve e terá sobre as suas vidas. Nesta segunda parte é introduzida o segundo conceito chave do livro SPREAD (distanciamento) que dá conta do aumento do fosso entre aqueles que conseguem aproveitar o que as tecnologias oferecem, e aqueles que por várias razões não as conseguem dominar, ou sequer aceder. Os impactos estão à vista com a mais recente crise de 2008 como se pode ver na obra “Capital” (2014) de Thomas Piketty, que se estende num conglomerado de problemáticas, algumas bem evidenciadas por Lanier em ”Who Owns the Future?” (2013). Como é dito a certa altura,
“Eventually, the economy will find a new equilibrium and full employment will be restored as entrepreneurs invent new businesses and the workforce adapts its human capital.
But what if this process takes a decade? And what if, by then, technology has changed again? This is the possibility that Wassily Leontief had in mind his 1983 article when he speculated that many workers could end up permanently unemployed, like horses unable to adjust to the invention of the tractors. Once one concedes that it takes time for workers and organizations to adjust to technical change, then it becomes apparent that accelerating technical change can lead to widening gaps and increasing possibilities for technological unemployment. Faster technological progress may ultimately bring greater wealth and longer lifespans, but it also requires faster adjustments by both people and institutions.”
Neste sentido o livro fecha as duas partes - Bounty e Spread - apresentando um conjunto de soluções para se atuar primeiro a um nível individual, e em seguida a um nível político. Deste modo podemos dizer que estamos perante um trabalho bastante abrangente, que procura identificar o bom e o mau da revolução de informação que vivemos no momento, refletindo e apresentando soluções plausíveis e exequíveis. É sobre essa parte que me irei deter um pouco mais aqui, não que o resto do livro não seja muito interessante também, mas porque é aquilo que me parece mais relevante discutir. Julgo que depende de todos nós, e cada um pode à sua maneira, e no limite das suas possibilidades procurar a mudança. Assim deixo alguns dos pontos que me parecem mais relevantes.


. Trabalhar com as máquinas, não contra elas
“The teams of human plus machine dominated even the strongest computers. The chess machine Hydra, which is a chess-specific supercomputer like Deep Blue, was “no match for a strong human player using a relatively weak laptop. Human strategic guidance combined with the tactical acuity of a computer was overwhelming.The surprise came at the conclusion of the event. The winner was revealed to be not a grandmaster with a state-of-the-art PC but a pair of amateur American chess players using three computers at the same time. Their skill at manipulating and “coaching” their computers to look very deeply into positions effectively counteracted the superior chess understanding of their grandmaster opponents and the greater computational power of other participants. Weak human + machine + better process was superior to a strong computer alone and, more remarkably, superior to a strong human + machine + inferior process.” Kasparov citado no livro

. As áreas em que ainda fazemos a diferença
“Picasso’s quote [“But they (computers) are useless. They can only give you answers.”] is just about half right… Computers are not useless, but they’re still machines for generating answers, not posing interesting new questions. That ability still seems to be uniquely human, and still highly valuable. We predict that people who are good at idea creation will continue to have a comparative advantage over digital labor for some time to come, and will find themselves in demand.”
Os três conceitos chave em termos de competências humanas para o futuro serão - a ideação (ter ideias), a criatividade (fazer diferente) e a inovação (criar novo). As três abordagens estão ligadas ao pensamento “fora-da-caixa”, algo que os computadores apresentam muita dificuldade em fazer, uma vez que estão limitados ao framework que lhes é dado. Ou seja, os computadores são excelentes a reconhecer padrões, mas muito maus a irem além destes. Uma das razões pelas quais somos bons nisto, tem que ver com o facto de combinarmos os vários sentidos para absorver e analisar a realidade, o que acaba reflectindo-se na forma como depois nos expressamos face à realidade.
“The Spanish clothing company Zara exploits this advantage and uses humans instead of computers to decide which clothes to make. For most apparel retailers, forecasting and sales planning are largely statistical affairs… Zara takes a different approach… To answer the critical question “Which clothes should we make and ship to each store?” Zara relies on its store managers around the world to order exactly, and only, the merchandise that will sell in that location over the next few days. Managers figure this out not by consulting algorithms but instead by walking around the store, observing what shoppers (particularly cool ones) are wearing, talking to them about what they like and what they’re looking for, and generally doing many things at which people excel. Zara store managers do a lot of visual pattern recognition, engage in complex communication with customers, and use all of this information for two purposes: to order existing clothes using a broad frame of inputs, and to engage in ideation by telling headquarters what kinds of new clothes would be popular in their location.”
Outra razão em que eu tenho vindo a reflectir bastante nos últimos anos, tem que ver com o facto de como seres humanos errarmos, estarmos autorizados a errar, porque faz parte de nós. Enquanto a máquina não pode errar. Ora acredito que se a máquina não pode errar, não pode sair do caminho predeterminado, então muito dificilmente alguma vez poderá ser verdadeiramente criativa.


. A escola no meio de tudo isto

Para que estas competências se desenvolvam precisamos de uma escola diferente, capaz de estimular a autonomia, a automotivação e o envolvimento. Mas tudo isto não pode ser desligado de uma profunda capacidade de análise crítica da realidade, algo que tem vindo a ser descurado, essencialmente no ensino superior, fase em que esta competência deveria ser profundamente estimulada.
“Arum and Roksa made use of the Collegiate Learning Assessment (CLA), a recently developed test given to college students to assess their abilities in critical thinking, written communication, problem solving, and analytic reasoning. Although the CLA is administered via computer, it requires essays instead of multiple-choice answers. One of its main components is the ‘performance task,’ which presents students with a set of background documents and gives them ninety minutes to write an essay requiring them to extract information from the materials given and develop a point of view or recommendation. In short, the performance task is a good test of ideation, pattern recognition, and complex communication.
Arum, Roksa, and their colleagues tracked more than 2,300 students enrolled full-time in four-year degree programs at a range of American colleges and universities. Their findings are alarming: 45 percent of students demonstrate no significant improvement on the CLA after two years of college, and 36 percent did not improve at all even after four years. The average improvement on the test after four years was quite small. What accounts for these disappointing results? ”
Arum, Roksa, and their colleagues document that college students today spend only 9 percent of their time studying (compared to 51 percent on “socializing, recreating, and other”), much less than in previous decades, and that only 42 percent reported having taken a class the previous semester that required them to read at least forty pages a week and write at least twenty pages total."
No fundo não chega querer, menos ainda chega entrar na universidade pretendida, ou no curso pretendido, é preciso trabalhar, e muito, para construir as competências. A universidade e o professor são apenas a ponta do iceberg, os resultados só aparecem com o trabalho em profundidade individual do estudante. Não é por acaso que Bolonha impôs metas para o trabalho individual a realizar pelo aluno fora de aulas. Estudos como, “How College Affects Students: A Third Decade of Research”, de Ernest Pascarella e Patrick Terenzini concluíram que “the impact of college is largely determined by individual effort and involvement in the academic, interpersonal, and extracurricular offerings on a campus”.

Deste modo Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee acabam por concluir que apesar das máquinas estarem a automatizar e a tornar tudo mais fácil em nosso redor, nem por isso o mundo à nossa volta será mais fácil para a grande classe média. Conseguir emprego será cada vez mais difícil, e para se precaver só existe um caminho,
“our most fundamental recommendation to students and their parents: study hard, using technology and all other available resources to ‘fill up your toolkit’ and acquire skills and abilities that will be needed in the second machine age.”
Esta é uma realidade que por mais que queiramos escamotear nos bate à porta em todas as estatísticas e recomendações, como bem dá conta o relatório publicado no mês passado pela Comissão Europeia sobre o emprego na Europa,
“Low qualified workers encounter increasing difficulties to find a job, face lower job stability and are out-competed by medium-skilled workers even in elementary occupations.”

Por fim quero apenas deixar um ponto abordado a determinada altura no livro, e que tem que ver com a investigação que realizamos nos nossos laboratórios todos os dias. Nós que trabalhamos com tecnologias de informação e comunicação estamos constantemente preocupados em desenvolver novos sistemas que automatizem as atividades humanas. O que os autores dizem é, e se não fosse assim? E se em vez de procurarmos automatizar as tarefas, procurássemos antes novas formas de criar actividades, de tornar as pessoas, os seres humanos, mais ativos, mais criativos? (Isto é em parte algo que tenho vindo a trabalhar mais recentemente sob a designação de Tecnologias Criativas). No final, nenhum de nós procura verdadeiramente parar de trabalhar, o trabalho é essencial ao ser-humano por estranho que possa parecer! Esse é um ponto aqui defendido, e com o qual concordo particularmente,
“It’s tremendously important for people to work not just because that’s how they get their money, but also because it’s one of the principal ways they get many other important things: self-worth, community, engagement, healthy values, structure, and dignity, to name just a few. Whether the focus is on the individual or the community, the conclusion is the same: work is beneficial.”

“The Second Machine Age" é um livro carregado de ideias, questões, dúvidas, hipóteses e imensa reflexão sobre algo que nos preocupa a todos. De tudo isso dei aqui conta apenas de uma brevíssima síntese sobre algumas dessas ideias, o resto fica para lerem no próprio livro. Entretanto se quiserem saber mais, vale a pena ver as duas TED talks dos autores.