novembro 11, 2014

O moinho criativo

Vinha no carro quando, na RFM, sou brindado com uns versos cantados por uma voz feminina, surpreende-me, mas o que me surpreende surge depois, com fluência e cadência, a mensagem que se transmite surge por via de um português trabalhado, para logo depois ser misturada com a voz e versos de Zeca Afonso... nem queria acreditar. Depois percebi que aquilo que tinha acabado de ouvir era muito mais do que português eloquentemente falado em verso, "Vayorken" apresenta um trabalho de mistura criativa, extremamente rico, tudo criado pela artista portuense Capicua.

Capicua (aka Ana Matos Fernandes)

Movido pela surpresa pesquisei sobre a artista Capicua, e já não me surpreendeu descobrir que Capicua era Ana Matos Fernandes, licenciada em Sociologia (2006) pelo ISCTE e doutorada em Geografia pela Universidade de Barcelona, com uma tese intitulada  "Do discurso ao projecto urbano de reinvenção da ruralidade" (2011). A verdade é que aquilo que tinha ouvido naqueles 4 minutos - a estrutura, a composição e o conteúdo daquele relato - não era de todo banal, menos ainda superficial, como se espera muitas vezes de uma simples canção.

"Vayorken" (2014) de Capicua
"Era pra ser Artur e nasci Ana,
"Ana quê?" "Ana só" "Ana Só?" "Sim, só Ana!"
Era percentil 90 nos anos 80
E entre colheradas chorava sempre faminta
Sempre vestida como mini comunista
Com roupas que a mãe fazia com modelos da revista
E eu queria ser pirosa, vestir-me de cor de rosa
Vestir de Jane Fonda na ginástica da moda
Com sabrina prateada, licra colante
Crina de pequeno pónei bem escovada, espampanante.
Tinha a mania de pôr as cores a condizer,
no meu entender, rosa com vermelho não podia ser!
Uma noctívaga que não dormia a sesta
E de manhã sempre quis menos conversa,
Uma covinha só de um lado da bochecha
Adormecia com o pai e a mesma canção do Zeca!

Era sempre mais Mafalda do que Susaninha
Ai de quem dissesse mal do Sérgio Godinho
Ainda tenho alguns postais prá "gentil menina"
Enviados pelos pais de um qualquer destino.
E se alguém me perguntar pelo pai e pela mãe?
Eu sei!! Sei! Foram pa Vayorken, Vayorken
Foram pa Vayorken, Vayorken, Vayorken!"

Versos da música "Vayorken"
Capicua dá conta de algo que tenho vindo a defender, com cada vez maior intensidade, a necessidade de alimentar o nosso ser de conteúdo, de factos, eventos, informação e saber para poder produzir criativamente. Só assim se pode gerar aquilo que tenho vindo a trabalhar como, "moinho criativo", ou seja, se à água juntar apenas um tipo de fruta, independentemente do método ou processo com que misture, obterei sempre o mesmo sabor, variando apenas a sua intensidade. Se por outro lado for adicionando diferentes frutas, mas não só, elementos outros, experimentando e testando com doses e velocidades diferentes, poderei assim obter combinações distintas e inovadoras. A criatividade não difere em nada deste processo, já que só pode surgir pelo trabalho, persistência e conhecimento aplicado ao nosso "moinho interno".

É por isto que Angela Merkel não tem razão quando diz que temos licenciados a mais em Portugal, porque sem formação seremos sempre, apenas e só, o país pronto a servir turismo, servindo-se do dinheiro e cultura de quem nos visita, incapazes de ir além do imediato, do cumprir das necessidades básicas... vale a pena ler a entrevista dada pela Capicua ao JPN que nos elucida bem sobre tudo isto.

Deixo uma outra música da Capicua, "Amigos Imaginários", que se pode encontrar na sua mix tape no YouTube, "Capicua goes West (Mixtape Vol.2)" de 2013. Neste álbum podem encontrar também crítica social, fundamental no rap, sendo que a última música "Pedras da Calçada" dá bem conta do Portugal contemporâneo.


"Amigos imaginários "Capicua Goes West"" (2013) de Capicua
"Eu queria que me conhecesses e que me merecesses e que na palma da tua mão me reconhecesses, queria que os interesses fossem os mesmos e que como estes, os anos fossem eternos. Eu queria entender o silêncio e quando penso, queria apagar o incêndio que avança na tua vida, queria curar a ferida, só com saliva e conseguir sair sem cinzas na despedida. Eu queria reencontros, mesmo nos invernos, braços abertos, prontos, longos e fraternos. Queria que pudesses entender os meus versos como sempre fizeste, que tentasses pelo menos. Queria que pudesses esquecer os meus erros, como sempre quiseste, que guardasses os segredos. Queria que viesses sem stresses, sem merdas, queria que soubesses que também sinto as tuas perdas.

Quero dizer a coisa certa pra salvar a conversa da tua língua esperta, dessa ironia, dominar a frieza, e abrir sobre a mesa, toda a subtileza presa em telepatia. Faço questão de ser perfeita para ganhar a discussão e não há senão que não rejeite a minha ambição! Faço o que posso para que o fosso não se abra e que o desgosto e essa mágoa não nos cubra pelo pescoço dessa água suja. A casa arde, alguém que fuja e que carregue sem ajuda a nossa estátua durante a fuga!”

Versos da música "Amigos imaginários"

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