abril 30, 2016

"Os Maias" e a escola

Uma epopeia familiar, vista sob um olhar global e multicultural, e ao mesmo tempo tão conhecedora do âmago do ser português, capaz de enaltecer os seus devaneios mais nostálgicos e melancólicos. Merece todos os laudos, e merece ser a luz do nosso cânone. Um texto apenas possível graças ao acesso ao mundo tido por Eça enquanto diplomata, e ainda ao facto de ser escrito já numa fase de grande experiência de vida alcançada, pouco antes de morrer.


Não sendo um estudioso de literatura, mas tendo em conta o mais recente empreendimento de ler os clássicos — Tolstói, Mann, Proust ou Dostoiévski — "Os Maias" apresenta várias particularidades que o tornam relevante para qualquer estudioso e que fazem com que mereça ser referenciado em muitas mais listas de livros obrigatórios (podendo desde já encontrar-se no cânone de Bloom, ou no English PEN).

Desde os aspectos de cruzamento cultural que vão sendo apresentados capazes de ligar dados sociais e históricos de Portugal, Inglaterra, França, Brasil, Espanha, Ásia, EUA, etc; ao puzzle geográfico nacional que nos leva a calcorrear boa parte do nosso território; passando pela ligação estabelecida entre diferentes géneros, nomeadamente opostos como a comédia e a tragédia; ou ainda toda a discussão sobre as teorias dos movimentos literários, do surgimento do realismo e decadência do romantismo, citando Émile Zola, Victor Hugo, William Shakespeare, Lord Byron, entre outros; assim como à crítica forte pelo retrato da burguesia, política e imprensa nacionais. É uma obra plena de saber que enriquece quem se predisponha a dedicar-lhe um pouco do seu tempo. Como se não bastasse é um texto que envelheceu muito bem, que apesar dos seus 118 anos continua imensamente atual e capaz de dar imenso gozo a quem o lê.

Quanto à leitura obrigatória nas escolas, é um livro difícil pela sua extensão que se arrasta em descrições e preparação para o clímax ("grande bolada") final, aliás é o próprio Eça a reconhecer isto mesmo. Mas também e porque apesar de Eça procurar distanciar-se do romantismo, e conseguindo fazê-lo muito bem nos temas, a escrita ainda está pejada desses traços que dificultam a compreensão, porque por via da romanticização da arte literária as ideias ficam por vezes como que soterradas por debaixo da forma. Não raras vezes temos de reler parágrafos, frases, para ligar os sentidos, já que estes se perdem no modo de escrita por via de embelezamentos gramaticais que descuram o que se diz apenas em busca de um efeito estético.

Por outro lado, acredito que a grande maioria dos alunos não passe do meio da obra, pelo que disse acima, quando na verdade a ação do enredo só começa verdadeiramente a agitar-se a partir da terceira parte. Falando em meu nome pessoal, não me lembro de o ter terminado nessa altura, por isso a impressão que tinha, não apenas pela idade que se tem quando se lê, mas por não ter assistido ao desenlace da epopeia, era bem diferente.

Mas a idade é um problema claro na assimilação de "Os Maias", uma obra carregada de crítica política e social, exige do leitor um conhecimento histórico detalhado do contexto de Eça, mas mais do que ter informação sobre esse contexto, exige a compreensão desse universo, algo que que com 16/17 anos não se tem, nem se pode construir em meia-dúzia de aulas. Assim se o texto nem sempre ajuda, escondendo os seus reais significados sob capas estéticas, o facto de termos leitores que ainda não detêm o arcaboiço necessário à interpretação do que vai sendo dito, acaba por ditar um afastamento inevitável da obra.

Lisboa, século XIX

O problema das leituras dos cânones nacionais nas escolas que não se passa apenas cá, mas em todo o mundo que vê a escola como normativa das identidades nacionais, é a obrigatoriedade. Talvez fosse tempo de pensar de modo diferente, e porque não faltam trabalhos nacionais de valor, oferecer alternativas de leitura. Obrigar a ler uma obra intemporal e de relevo, dissecá-la ao longo de meses, é algo que vemos como necessário à construção das identidades nacionais, mas que no fundo acaba mais por criar estigmas do que verdadeiro conhecimento, e menos ainda relação. O atual Plano Nacional de Leitura permite essa diversidade, o que é muito bom, basta aos professores e escolas traçarem o seu caminho.

Não estou aqui a defender a anulação do Eça, antes pelo contrário, uma maior contextualização deste em face da restante produção nacional da época poderá conduzir os alunos a quererem saber mais, a tentar buscar por si próprios a razão da sua relevância. O uso de documentários e cinema no suporte à leitura pode, por exemplo, ser uma forma de facilitar a construção de bagagem contextual, mas existem muitos outros modos de o fazer.

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