maio 01, 2016

“Pastoral Americana” (1997)

Um retrato poderoso do que a sociedade etiqueta como normalidade, provocante e por vezes muito intenso, servido por um fluxo de informação que converge múltiplas dimensões e contextos que nos arrebatam e envolvem no mundo de Roth que é também o nosso.


A base para esta viagem, cheia de fricções, surge no seio de uma família americana dotada de uma moral consagrada pelos media, ele — desportista de liceu e muito popular — ela — miss estado federal e muito atrativa —, a viverem num enorme lote de terreno em Newark, tudo propício a uma vida em sociedade perfeita, cumprindo todos os seus rituais, conformando com o grupo, acreditando no bem como recompensa das boas ações. A filha do casal que nasce imbuída destes valores, ou não, é o seu “bem” mais valioso, até ao momento em que faz 16 anos e decide revoltar-se.

A entrada em “Pastoral Americana” (1997) pode ser mais ou menos intensa consoante a fase da vida em que nos encontremos. Roth escreveu este livro com 60 anos, mas acredito que falará de muito perto ao grande público acima dos 40, aquele que já se conformou, aquele que perdeu a ilusão de que podia mudar o mundo, que não apenas compreendeu a abstração da normalidade em que se encontra mas passou a aceitá-la. Por isso é provocante, porque partindo desta aceitação obriga-nos a reequacionar posições que já tínhamos dado por concluídas. Longe vão os tempos existenciais em que as abstrações societais eram motivo para a nossa fúria e angústia, como aqui podemos ver retratada na filha adolescente, Merry, compreendendo nós a infantilidade de toda essa revolta. Aprendemos a aproveitar a vida a partir do que ela nos permite, e não em função daquilo que cremos ser o ideal ou da utopia egocêntrica.

A partir daqui Roth trabalha um tema quente no final dos anos 1990, mas não novo, e por sinal ainda mais quente nos dias de hoje, os filhos que se revoltam e aderem a movimentos terroristas. O livro é de 1997, e o Atentado de Oklahoma City, responsável pelo maior número de mortes cometido nos EUA por um americano, tinha acabado de ocorrer em 1995. Roth disserta não sobre este, mas antes sobre a avalanche de atentados perpetrados à bomba nos anos 1960 nos EUA a propósito do conflito no Vietname. Neste sentido o livro ganha um interesse histórico, porque apresenta todo um enquadramento dos EUA que raramente vimos no cinema até aos dias de hoje, tanto que conhecendo muito dos EUA a partir do cinema tive de ir pesquisar a história do país, por ter dificuldade em acreditar nas descrições de Roth.

Com esta base a “Pastoral Americana” ganha toda uma força, raramente vista noutro trabalho sobre o tema. O fundo é o terrorismo, mas não a ação armada ou política, o cerne aqui é o social e o humano, a tentativa de compreender como a família se edifica, e buscando a normalidade acaba por se desviar da mesma sem intenção, mas ao mesmo tempo incapaz de regressar ao veio condutor dessa suposta normalidade. Roth não explica, não interpreta, apesar de criticar quase tudo e todos — política, religião, valores do sonho americano, etc. — mas sem nunca se servir dessa crítica para justificar as ações. Não há idealismo, mas também não se professa niilismo, somos levados pela mão ao ponto de não retorno e aí largados para reencontrar o nosso caminho. Não é um livro histórico, nem académico, menos ainda de auto-ajuda, é um livro que nos questiona e corrói as ideias de sociedade que detemos, que nos faz rever as normas que aceitámos, e nos obriga a questionar o nosso lugar.

Se tudo isto é bom, dependendo dos interesses de cada um, o melhor é ser servido numa forma escrita de altíssimo nível, dotada de um virtuosismo capaz de construir parágrafos servidos por múltiplas ideias que de tão bem escritas acabam por funcionar como tobogãs de informação que se infiltram na nossa cabeça e descem ao fundo do nosso não-consciente para repescar inferências, terminando em explosões de sentidos. Existem vários momentos destes ao longo do livro, uns mais intensos, outros menos, mas à medida que avançamos vão trabalhando mais e mais as histórias internas do próprio romance, contadas nas páginas anteriores, ou capítulos anteriores, intensificando e solidificando os detalhes de realidade e assim contribuindo para a construção de toda uma dimensão ficcional profundamente realista e próxima de nós.
"O facto das pessoas serem criaturas multifacetadas não constituiu um grande choque para o Sueco mesmo que fosse um bocado chocante percebê-lo mais uma vez quando alguém o desiludia. O espantoso era o modo como as pessoas pareciam esgotar o que elas eram, esgotar o que quer que fosse que as fazia ser como eram e, esvaziadas delas próprias, se transformavam no tipo de pessoas que outrora haviam desprezado. Era como se, enquanto as suas vidas eram ricas e cheias, se enjoassem secretamente consigo próprios e ansiassem por se libertarem de tudo o que era saudável, bom e com sentido das proporções para, finalmente, chegarem ao outro ser, o verdadeiro ser que era um imbecil iludido. Era como se o facto de nos sentirmos bem com a vida fosse um acaso que podia, por vezes, acontecer aos jovens afortunados mas que, por seu turno, era algo pelo qual o ser humano não sentia qualquer afinidade. Que estranho! E que estranho não lhe teria parecido o pensar que ele, que sempre se sentira abençoado por se contar entre os inúmeros normais protegidos, era, de facto, a anormalidade, um estranho em relação à vida real, exactamente por se sentir tão fortemente enraizado."
Este livro é considerado o primeiro volume de três, seguido de “Casei com um Comunista” (1998) e A Mancha Humana (2000), dos quais me falta agora apenas ler o segundo volume. Entre este primeiro e o terceiro sinto proximidades, nomeadamente na tragédia e a busca de relação com a paz através da natureza. “A Mancha…” consegue ser mais forte, mais trágica, mas “A Pastoral…” é mais abrangente e delineadora do mundo de Roth. Contudo, e em termos comparativos, pensei mais em Liberdade” (2010) de Jonathan Franzen, o estilo literário próximo ajuda, o facto de aprofundar a classe média americana também, mas é o modo como nos é dado a ver a partir do interior dos personagens e como somos levados a requestionar o nosso lugar no seio da sociedade, as normas que já deixámos para trás porque as tínhamos aceitado como naturais, que torna estes dois livros parte um todo ficcional imensamente intenso e significante.


Curiosidade cinematográfica: "A Mancha Humana" foi o primeiro livro a ser adaptado — como "The Human Stain" (2003) — seguido de “Casei com um Comunista” , — como "Elegy" (2008) — enquanto este primeiro volume só chegará as cinemas em outubro pelas mãos de Ewan McGregor.

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