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março 12, 2019

Leonardo

Walter Isaacson tem vindo a escrever biografias sobre vários criadores multidisciplinares, ou polímatas, — Benjamim Franklin (2003), Steve Jobs (2011) e Ada Lovelace (2014) — e alguns génios — Einstein (2009) e Alan Turing (2014) —, tendo a última, sobre Leonardo (2017), servido de síntese aos dois tipos de criadores, dadas as capacidades deste para abraçar múltiplas artes (desenho, pintura, escultura, música ou arquitetura) e múltiplas ciências (engenharia, geometria, cartografia, anatomia, biologia, astronomia, ou física), e em várias dessas ter aprofundado e conseguido revolucionar o conhecimento existente — técnicas de pintura (sfumato e luz), geometria (perspetiva e vistas de sólidos) e engenharia (sistemas e hidráulica). Pode-se até discutir o valor de algumas das suas revoluções, mas não se pode retirar o mérito e brilhantismo de cada uma dessas inovações, o que em síntese nos obriga a colocar Leonardo no topo dos criadores de conhecimento de toda a História.

Livro: Isaacson, W. (2017). Leonardo da Vinci. NY: Simon & Schuster

Por ter nascido como filho ilegítimo, Leonardo não teve acesso a uma educação formal, tendo-se iniciado como autodidata, o que aliado ao facto de ser esquerdino faria com que escrevesse da direita para a esquerda, em espelho (o que para algumas teorias da conspiração tinha como objetivo vedar o acesso ao seu trabalho). Só aos 14 anos foi iniciado na aprendizagem do desenho e pintura com Andrea del Verrocchio, tendo depois disso recorrido sempre a diferentes especialistas para aprofundar aquilo que desejava aprender de novo. Leonardo recusava o conhecimento presente nos livros, considerava que o conhecimento estava no mundo, e só se podia adquirir pela observação e experimentação desse mundo, era um empiricista.
“His quest for knowledge across all the disciplines of arts and sciences helped him see patterns. Occasionally this mode of thinking misled him, and it sometimes substituted for reaching more profound scientific theories. But this cross-disciplinary thinking and pattern-seeking was his hallmark as the quintessential Renaissance Man, and it made him a pioneer of scientific humanism.”
Esta sua abordagem à construção de conhecimento, e a imensidão de conhecimento desenvolvido, fazem deste seu empiricismo a sua principal genialidade, algo que só foi possível graças a um conjunto de características psicológicas que o sustentavam: a persistência, a resiliência, e uma curiosidade inumana. Leonardo não se interessava por tudo ao mesmo tempo, começava num tópico — perspetiva, sombras, movimento de água, circulação do sangue, etc. etc. — e investia todas as suas forças até esgotar o que podia apreender da realidade. Como exemplo, no campo da anatomia e fisiologia, dissecou dezenas de cadáveres, tendo chegado a abrir um porco em que o coração ainda batia, para estudar a movimentação do sangue, e assim perceber que o coração não era feito de 2, mas 4 ventrículos separados. O seu trabalho moveu-se sempre pela sede de saber, de conhecer, de descobrir o que não sabia e não lhe conseguiam dar respostas. Movia-se por via da observação ao que juntava o desenho não apenas para registar as observações, mas para compreender o real. Quando tentou responder ao problema matemático da quadratura do círculo, ainda tentou seguir pela via do cálculo, com a ajuda do matemático Luca Pacioli, mas incapaz da necessária abstração, acabaria por recorrer ao desenho para construir as suas respostas.

Sólidos geométricos desenhados por Leonardo Da Vinci para o livro "Divina Proportione" (1506) de Luca Pacioli.
“During this period of intense anatomical study, Leonardo made 240 drawings and wrote at least thirteen thousand words of text, illustrating and describing every bone, muscle group, and major organ in the human body for what would have been, if it had been published, his most historic scientific triumph. ”
“His studies at times became such a deluge of details that they reveal more about his passion than about water’s dynamics. He spent hours fixated on flowing water, sometimes observing it and at other times manipulating it to test out his theories. In one part of the Codex Leicester he crammed 730 conclusions about water onto eight pages, causing Martin Kemp to comment, “We may feel that the boundary between dedication and obsession has been overstepped.”
“He was mainly motivated by his own curiosity (..) He was more interested in pursuing knowledge than in publishing it. And even though he was collegial in his life and work, he made little effort to share his findings. (..) This is true for all of his studies, not just his work on anatomy. (..) when he died, Leonardo would leave -- only piles of unedited notebook pages and drawings. (..) Over the years, and even centuries, his discoveries had to be rediscovered by others.” 
"[Leonardo] began scientifically by arguing that the embryo does not breathe in the womb because it is surrounded by fluids. “If it breathed it would drown,” he explained, “and breathing is not necessary because it is nourished by the life and food of the mother.” Then he added some thoughts that the Church, which believed that individual human life begins at conception, would have considered heretical. The embryo is still as much a part of the mother as her hands and feet are. “One and the same soul governs these two bodies,” he added, “and one and the same soul nourishes both.”
Em termos artísticos Leonardo foi um de vários da Renascença italiana, pertencendo ao trio destacado — junto a Michelangelo e Raphael —, um destaque que não se deveu apenas ao seu trabalho, mas também ao trabalho de quem analisou e escreveu sobre ele, quem o enalteceu e legou conhecimento sobre as obras, não é por acaso que Isaacson cita abundantemente Vasari. A mestria dos artistas de Florença era grande, mas a criação de estrelas das artes, algo que nunca até então tinha existido, só foi possível graças a um trabalho elaborado de comunicação, e foi isso que Vasari fez ao escrever a primeira obra da História de Arte: “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), com 650 páginas. Claro que a tudo isto se juntam as condições ótimas proporcionadas a estes artistas pela elite financeira de Florença, Veneza e França.

1) 1489 – 1490, "Dama com Arminho", óleo sobre madeira, 54 cm × 39 cm; 2) 1490 – 1496, "La Belle Ferronnière", óleo sobre madeira, 62 cm × 44 cm; 3) 1513 - 1516 "S. João Batista", óleo sobre madeira, 69 × 57 cm; 4) 1503 - 1517, "Mona Lisa", óleo sobre tela, 77 cm × 53 cm. O exemplo máximo da arte e ciência de Leonardo foi a Mona Lisa, que começou a ser desenhada em 1503, esteve na sua posse até à sua morte, tendo sido trabalhada sempre que descobria outras formas de pintar.

Estudo da luz e sombra de Leonardo

Mas para Leonardo a arte não era diferente de todos os seus restantes interesses. Claro que muitas das encomendas que foi tendo eram no campo da arte, mas nem sempre respondia aos pedidos, e menos ainda ao que se pedia. O facto de ter passado toda uma vida focado no desenho fez com que revolucionasse a pintura, não tanto pelo virtuosismo da repetição, mas pelos ganhos que o conhecimento adjacente (anatomia, fisiologia e geometria) lhe foi granjeando (ver imagem com evolução das expressões faciais). Assim como quis tanto descobrir o interior do coração de um porco, quis conhecer o poder do efeito da perspetiva, que também ganhou bastante com todo o estudo imensamente aprofundado que fez sobre a luz e sombra (ver “A Última Ceia”). Para mim, Leonardo não foi artista nem cientista, foi ambos, mas foi acima de tudo o primeiro Designer. Movia-se no sentido de compreender o real, esboçava esse real para compreender o seu funcionamento, chegar às suas qualidades intrínsecas, a partir do que depois projetava teorias e possibilidades, algumas mais sólidas, outras, pura fantasia especulativa.


O fresco "A Última Ceia" 1495–1498, acima recortado do seu ambiente, e abaixo visto do lugar imaginado por Leonardo, para se ter a noção completa da perspectiva atente-se no efeito de profundidade conferido à parede. 

O livro de Isaacson pode não ser o livro mais completo sobre Leonardo, mas isso nunca nenhum o será. Pode também não ser o mais imparcial, mas isso é difícil quando nos detemos a analisar alguém como Leonardo. Mas é uma excelente biografia por se concentrar nos elementos base da genialidade intelectual de Leonardo, e deixar de lado outros tantos aspetos que poderiam ser discutidos — a família, os lugares, os problemas com a homossexualidade —, que são claramente menores. Leonardo representa para a humanidade o apogeu da cognoscência, e por isso é como tal que interessa lê-lo e conhecê-lo, mais do que como ser-humano, pois era praticamente inumano.
“The sexual act of coitus and the body parts employed for it are so repulsive that, if it were not for the beauty of the faces and the adornment of the actors and the pent-up impulse, nature would lose the human species.” Leonardo Da Vinci
No próximo dia 2 de Maio de 1519,  a data da sua morte faz 500 anos, e no entanto não paramos de descobrir feitos e obras. Só neste mês de março já vão duas, o esboço da Mona Lisa nua e a única escultura sua sobrevivente, no qual se pode ver um cristo sorridente. Se existe personagem da história que pode servir-nos de inspiração, que pode ajudar-nos a lutar contra as nossas crises existenciais, é Leonardo.

"A Morte de Leonardo da Vinci" (1818) por Jean Auguste Dominique Ingres. Na tela podemos ver o rei de França, Francis I, recebendo o último sopro de Leonardo.

março 10, 2018

Conhecimento: abstraído, individualizado e emocionalizado

A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.


Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.” 
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.” 
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”

Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.


A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”

dezembro 29, 2016

Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais

Durante décadas consumi milhares e milhares de filmes, primeiro tentando visualizar todo o cânone da arte, depois tentando acompanhar tudo o que se ia produzindo em cada ano. Há 3 anos parei, estava cansado. Mas a obsessão consumista não tinha parado, simplesmente mudou de meio, passei para os livros. Desde então tornei-me obsessivo com a leitura do cânone da literatura. Nos últimos meses tenho-me questionado sobre o porquê deste consumo, o seu fundamento e o verdadeiro interesse.


A arte e o entretenimento — cinema, literatura, banda desenhada, videojogos, teatro, ballet, ópera, música, dança, séries tv — tornaram-se centrais na experiência das nossas vidas no início do século XXI. Muito do que somos, do que edificamos em nós, enquanto seres humanos, é-nos inculcado por estas duas formas de produção de cultura. Continuamos a ser muito daquilo que as pessoas que nos rodeiam são, a cultura vai muito para além dos artefactos que produzimos, mas as transformações produzidas na sociedade têm agravado a dependência destes objetos. Ou seja, vivemos cada vez mais de forma individualizada, a partilha direta tem-se reduzido, graças à aceleração das vidas e também à consciência dos perigos. Por outro lado, a cultura na forma de registos perenes e móveis — informação digitalizada — aumentou drasticamente, o que também explica o declínio das formas de arte e entretenimento que não se conseguiram adaptar a tal, como o teatro ou o ballet.

Tendo em conta esta perspectiva do mundo contemporâneo, e não entrando na discussão das suas desvantagens ou benefícios, interessa-me discutir um dos seus grandes problemas: o consumo. Tendo em conta a rede de informação que criámos, a internet, passámos a poder não só aceder a praticamente tudo aquilo que é produzido nestas formas de arte e entretenimento registáveis, como passámos a confrontar-nos com todo o tipo de grupos de pessoas que as consomem. Estas novas condições criaram assim um fundo inesgotável de informação, de conteúdos de arte e entretenimento, e ainda conhecimento sobre as mesmas, que nos compelem a consumir.

Quem nunca passeou os olhos pelas listas dos diferentes cânones? — “os livros que deve ler antes de morrer”, “os filmes que todos os realizadores recomendam”, “os videojogos que marcaram a arte”, “os álbuns que mudaram o mundo”, “as séries que mudaram a televisão”, etc. etc. As próprias listas tornaram-se objetos de interesse, com os media a especializarem-se na criação das mesmas, e sítios web a trabalharem para a sua agregação. Mas não é sobre as listas que me quero deter, que considero relevantes, e que não são novas, basta olhar ao belíssimo trabalho de Umberto Eco, “The Infinity of Lists".

Munidos de listas e meios para aceder às obras, resta o seu consumo, para o que precisamos de tempo. Como o tempo, ao contrário das listas, não é infinito, vemo-nos obrigados a fazer escolhas, e são estas que vão gerar enormes doses de ansiedade. O que deixar de fora? Será que não estamos a perder? ‘Quem foi que tinha dito que esta era crucial’ ler, ouvir, ver, jogar? O conflito interno emerge, procuramos ainda mais informação, resenhas, livros, sítios, e ouvimos pessoas, especialistas e amigos, pessoas que respeitamos, e vamos tomando decisões. Alguns de nós tornam-se obsessivos.

Porquê e para quê?
Separando a arte do entretenimento, podemos reduzir drasticamente o que consumimos. A arte representa a novidade, o que ainda não conhecemos e temos de nos esforçar para compreender. O entretenimento limita-se a pegar no que já existe, redecorar e voltar a dar, para manter a nossa atenção ocupada sem esforço, para nos entreter. Assim, se deixarmos de lado o entretenimento, podemos questionar-nos sobre as razões de querermos, desejarmos, ou necessitarmos de consumir mais e mais arte.

Para responder a tal, precisamos de, mesmo dentro da arte, reduzir mais o espectro. Não olhar a arte como tudo o que seja distintivo, mas antes a delimitar àquilo que é capaz de produzir novos significados, capaz de alterar as nossas percepções do mundo. É isto que motiva a arte, é isto que nos motiva a querer mais, e é também isto que gera ansiedade, por sentir medo de não estarmos a aceder a todos esses novos mundos, novas experiências.

Mas é aqui que devemos parar e refletir sobre o para quê? No século XXI já percebemos que mais importante do que possuir coisas é viver experiências, são estas as responsáveis por nos edificar enquanto pessoas. Mas pelo que fui dizendo acima, as experiências transformaram-se em objetos de consumo. Até que ponto estamos verdadeiramente a experienciar, não estaremos antes a consumir, a deixar-nos levar pelo simples desejo de possuir? Já não o possuir materialmente, mas agora o possuir de informação.

O erro
É neste sentido de posse que surge o erro. Diga-se, uma posse fortemente reconhecida pela sociedade, veja-se como reage a programas como “Quem quer ser Milionário!”. Este erro define-se no modo como se conceptualiza a equivalência entre a detenção de informação e o conhecimento. Tendo em conta que o conhecimento reside na nossa mente, existe a tendência para tentar aplicar à sua compreensão, metáforas materiais. Como as coisas materiais se podem arrecadar numa garagem, a informação digital pode ser guardada em registos, torna-se natural pensar que o o conhecimento pode também ser simplesmente arrumado na nossa memória.

Diferença entre deter factos e deter conhecimento.

O problema é que o conhecimento não é informação, não é mera detenção de factos. De nada adianta deter na memória todas as datas dos reinados portugueses se nada fizermos com elas. Conhecer é mais do que deter informação, é a capacidade de criar com essa informação. Requer detenção mas também interligação de factos, em que o todo se torna distinto das partes, criando novos mundos mentais, produzindo aquilo a que chamamos imaginação, potenciador de novas ideias, novas ações, novas decisões.

A questão que se coloca então é, como podemos fortalecer o nosso conhecimento a partir daquilo que experienciamos, ou consumimos, tendo em conta que a relevância para nós assenta mais na criação de interligações entre factos, do que na detenção dos mesmos?


Como?
Poderíamos cair na tentação de acabar com o consumo exterior e dedicarmo-nos apenas a trabalhar as ligações entre os factos que já detemos. Contudo isso acabaria por nos levar a um beco conceptual. Mesmo para quem procure a especialização, é possível dentro da mesma encontrar sempre novas perspectivas que aprofundem essa especialização. Ou seja, o que nos interessa então é perceber como se produzem essas novas perspectivas, que mais não são do que diferentes formas de interligar os factos.

Podemos dizer que a única forma de aceder a essas formas diferentes de interligação é aceder a diferentes mundos que interligam factos. Ora esses mundos são produzidos por pessoas, seres-humanos, cada um de nós. Daí que seja vital para a nossa sobrevivência a interação humana, algo que o nosso sistema biológico recompensa tão intensamente. Montaigne descobriu empiricamente que as obras nunca poderiam substituir as pessoas, a experiência, mas na verdade muitos de nós não estão ao alcance da interação com pessoas de diversas profissões, culturas e conhecimentos. Daí que as obras sejam aquilo que nos resta, e continuem a ser um veículo fundamental na ampliação do conhecimento.

Mas se aquilo que buscamos são as interligações, e não os factos, e se estas existem na forma como cada ser humano as cria, então em vez de nos centrarmos nas obras, deveríamos centrar-nos nos seus criadores. Ou seja, interessa compreender quem são, como conduziram a interligação dos factos. Ficarmos apenas pelas interligações presentes nas obras, poderá levar-nos de volta à mera memorização de factos. O que queremos saber é como foram produzidas as interligações, mas para isso precisamos de compreender as particularidades que constituem o seu criador, como são potenciados os mundos que nos apresenta.

No fundo estamos a dizer que cada autor possui uma forma particular de configurar o mundo e dar-nos a sorver. Seja em livro, filme, etc. É da sua experiência do mundo que advém a obra, da sua experiência particular que lhe permitiu construir uma configuração pessoal. De certa forma isto explica porque o consumo de múltiplas obras do mesmo autor tende a não nos dar muito mais. Não é uma questão de incapacidade do autor, é antes porque ao procurarmos diferentes interligações, é difícil encontrá-las numa mesma pessoa. Isto acaba por estar em consonância com o que dissemos acima e que separa a arte do entretenimento. As múltiplas obras de um artista, são no fundo repetições, são variações dos modos como configura e interliga o mundo percepcionado (podemos aqui exceptuar as obras criadas entre períodos de grande diferença de idade/experiência).

A memória
Dito tudo isto, resta ainda compreender como funciona o nosso sistema interno de registo, a nossa memória. Porque se refleti sobre tudo isto não foi apenas para concluir que me interessa apenas ler um livro de cada criador. Existe algo mais por detrás de tudo isto, algo que diz respeito a nós recetores, e que tendemos a esquecer, literalmente.

Quando paramos para analisar o que consumimos — livros, filmes, videojogos, etc. — percebemos muito rapidamente que aquilo que experienciámos e que muito nos disse no dia em que terminámos, passado um mês já quase desapareceu. Quando ao fim de ano queremos recordar o que disse um personagem, o que fez, ou o que o impediu de fazer algo, percebemos que essa informação já não existe na nossa cabeça. Detemos alguns factos, mas na generalidade as interligações entre esses desapareceram.

Quanto recordamos de um livro ao longo do tempo (de Timothy Kenny)

Há uns anos dei-me conta disto com os filmes que via. Por isso passei a escrever quase sempre sobre os filmes aqui no blog. Era uma forma de fortalecer a memória. Contudo, com a experiência dos anos, fui percebendo que mesmo isso não fazia mais do que atrasar o esquecimento. Por outrolado, quando confrontava memórias de filmes vistos no ano anterior com filmes vistos há 20 anos, notava estranhamente que os que tinha visto há 20 anos se mantinham mais vivos dentro de mim!

Poderia ser uma questão de qualidade fisiológica da memória, jovem versus envelhecido. Isso é muito propalado no discurso popular, ‘estou a ficar velho, esqueço-me de tudo’. Contudo, quando comparei efetivamente o que acontecia, reparei numa diferença central, o tempo de exposição. Quantas vezes terei visto obras maiores e menores, como “Apocalypse Now”, “Dead Zone”, “Alien”, “Amadeus”, “They Live”, “Rambo”, “2010”, “Bleu”, “The Doors”, “Wild at Heart”, não menos de 10 vezes, alguns mesmo mais de 20. Por outro lado, filmes que considerei obras-primas na última década, como “Blue Is the Warmest Color”, “Her”, “Gravity”, “The Turin Horse”, “Enter the Void”, “Tuesday After Christmas”, “Sangue do meu Sangue”, “About Elly”, “The Return”, não vi nenhum mais de uma vez. Ou seja, a exposição repetida tem ser relevante no perdurar das memórias.

Na verdade, as memórias não são mais do que interligações neuronais, e por isso, se essas não forem reforçadas tendem a desfazer-se (perceber melhor como funcionam as memórias jogando "Neurotic Neurons" ou lendo um pequeno texto do Guardian). Ou seja, se tiver lido um livro ou visto um filme hoje, e trabalhar sobre o seu conteúdo, aprofundar o que vi, estruturar ideias sobre o mesmo (exemplo de técnicas), de modo continuado no tempo, provavelmente ao fim de um ano ainda terei boas memórias do mesmo, porque fiz com que as ligações permanecessem ativas. Mas isto funciona apenas no modo continuado, porque como dizia acima, fazer uma análise no momento e nunca mais voltar a ela, apenas atrasa o esquecimento.

Interligações neuronais

Esta ideia, de continuamente trabalhar sobre algo que se aprendeu, é uma técnica com várias décadas, nos campos da memorização e aprendizagem, denominada de "prática de recuperação" (retrieval practice). Ou seja, não basta saber que sei (que li, vi, ou joguei) preciso de em cada momento, conduzir-me à extração da informação sobre o que sei. A abordagem trabalha a outra extremidade da memória, ou seja, a repetição de leitura ou visualização de obras repõe a memória pela repetição na entrada de informação, enquanto que a repetição de acesso à memória, repõe pela saída, trabalhando ambas no aumento da solidificação das interligações. Conto em breve trazer aqui mais algumas ideias sobre a memória, depois de acabar de ler "Make it Stick" de Henry L. Roediger.

Conclusão
A principal conclusão que retiro da minha experiência com os cânones culturais, do que aprendo, memorizo e esqueço, é que mais do que aceder ao máximo de obras, de modo desenfreado e obsessivo, interessa encontrar um conjunto de obras que falem connosco. Que não podendo nós contactar com os seus criadores, possamos usar as suas obras para com eles conferenciar. Tendo feito esse trabalho, interessa voltar a essas obras, voltar, voltar, e voltar. Trabalhar sobre as mesmas, saber mais, aprofundar sobre quem as fez, sobre o que verdadeiramente interligam, e como interligam. Compreender para aprender, aprender para imaginar, repetir para manter viva a imaginação.

Fica assim traçado o meu objetivo para o ano 2017: reler, rever, e rejogar.

maio 29, 2015

Conhecimento Tácito e Declarativo: o caso da bicicleta

Destin Sandin criou mais um episódio memorável, “The Backwards Brain Bicycle” (2015), para a sua série YouTube “Smarter Every Day”. Neste episódio Destin  demonstra como é impossível (não é, mas requer centenas de tentativas até se conseguir) conduzir uma bicicleta com o volante em modo reverso, depois de ter aprendido a conduzir uma bicicleta normal. Destin retira duas conclusões desta sua experiência:



1 - Conhecimento ≠ Compreensão

2 - Que vemos o mundo através de um viés, uma formatação do nosso cérebro.
Concordo com ambas, mas podemos ir mais longe na explicação do que acontece aqui, e a partir deste exemplo tecer alguns comentários mais gerais nomeadamente sobre nós próprios e sobre processos Educação. Assim adicionaria aqui, dois pontos que o próprio Destin toca, mas não elabora:
3 - Que a neuroplasticidade do cérebro é realmente muito diferente entre um cérebro jovem e um adulto. Por mais que nos últimos anos nos queiram fazer crer que podemos facilmente desaprender e voltar a aprender (neste caso temos 8 meses vs. 2 semanas).

4 - Que as nossas acções físicas são fruto de algoritmos (processos) de interação entre mente e corpo, e não meramente ordenadas pela vontade um raciocínio mental (por isso ele diz que se deixar de “pensar” consegue mais facilmente conduzir).

"The Backwards Brain Bicycle", (2015), Smarter Every Day 133

Mas nada disto é novo, e era aqui que queria chegar. O que é muito bom, é a demonstração audiovisual e empírica destes quatro pontos, porque em teoria sabemos disto há muito tempo, embora muitas vezes parece que não nos lembramos, ou queremos acreditar que não é assim, como aliás se pode ver nas reacções das pessoas que vão guiar a bicicleta. Ou seja, o que temos presente neste exemplo é um caso de Conhecimento Tácito, que pode ser designado também de Implícito ou Experimental. É um tipo de conhecimento que só pode ser construído pela experiência, e no tempo. O caso clássico deste tipo de conhecimento é exactamente o de andar de bicicleta, mas pode ser aplicado a muitas outras acções humanas, tal como qualquer desporto ou qualquer arte.

Mas este não é o único tipo de conhecimento que podemos construir, existe um outro, normalmente dado em oposição ao tácito, e que chamamos de Conhecimento Declarativo, ou explícito. Este é aquele em que mais se fundamenta a escola tradicional. Ou seja, estamos a falar de todo o conhecimento que pode ser descrito, sendo suficiente a descrição para que o possamos apreender. Acontece com a Biologia, a Geografia, a História, etc.

Este tem sido um domínio que me tem interessado imenso nos últimos anos por causa do Design de Interação, e que à medida que fui investigando sobre os modos como agimos sobre a realidade, fui-me apercebendo da relevância da Experiência. Daí que tenha começado a defender o ensino técnico-profissional, uma vez que o ensino tradicional sem base de experiência é manifestamente insuficiente para formar pessoas.

Isto explica porque ensinar Arte nas nossas escolas é tão complicado, porque uma coisa é ensinar Teoria e Crítica de Arte, outra bem diferente é ensinar a criar arte, isso só pode acontecer com a experiência. E aqui incluo naturalmente o Português, que não é mais do que o ensino da arte da língua. Não faz muito sentido passar anos e anos a ensinar conceitos e regras de uma língua, quando a verdadeira aprendizagem da mesma, só se pode efetuar através da repetição de Leitura e Escrita, como ainda aqui dizia a propósito de Proust ou Afonso Cabral.

Aliás, o caso do Português acaba por não ser distinto do da Matemática, já que ambos requerem a experiência, mas por o fazerem num domínio somente mental, porque laboram sobre abstrações do real, julga-se erradamente que o que é importante é a aprendizagem da componente declarativa, quando esta na maior parte das vezes só perturba a aprendizagem, que só se consegue efetuar verdadeiramente pela repetição da experiência. Neste caso, conhecer não chega, é preciso chegar à compreensão.