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abril 13, 2017

A Ciência do Governo, o Ministro e a FCT

No final de 2016 disse no Facebook que o governo tinha falhado em toda a linha da Ciência ao não abrir qualquer concurso de financiamento de projetos de investigação ao longo de todo o ano. Tinha passado todo o ano em reuniões, audições e conversas, mas ação efetiva nada tínhamos visto. Que seria preciso algo em grande em 2017 para recuperar a credibilidade. Chegado a 2017, com que nos presenteia o governo?

As 500 páginas de leitura necessária para submeter um projeto científico em 2017

Um concurso de financiamento de projetos científicos que é tudo menos tal. Talvez o melhor adjetivo para qualificar este concurso seja aquele que já vai sendo comum na política nacional, uma grande trapalhada.

1 - O grande objetivo do concurso passa afinal por dar resposta a uma bandeira política, a criação de emprego científico, e não verdadeiramente apoiar a realização de projetos de investigação. Ou seja, dos 240 mil euros a que se pode concorrer, 50% são automaticamente alocados ao pagamento de um desses empregos ao longo de 3 anos.

Assim, em vez dos propalados 240 mil euros oferecidos ao projeto, temos na verdade 100 mil, ou seja, metade do que tínhamos nos concursos anteriores.


2 - As regras impostas à aquisição de equipamento, como computadores entre muitos outros materiais, usam lógicas de desgaste. Ou seja, um computador prevê-se que dure 4 anos, como os projetos só podem desenvolver-se até 3 anos, ficará nas costas do professor arranjar dinheiro para suportar a última quarta parte do custo desse equipamento.

Compreendendo esta lógica numa empresa, não se compreende como é que se espera que um professor isolado, que é obrigado a assinar termos de responsabilidade financeira, se pode colocar numa situação destas. Espera-se que retire do seu salário congelado há 10 anos?


3 - Para tornar tudo isto ainda mais aliciante, o concurso foi desenhado a partir de um amontoado de preceitos, regras e obrigações que converteram o tradicional manual de candidatura, que tinha à volta das 30-50 páginas, numa dúzia de documentos, que depois de imprimidos perfazem cerca de 500 páginas. Ou seja, o professor — que tem de dar aulas, gerir a universidade, e fazer investigação — deve agora ainda encontrar tempo e capacidade mental para ler e digerir estas 500 páginas de regras e regrinhas. Que importa o estado-da-arte da investigação, que importa a inovação do projeto apresentado, o relevante é obedecer a todos os parâmetros que o governo impõem para aceder ao dinheiro.

O governo diz-nos que é porque tem de justificar os dinheiros a partir de múltiplas rubricas europeias. Eu digo que não, que é um problema da sua gestão, péssima organização e desconsideração total pelos professores da universidade portuguesa. Para que servem os Sistemas de Informação, porque andamos a gritar contra a automação. Ora se o governo tivesse feito o seu trabalho, teria ele próprio desenhado o sistema de informação, por forma a automatizar todas as relações entre linhas de financiamento, não delegando para os investigadores a necessidade de conhecer os meandros desses mecanismos. Ao governo compete facilitar a investigação, aos investigadores compete investigar.


4 - Como não podia deixar de ser em processos desta magnitude burocrática, as pérolas vão-se descobrindo aos poucos. Primeiro percebeu-se que do último concurso para este, as áreas científicas interdisciplinares tinham mudado de nome, devem ter propriedades camaleónicas. Mas não só, as áreas da FCT não são as mesmas que depois surgem na documentação que define as áreas de investimento a privilegiar pelo país em ciência. Assim, a ciência pode ser de tudo um pouco.

Mas o melhor surge quando olhamos para essas novas áreas que servem de espartilho ao financiamento de ciência, e se percebe que a investigação foi submetida a uma espécie de regionalização científica, com os montantes de verbas a variar de região para região, e nem todas as áreas de investigação a serem elegíveis em todas as áreas geográficas. Ou seja, um professor em Vila Real, apesar de leccionar a mesma área que um colega de Lisboa, e precisar de fazer avançar o seu trabalho de modo a garantir que aquilo que lecciona é o estado-da-arte, não o poderá fazer porque a sua NUT não aceita que ele o faça na sua Universidade.


5 - Se o conteúdo do proposto é mau, a forma não lhe fica atrás, nomeadamente naquela que é a plataforma de submissão das candidaturas. Se até aqui submetíamos tudo numa plataforma mais ou menos simplificada pela FCT, agora apresentam-nos um Balcão 2020 que é um verdadeiro terror. Tanto que temos investigadores nacionais seniores a dizerem que nem sequer lá entram. Resta então aos mais novos que não têm alternativa, e ainda precisam de lutar pela carreira fazer esse trabalho?! Mais, no caso de algumas Universidades, como a minha, isto é ainda mais interessante, já que o professor não terá apenas de preencher a plataforma do Balcão 2020, como terá ainda de replicar tudo para uma segunda plataforma interna. E como tudo isto tem de ser confirmado internamente, terá ainda de o fazer muito antes do prazo final dado pela FCT!

Acredito que os Reitores e o sr. Ministro nunca tenham entrado nestas plataformas, assim como nunca tenham olhado para o dossier de PDF necessários ao seu preenchimento.


6 - A fechar, e como não poderia deixar de ser, já que é prática de todos os Sistemas de Informação desenvolvidos pelos Serviços Públicos nacionais, foram criados grandes ações de informação e explanação do modo de funcionamento do concurso. A incompreensão do funcionamento pela comunidade é de tal ordem que as sessões organizadas se esgotaram, e tiveram de ser realizadas novas, incluindo outras a nível interno.

Ou seja, nem a Informação foi preparada para os utilizadores finais, nem as plataformas dão resposta a tal. Design de Interação é algo que não existe para todos estes sistema, já que primeiro implementa-se e depois explica-se como funciona. Os humanos que obedeçam às exigências das máquinas.


Resumindo, o último concurso de financiamento a projetos científicos em Portugal foi publicado em 2014. Passados três anos, e dois anos depois deste Ministro estar no governo, é isto que se oferece à ciência nacional. Querem rankings de Universidades jovens, universidades não jovens, de publicações na Science, indexadas nas ISI e SCOPUS? Tenho uma recomendação, façam como alguns desses países gananciosos por rapidamente subir nos rankings, e "comprem" investigadores com pergaminhos criados lá fora. Esqueçam o desenvolvimento de ciência por cá, já que dá muito trabalho de gestão, e se existe algo em que Portugal continua a ser bom é na desorganização total.

O sr. Ministro diz sentir falta de "ativismo académico", tem toda razão, pouco ou nada se ouviu até agora sobre toda esta trapalhada, vejo todos os meus colegas muito calados.