abril 17, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume I

Êxtase e deleite, são os adjetivos que me ocorrem ao terminar de ler “Do Lado de Swann”, o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, publicado em 1913. Contudo estas sensações não se deram facilmente. Este primeiro volume acompanha-me há mais de dez anos, comprei-o no ano de lançamento da tradução portuguesa de Pedro Tamen, em 2003, influenciado por todo o burburinho de imprensa. Desde então tentei lê-lo várias vezes mas nunca passava da página 50. Em 2013 pela comemoração do centenário do lançamento do primeiro volume voltei a pegar-lhe como atesta o meu Goodreads mas nada. As impressões de cada uma dessas tentativas falhadas, invariavelmente reportavam enfado e sonolência. Proust descrevia tudo tão minuciosamente, aborrecia porque ausente de conflito e desse modo de enredo, tornando um suplício a sua leitura. E no entanto desta vez, ao chegar à página 150 um clique ocorreu dentro de mim, sim em mim porque na escrita nada se alterava até esse momento. A partir desse momento a minha leitura e a escrita de Proust entravam em sintonia, o ritmo que até aqui era lento e sonolento passava a sentir-se como sereno e tranquilo. A minuciosidade era agora assimilada com ritmo compreendendo musicalidade, impressionava a cada novo parágrafo, criando ânsia pelo parágrafo seguinte, pela página seguinte, por continuar a ler deleitando-me a cada novo instante.


Não quero entrar em muito detalhe sobre o texto já que este é apenas o primeiro volume de sete, 450 páginas de 3200, mas farei o possível por ir escrevendo impressões, ainda que breves, sobre cada um dos volumes que for lendo. Se conseguir, no final procurarei então escrever sobre os temas e a obra como um todo.

Deste modo, e falando apenas deste primeiro volume, devo dizer que após o primeiro dia de reflexão sobre o que li, discerni três abordagens, ou três dimensões, distintas de acesso à obra, cada uma origem de diferentes formas de prazer, o que dá conta do potencial estético do texto. Antes de as descrever, dizer que apesar de ser uma obra seriada, este primeiro volume apresenta um claro arco, com um fechamento que sabendo nós que não o é, se sente, porque o livro como que realiza um círculo, voltando ao ponto de partida, embora mais tarde no tempo. Proust liga as pontas, conecta os personagens, e provavelmente prepara o terreno para os próximos volumes. Indo agora às dimensões de que falava, temos:


1 - As histórias de amor
Este é, para mim, o nível menos relevante mas é o nível no qual o texto assume um carácter mais standard, seguindo a lógica realista de crítica de costumes, encaixando nas tradições do romance do século XIX, início de XX. Ele está mais presente no miolo do livro, ou seja na segunda parte do primeiro capítulo (“Combray”) e em todo o segundo capítulo (“Um amor de Swann”). É uma componente do texto em que o enredo assume domínio sobre a forma escrita, em que somos levados pelos relatos de acontecimentos, em que o conflito surge, seguimos atrás de um homem que se esvai em ciúme. O melhor desta parte acaba sendo a minuciosidade como Proust descreve esse ciúme, o detalhe que nos faz recordar momentos das nossas vidas, questões que nos colocámos a nós próprios em situações semelhantes.
“Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann passar algum tempo sem visitá-la.” (tradução de Mario Quintana)

2 - A análise estética do real e social
Este é um ponto muito rico, embora de mais difícil acesso para a generalidade dos leitores, já que diz respeito ao modo como Proust usando toda a sua sensibilidade estética, construída durante os anos em que dedicou textos à análise de várias obras de arte, se dedica a desconstruir a realidade, usando metáforas a partir de uma tríade de artes – literatura, pintura e música. Esta desconstrução acontece com maior força na primeira e última partes do livro. Em que Proust assume a primeira-pessoa, e nos fala diretamente, ainda que pela voz de um personagem por si criado. É neste registo que surge, logo no início do livro, o famoso episódio da Madalena, que não irei citar agora, e toda a discussão sobre o poder das "memórias involuntárias", sobre o que espero falar no final.

Quando Proust entra neste registo é como se o texto assumisse o lugar de pincel ou batuta, e sentimos o mundo escrito como borrões de tinta, ou rasgos de notas. As suas descrições dos campos de Combray são tão esteticamente detalhadas que não apenas nos sentimos transportados para o espaço, mas para um espaço especial criado pela sua capacidade oratória que plastifica e embeleza toda aquela realidade.
“O meu maior desejo era ver uma tempestade no mar, não tanto como um belo espetáculo, mas como a revelação de um instante da verdadeira vida da natureza; ou antes, para mim só eram belos os espetáculos que eu sabia não terem sido artificialmente arranjados para me agradar, mas que eram necessários e imutáveis — a beleza das paisagens ou das grandes obras de arte. Apenas tinha curiosidade e avidez daquilo que julgava mais verdadeiro que o meu próprio ser, aquilo que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou graça da natureza, tal qual se manifesta quando entregue a si mesma sem intervenção humana. Assim como o lindo som de uma voz, isoladamente reproduzido pelo fonógrafo, não nos consolaria da perda de nossa mãe, uma tempestade mecanicamente imitada me deixaria tão indiferente como as fontes luminosas da Exposição.” (tradução de Mario Quintana)
“Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. ” (tradução de Mario Quintana)

3 - A forma da escrita
Por fim a forma da escrita, cerne da estética da obra Proustiana, está presente em todo a extensão do livro, por vezes de forma mais leve, outras assumindo um pendor pesado, como que a dizer: “olha para mim, olha para cada palavra escolhida, olha para as frases que se entrelaçam sem fim, os torvelinhos de ideias tecidas em mim e sobre mim através do que prendo os teus olhos, cerco a tua mente, e carrego sobre o teu coração”. Não admira que Proust tenha demorado anos a concretizar a obra, e tenha deixado dezenas e dezenas de cadernos de notas sobre a construção da mesma, já que o que aqui vemos, apesar de poder brotar da sua competência literária, é também fruto de um trabalho de grande minúcia artesanal, uma atenção obsessiva com o detalhe.
“Mesmo quando não pensava na pequena frase [da sonata de Vinteul], ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas.” (tradução de Mario Quintana) 

Não quero terminar sem deixar de citar as palavras de Woolf enquanto lia este primeiro volume da obra de Proust, que agora depois de o ter lido, e sentido, percebo completamente:
“Proust so titillates my own desire for expression that I can hardly set out the sentence. Oh if I could write like that! I cry. And at the moment such is the astonishing vibration and saturation and intensification that he procures — there’s something sexual in it — that I feel I can write like that, and seize my pen and then I can’t write like that. Scarcely anyone so stimulates the nerves of language in me: it becomes an obsession. But I must return to Swann.”

“My great adventure is really Proust. Well what remains to be written after that? I’m only in the first volume, and there are, I suppose, faults to be found, but I am in a state of amazement; as if a miracle were being done before my eyes. How, at last, has someone solidified what has always escaped and made it too into this beautiful and perfectly enduring substance? One has to put the book down and gasp. The pleasure becomes physical like sun and wine and grapes and perfect serenity and intense vitality combined.”
Virginia Woolf

Edição lida: Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido - Volume I - Do Lado de Swann”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087303, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 450

Nota sobre os excertos: uso a tradução de Mario Quintana para os excertos porque não tenho acesso ao texto em digital da tradução lida. Espero falar sobre as traduções no final, mas das várias que tive oportunidade de folhear, e comparar com o original, as duas melhores são sem dúvida a de Quintana e Tamen.


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

2 comentários:

  1. Em relação às traduções, aconselharia, especialmente, alguma delas?
    Grato.

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    1. Bom dia. No final da leitura dos 7 volumes, não tenho qualquer dúvida sobre a melhor tradução em português ser a do Pedro Tamen. Um desejo de boa leitura.

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