junho 21, 2015

Quando o cinema analisa várias camadas da realidade

Nightcrawler” (2014) surpreendeu-me porque foi bastante além do que estava à espera, operando uma ideia muito mais abrangente do que aquela que tem sido passada a propósito da mensagem do filme. Concordo inteiramente com o brilho da performance de Gyllenhaal, mas claramente que a sua força brota da audácia e complexidade do argumento original de Dan Gilroy.



Nightcrawler” tem sido comumente apresentado como crítica social, nomeadamente do estado atual dos media, do jornalismo infestado por “tabloidismo”, que em desespero pela sobrevivência se vê obrigado a abandonar a factualidade e imparcialidade em troca do populismo. Não interessa mais saber se o que se apresenta imana da paisagem real, se representa uma alteração do todo, que deva servir o cidadão na adopção de novos comportamentos. Interessa apenas garantir a força da emoção na primeira impressão, já que é pela emoção que se ganha a atenção, e é pela emoção que se garantem memórias, mantendo a audiência leal à marca noticiosa. A directora do canal noticioso em “Nightcrawler” chega a dar a sua definição de jornalismo:
“The best and clearest way that I can phrase it to you, Lou, to capture the spirit of what we air, is think of our newscast as a screaming woman running down the street with her throat cut.” Rene Russo, como Nina Romina, em “Nightcrawler” (2014)
Ora se é verdade que este é foco do filme, e que não é novo, já antes o vimos em “Network” (1976), e em termos de crítica dos efeitos vimos melhor ainda em “Natural Born Killers” (1994), ele é apenas o caso de estudo escolhido por Gilroy. Como tal as ideias sobre os media - discutidas, analisadas e criticadas - servem apenas de pano fundo para algo mais lato. Houve quem na crítica tocasse já algumas dessas possibilidades, a obsessão e loucura, imanentes das pressões que sofre a sociedade, desfazendo o trabalho por comparação a “Taxi Driver” (1976) de Scorcese. E se concordo com a comparação, não concordo com a inferioridade, bastando desde logo colocar lado a lado, Lou e Travis, e ver como Gyllenhaal não fica atrás em nada, a De Niro.

Mas é a crítica política que mais interessa, porque é poderosa, porque se “Taxi Driver” só faz sentido quando analisado à luz do pós-guerra do Vietname,  “Nightcrawler” só faz sentido quando discutido à luz do pós-crise 2007. Vivemos um momento político estranho e mesmo paradoxal, porque tendo sido o neoliberalismo o movimento político responsável pelo estouro do imobiliário internacional, criador de uma das maiores recessões da história recente, é à filosofia e valores deste movimento, que os políticos em 2015 acorrem para tratar dos problemas por este criados, como se pode ver na Europa atual.


Neste sentido, para o guião de Gilroy é menos relevante a crítica do jornalismo, embora este também surja no quadro geral das transformações produzidas pela crise, e muito mais a criação e motivações do seu personagem principal, Lou. Porque aquilo que move Lou, não é a fama, nem o culto da imagem televisionada, como seria de esperar na obsessão mediática. O que em essência move Lou é a vontade de fazer a diferença, enquanto indivíduo, e ser respeitado por essa diferença. Um evidente fruto das visões neoliberais do mundo, que não acreditam na educação formal, menos ainda se for pública, vendendo sonhos de um empreendedorismo autodidata, que a internet tão bem tem servido para promover por via dos chamados milagres do ensino a distância e MOOCs. Quadros de aprendizagem em que se promove o conhecimento a metro, esquecendo a formação e o crescimento enquanto indivíduos parte de um todo, a sociedade. Para Lou tudo é medível, tudo tem uma função, tudo tem um fim, tudo tem uma etiqueta com o seu valor marcado. Lou, como indivíduo extremamente inteligente, com enorme capacidade de apreensão de informação e conhecimento, mas com baixos níveis de integração social, nomeadamente ausência de empatia, consegue focar, e ser não apenas bom, mas excelente naquilo a que se dedica.

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