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novembro 12, 2021

200 anos de Dostoiévski

Ontem foi o dia do aniversário dos 200 anos de Fiódor Dostoiévski que nasceu a 11 novembro de 1821, e por isso queria ler algo dele que ainda não tivesse lido, mas algo curto. Acabei por encontrar o que queria no Goodreads através da Sara, que partilhou a leitura de um conto que desconhecia, este "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877). Li as primeiras páginas e senti-me atirado para “Memórias do Subterrâneo” (1864) sentindo uma imediata vontade de ler todas aquelas palavras, como se o autor ainda estive entre nós. E no entanto, todo o conto acaba discutindo isso mesmo, o estar no meio de nós, como e porquê, questionando quem determina até quando. 

Desenho de Joseph Charlemagne, ao qual adicionei o nome e datas.

março 27, 2019

Alegorias políticas da República Popular da Hungria

"O Grande Caderno" (1986) de Agota Kristof apresenta-nos uma alegoria seguindo os passos dos irmãos Grimm, não deixando de fora o horror e originando múltiplas leituras. Pouco procurei, mas rapidamente encontrei várias, desde as mais simples que sustentam uma defesa do estoicismo, a teorias assentes no menino selvagem do século XIX, ou ainda a defesa de uma "ética ingénua" segundo Zizek. Do que eu li, e tendo em atenção ao contexto da escritora, refugiada na Suíça mas originária da Hungria ditatorial (estado comunista entre 1949 e 1989), pareceu-me estar perante um ataque ideológico pungente aos valores comunistas, com um discurso centrado em três vetores: ética, justiça e controlo emocional. À medida que vamos entrando no livro, vamos percebendo que algo está errado, existe um choque entre os valores rasteiros, praticamente selvagens, e uma literacia elevada. Ou seja, choca-nos como personagens com tanta capacidade intelectual podem submeter-se, quase voluntariamente, a tal.

Excerto da capa de uma versão inglesa. A versão lida faz parte da edição portuguesa da Editora Asa que reune os três primeiros livros de Agota Kristof, sob o título "Trilogia da Cidade de K."

Para se poder compreender a alegoria, pelo menos desta forma que passarei a descrever, um dos caminhos pode passar pela leitura da obra de Dostoiévski, nomeadamente as suas últimas obras, para entender aquilo que tanto o incomodava no comunismo: a forma como impossibilitava o humano na sua especificidade, bom ou mau, mas na sua singularidade. Dostoiévski batalhou com todas as suas forças o comunismo, porque não acreditava no seus princípios, compreendeu muito antes da sua implementação os seus efeitos, o modo como o seu racionalismo igualitário, acabaria por destruir a emocionalidade humana, a base daquilo que nos torna todos diferentes, e no fundo, únicos.


*** SPOILERS ***********************************

Os gémeos parecem originários do planeta Vulcano, mas isso apenas no diz aquilo em que se transformaram, já que todo o processo da sua insensibilização é descrito, seguindo toda uma cartilha de mandamentos, em que se obrigam a passar pelo indescritível para deixarem simplesmente de sentir. Ou seja, estamos perante filhos do grande regime, defensores de um visão historico-materialista, na qual o humano é moldado pelas condições materiais a que é sujeito. A ideologia não dá qualquer espaço à emoção, só a ética e a justiça podem garantir a igualdade. Não existe qualquer relação com o estoicismo aqui, pelo simples motivo de que os gémeos não buscam qualquer fim além do processo em si. Os gémeos são máquinas éticas de justiça, defendendo a igualdade de forma implacável.
"A Avó chama-nos:
– Filhos de uma cadela!
As pessoas chamam-nos:
– Filhos de uma Bruxa ! Filhos da puta!
Outros dizem:
– Imbecis! Vadios! Ranhosos! Burros! Porcalhões! Nojentos! Canalhas! Dejectos! Pedaços de merda! Malfeitores! Sementes de assassino!
Quando ouvimos estas palavras, sentimo-nos corar, as orelhas a arder, os olhos a picar, tremem-nos os joelhos.
Não queremos corar nem tremer, queremos habituar-nos aos insultos, às palavras que magoam.
Instalamo-nos à mesa da cozinha um em frente do outro e, olhos nos olhos, dizemos palavras cada vez mais atrozes.
Um:
– Cara de merda! Cu de cão!
O outro:
– Enrabado! Sacana!
Continuamos assim até que as palavras deixem de penetrar no nosso cérebro, nem sequer entrem nos ouvidos.
Exercitamo-nos desta maneira durante cerca de meia hora por dia, depois vamos passear pelas ruas.
Arranjamos maneira de ser insultados pelas pessoas e verificamos que conseguimos ficar indiferentes.
Mas também há palavras antigas.
A nossa mãe dizia-nos:
– Meus queridos! Meus amores! Meus tesouros! Meus adorados bebés!
Quando nos lembramos destas palavras, os nossos olhos enchem-se de lágrimas.
Mas teremos de esquecer estas porque, presentemente, ninguém nos diz semelhantes palavras e porque as nossas recordações são uma carga muito pesada de transportar.

Então recomeçamos o nosso exercício de outra maneira.
Dizemos:
— Meus queridos! Meus amores! Amo-vos... Nunca vos hei-de deixar... Nunca amarei mais ninguém... Nunca... Vocês são toda a minha vida...
À força de serem repetidas, as palavras vão perdendo o seu significado e a dor que trazem consigo atenua-se." (
pp. 24, 25)
Fui entretanto reler o Manifesto Comunista, e fiquei a refletir sobre a discussão que Marx e Engels fazem sobre a diferenciação entre o Proletariado e a Burguesia, no qual dão conta daquilo em que a burguesia transformava a sociedade no final do século XIX, que diga-se, em termos humanos, difere pouco daquilo que é hoje o capitalismo:
“Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais" ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "pagamento à vista".
“Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio."
"A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias."

in O Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels
Poderá este livro ser mais do que uma crítica ao Comunismo? Existirá aqui algo mais? Porquê gémeos? Será a resposta ao Comunismo o Capitalismo? Interrogo-me se poderiam estes gémeos serem a alegoria do Comunismo e Capitalismo, como faces de uma mesma moeda? Embora, tenha dúvidas sobre esta leitura, já que o comportamento dos gémeos, tirando talvez a parte final — em que uma dos gémeos leva consigo as jóias e o dinheiro, e serve-se do corpo do pai para atravessar a fronteira —, não é dada ao aproveitamento, ou tentativa de extrair ganhos, dos outros...

*** FIM SPOILERS ***********************************

Não admira que com obras destas, os intelectuais tenham sempre sido perseguidos pelos regimes ditatoriais.

março 17, 2019

Leitura obrigatória: "Homem Invisível"

"Homem Invisível" (1952) de Ralph Ellison é um livro passível de infinitas interpretações que começam no título e nunca param de se nos oferecer à sua compreensão. Não é um livro de alegorias nem de filosofias, existe uma trama que nos agarra, é romance, são eventos que se sucedem numa história repleta de peripécias, que começam no sul quente dos EUA e desembocam na fervilhante Nova Iorque, mas não deixa de ser filosofia no seu estado bruto, aquilo que emerge do relatar do quotidiano, motivado pelo fulgor da profundidade e detalhe com que se preenche a explanação desse relato. Mesmo os momentos que fui considerando menos bons por alguma incoerência — diferença de tipos de discurso e alguns aparentes clichés narrativos — acabam no final fazendo sentido como um todo, evidenciando a narração adotada como inseparável da história e seus personagens.

Fotografia encenada com base no prólogo do livro "Invisible Man", criada por Jeff Wall, 2000, MoMA

Temos um personagem, negro, nos anos 1920/1930, nos EUA, de quem nunca sabemos o nome, que começamos por acompanhar num tradicional registo de romance de formação, mas que aos poucos vamos percebendo que de tradicional tem pouco. Inicialmente marcado por capítulos ou cenas da vida do personagem em crescimento, praticamente estanques, num tom diarista que choca com momentos de ação e espetacularidade, mas em que o espetáculo não é usado como fomento de heroísmo nem de anti-heroísmo, gerando verdadeiros anticlímaces, que no fundo acabam contribuindo para a o cerne do livro, a invisibilidade do personagem. A invisibilidade começa no interior do personagem, sendo o sentido mais imediato de leitura os efeitos que provoca no seu comportamento, mas que ao longo de todo o livro, e principalmente ao fechar do pano — a fuga e queda num buraco — acaba a refletir-nos a todos, àquilo que somos perante a sociedade.

"Compreender. Compreende? E bem pior do que isso. Os seus sentidos registam, mas o cérebro entra em curto-circuito. Nada tem significado. Ingere mas não consegue digerir. Já é... bem, Deus me valha! É só olhar para ele! Um zombi que caminha! Já aprendeu, não só a reprimir as emoções mas também a sua humanidade. É invisível, a encarnação viva do negativo, a realização perfeita dos seus anseios, senhor! O homem mecânico!"
Não raros momentos, pelo menos até meio, somos levados a pensar em autobiografia, memórias, mas com o desenrolar dos eventos vamos percebendo que essa é apenas uma secção do pano de fundo. Ellison deu várias entrevistas e escreveu, frisando que não se tratava de autobiografia, mas não era necessário, bastava desde logo atender às referências psicológicas e existenciais de Dostoiévski, góticas e fantásticas de Faulkner, ou alegóricas e pastorais de Twain. O registo move-se entre o realismo confessional, agravado pelo uso da primeira-pessoa, e a fantasia mitológica que roça o surrealismo, de onde originaram as minhas primeiras objeções, mas que no virar da última página, se percebe como sendo vitais para a total compreensão da dimensão da invisibilidade. É um livro que fala do humano em grande profundidade, para o que usa um tom descritivo do interior do personagem verdadeiramente perfurante. No entanto nada disso envolve grandes tiradas filosóficas, nem sequer grandes acontecimentos. Na banalidade do quotidiano o fantástico acontece, mas esse é-o apenas à superfície, já que rapidamente se converte em vulgaridade pela repetição entre passado, presente e potencial futuro.
"Ilusões que tinham acabado de ser varridas da minha cabeça: universitários que trabalhavam  para retomar os estudos no Sul; rapazes mais velhos, paladinos do progresso racial, cheios de planos utópicos para a construção de impérios comerciais negros; pastores cuja a única autoridade era a que conferiam a si próprios, sem igreja nem fiéis, sem pão nem vinho, corpo ou sangue; dirigentes comunitários sem seguidores; homens de sessenta anos ou mais, ainda presos aos sonhos pós-Guerra Civil, de liberdade dentro da segregação; seres patéticos que não possuíam nada, excepto sonhos de cavalheirismo, que tinham empregos insignificantes ou recebiam parcas pensões, todos fingindo estar envolvidos em empreendimentos mais vastos, embora obscuros, que influenciavam os comportamentos pseudo-aristocráticos de certos congressistas sulistas, diante dos quais se desfaziam em reverências e cumprimentos, como galos senis num quintal; multidão mais jovem pela qual sentia agora um desprezo apenas comparável ao que um sonhador desiludido sente por aqueles que ainda desconhecem que estão a sonhar" 
"Hoje em dia, o meu mundo é feito de infinitas possibilidades. Que frase! Ainda assim, é uma boa frase e uma boa atitude perante a vida; o ser humano não devia aceitar outra; isso, ao menos, aprendi debaixo da terra. Até que um grupo consiga colocar o mundo numa camisa de forças, essa definição é possível e viável."  
 Surpreende como um livro americano de 1952 consegue fazer-se valer de uma premissa tão contemporânea, e ao mesmo tempo adversa à própria cultura dos EUA, a arte de falhar. Num mundo e cultura tão direcionados ao sucesso só ganhar interessa, falhar nunca, criámos a vergonha e a desonra para quem falha, porque o falhanço é o símbolo da impossibilidade, incapacidade e da incompetência, espaço reservado a perdedores. Ora Ellison apresenta um personagem num romance de formação como homem novo e empoderado pela educação, mas que falha em toda a linha, sem contudo o apresentar como perdedor, já que é a partir desses falhanços na sua relação com o mundo, que ele cresce interiormente e aprende a conhecer-se. De certo modo, podemos aqui ler uma relação direta com as “Memórias do Subterrâneo” (1864) de Dostoiévski, no que toca à sua oposição ao mundo perfeito prometido pelo Comunismo através da apresentação de um mundo existencialista que pauta a condição daquilo que faz de nós seres-humanos.

Ralph Ellison [1913 — 1994]

É um romance magistral e, no entanto, é o primeiro do autor, mas se isso não for suficiente para nos impressionar, é também o único. Ralph Ellison publicou esta obra com 39 anos, depois de 7 anos completamente dedicados à sua escrita, e passaria os restantes 42 anos da sua vida a trabalhar no segundo romance que nunca publicaria, do qual nos deixaria mais de 2 mil páginas, de onde Charles R. Johnson acabaria por coligir 400 páginas e publicar o livro “Juneteenth”. Comparando com outros autores, não falando de torrenciais ou recordistas, é caso para nos interrogarmos porquê? Esta questão não se coloca apenas na literatura, surge em todas as áreas criativas, sendo a conclusão mais consensual: “que provavelmente o autor disse tudo o que tinha para dizer”. Aliás, voltando a Dostoiévski, as ideias dos seus cinco romances mais importantes — “Memórias do Subterrâneo”, “Crime e Castigo”, “O Idiota”, “Demónios”, “Os Irmãos Karamazov” — poderiam também talvez ter sido todas sintetizadas num único grande romance.

julho 01, 2018

Coetzee com Dostoiévski

Cheguei a "O Mestre de Petersburgo" (1994) quando procurava livros sobre São Petersburgo, tendo-me surpreendendo imenso com a descoberta, pois um livro sobre um dos maiores expoentes da literatura escrito por outro grande escritor, entretanto nobilizado, só poderia ser uma grande obra. Não posso dizer que tenha ido além do que conhecia de ambos, mas também não desiludiu propriamente. Senti mais Dostoiévski, apesar de escrito por Coetzee em jeito expiatório, mas isso provavelmente deve-se mais ao facto de conhecer melhor a obra de Dostoiévski.


O texto fala-nos de um Dostoiévski que volta a São Petersburgo, estando a viver em Dresden, para dar conta do funeral do seu enteado, Pavel (enteado verdadeiro). A morte do enteado acaba por estar ligada (imaginado por Coetzee) a alguns personagens revolucionários reais (Sergey Nechayev), conhecidos da história da Rússia e dos livros de Dostoiévski (principalmente "Demónios"). Passamos assim algumas semanas na companhia do escritor enquanto este deambula pela cidade na tentativa de compreender o que terá acontecido ao seu enteado ao mesmo tempo que vai lidando com os seus demónios internos.

Este resumo da trama torna-se imensamente relevante já que ele responde à resposta porque Coetzee (1940) escreveu este livro. O seu filho Nicholas, morreu com 23 anos (1989), aproximadamente a idade do enteado (no livro) de Dostoiévski, 5 anos antes da publicação deste livro. Ou seja, temos Coetzee claramente à procura de respostas dentro de si mesmo, a escrutinar-se, a tentar compreender o que sente, porque sente, como responder a tão grave tragédia, aquela porque nenhum pai deveria passar. Por outro lado, Dostoiévski (1821-1881) não perdeu o enteado, mas perdeu dois filhos, Sonya à nascença (1868), e Alexey com 3 anos (1878) que muito o fez sofrer e o fez mesmo passar algum tempo num convento em busca de respostas. Mais razões pelas quais Coetzee se interessaria por Dostoiévski não são fáceis de descortinar, até porque Coetzee raramente fala, e menos ainda explica as suas obras, mas existe uma nota de uma entrevista que é central para compreender este livro:
“Toda autobiografia é um contar de histórias, toda a escrita é autobiografia. [A escrita autobiográfica é] um tipo de auto-escrita em que nos sentimos obrigados a respeitar os factos da nossa história. Mas quais factos? Todos os factos? Não ... Escolhemos os factos na medida em que eles se encaixam no nosso propósito evolutivo.”  (Coetzee, 1992, fonte)
Por outro lado, a razão porque Coetzee escolhe para pano de fundo o cerne da obra "Demónios" (1872) é bastante menos clara, e menos ainda a razão porque se foca no capítulo censurado da obra, que podemos ler na edição portuguesa, da Editorial Presença, ainda que como anexo. Para mim resulta claro que Coetzee está a tentar entrar na mente do maior psicólogo da literatura em busca de algum tipo de autoterapia, mas pergunto: porquê de forma desviante? Existirá uma sede de mal quando o mal nos bate a porta?

maio 01, 2018

Dostoiévski, o profeta do terror comunista

"Demónios" (1872) não é um romance, não é também um romance histórico, é um trabalho de puro ativismo social mas que nunca se subjuga ao mero panfleto, assume o fundo realista para se debruçar sobre as especificidades do realismo social e psicológico, ou seja, debate as questões que faziam mover a sociedade russa na segunda metade do século XIX, procurando compreendê-las a partir das motivações psicológicas dos seus principais atores. Ao fazê-lo Dostoiévski dava conta do que acontecia e do potencial que essas ações encerravam para o futuro da sociedade, daí que apelidar Dostoiévski de profeta assuma neste livro o seu sentido maior.


As personagens reais por detrás da história criada por Dostoiévski. Acima: Granovsky, Tchernichévski, Turguenev; em baixo: Bakunin e Nechayev. (Imagens do Museu de Dostoiévski, São Petersburgo).

“Demónios” é baseado num crime de assassínio cometido em 1869 pelo niilista Sergey Nechayev, autor do “Catecismo de um Revolucionário”, um manifesto que apresenta as bases ideológicas e executivas para a promoção daquilo que hoje designamos como Terrorismo. Como nos seus livros anteriores, Dostoiévski empenha-se aqui na luta contra o radicalismo político nas suas diferentes frentes, do niilismo ao comunismo. Terá contribuído para tal: o facto de ele próprio, nos seus 20 anos, ter pertencido a grupos literários radicais (Círculo Petrashevsky); os anos passados na prisão na Sibéria; e todo um amadurecimento; que o conduziriam a um recentrar de ideias, fugindo do ateísmo e impondo-se uma moldura de crença religiosa que o tornaria imune à redução do humano a mero joguete político. O radicalismo que Dostoiévski ataca é aquele que se assume a partir da excisão da empatia do ser humano.

"Estudante Niilista" (1883) de Ilya Repin

Depois do ataque direto a Tchernichévski em “Memórias do Subterrâneo” (1864), esta obra é talvez o seu mais violento ataque político, plena de raiva e carregada de horror, para dar conta do seu mau-estar com tudo o que grassava a sociedade russa. Sem subterfúgios Dostoiévski aponta o dedo a Turgueniev, a Tchernichévski, a Herzen, a Fourier, a Bakunin a todo o tipo de aventuras radicais que colocavam o indivíduo em segundo plano em nome de ideais, supostamente científicos, criados a partir de abstrações, de conceptualizações que limitavam o humano a mera variável de sistemas lógicos. Ora Dostoiévski após a sua experiência de quase-morte, quando lhe foi sentenciada a execução por fuzilamento, dá-se conta de que o ser humano não é mera abstração mas é alguém que sofre enquanto busca por se compreender a si mesmo, e que as ideias não se podem sobrepor às pessoas. Assim, temos Dostoiévsky a desconstruir a estrutura psicológica que suporta o terrorismo, o de ontem e o de hoje. Sim Profeta, porque esta obra e outras do autor, mas esta especialmente, previu o que viria a acontecer na Rússia, uma revolução terrorista como fica expresso nas seguintes passagens do livro:
[Chigalev:] "Ao dedicar a minha energia ao estudo da organização social da sociedade futura que substituirá a presente, cheguei à convicção de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde a antiguidade até à presente data de 187..., eram uns sonhadores, uns fantasistas e uns tolos que se contradiziam a si mesmos, que não percebiam nada de ciências naturais e daquele estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier, as colunas de alumínio, tudo isso talvez seja adequado para os pardais, mas não para a sociedade humana. Mas como a futura forma social é necessária precisamente agora, quando todos nós, finalmente, tencionamos agir para não termos de refletir nunca mais, vou propor o meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! (..) Confundi os meus próprios dados, e a minha conclusão está em contradição direta com a ideia inicial em que me baseio. Partindo do princípio da liberdade ilimitada, chego à conclusão do despotismo ilimitado. Acrescento no entanto que, fora da minha solução da fórmula social, não pode haver mais nenhuma.
(..)
[Professor:] “Conheço o livro dele. Propõe, como solução final, a divisão da humanidade em duas partes desiguais. Uma décima parte obtém a liberdade pessoal e um poder ilimitado sobre os restantes nove décimos. Estes têm de perder a personalidade e transformar-se numa espécie de gado, e, infinitamente submissos, atingir, mediante uma série de involuções, uma inocência primitiva, uma espécie de estado de paraíso primitivo, embora trabalhem, aliás. As medidas sugeridas pelo autor para se privar de vontade os nove décimos da humanidade e para os transformar em gado por meio da reeducação de gerações inteiras são notáveis e muito lógicas, baseadas nos dados fornecidos pelas ciências naturais. Podemos não concordar com algumas conclusões, mas é difícil duvidar-se do intelecto e dos conhecimentos do autor.”
Ou seja, os revolucionários radicais que discutem estas ideias, apresentam como solução que noventa por cento da sociedade seja escravizada pelos restantes dez por cento. A igualdade entre os 90% deve ser operada pela polícia, terrorismo de Estado e destruição das vidas cultural e artística. Dostoiévski estima que para atingir o paraíso político, precisarão de eliminar "cem milhões" de pessoas pelo caminho. Isto foi escrito em 1872, a revolução comunista começou em 1917, e num estudo publicado em 1997 em França, "O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão" dá-se como número provável de mortes às mãos do comunismo, 94 milhões de pessoas.

E hoje, quando reflito nisto assusto-me ao pensar naquilo em que Portugal esteve perto de se transformar, em 1974. Obviamente que estas ideias perigosas não surgem do vazio, são precisas condições propícias à sua germinação, e a Rússia do final do século XIX aproximava-se perigosamente da França do final do século XVIII. Existia uma clara necessidade de pôr termo ao luxo desmedido da monarquia e séquito aristocrata. Apesar de o reinado Romanov estar já muito transformado, de ter abolido a escravatura e criado todo um sistema de governo e Estado muito mais justos, as diferenças entre classes eram ainda abissais.

Por isso surgem indivíduos como Sergey Nechayev que viam em Robespierre o único caminho possível, e que vão preparando o terreno para mais tarde Lenine chegar do estrangeiro, e com toda uma espécie de legitimidade, aplicar a cartilha revolucionária, e sem pudor defender que não um mas toda a Casa Romanov devia ser eliminada. Dostoiévski previu Lénine, e a sociedade russa estaria alerta, contudo não deixa de ser verdade que a Europa não foi inocente em todo esse processo, tendo contribuído para colocar Lénine no poder na Rússia, podendo apenas servir-lhe de desculpa a Primeira Grande Guerra. Assim como não podemos esquecer que se a NATO não tivesse instalado um porta-aviões no Tejo junto ao Palácio de Belém, em 1975, mais toda uma enorme atividade diplomática, provavelmente hoje eu não poderia estar a escrever estas linhas com todo este à vontade.


Sobre o livro em si. A escrita de Dostoiévski não é fácil de seguir, não pela excessiva elaboração, mas pela quantidade de contexto que requer para a sua compreensão, e assim obtenção de prazer. Não ajuda também o já conhecido problema desta literatura assente numa grande quantidade de personagens, todos com três nomes, fora os diminutivos, o que obriga a redobrada atenção no seguimento da trama. Por outro lado, este livro apresenta uma espécie de dupla linha de enredo, primeiro a geração mais velha — Stepan Trofimovich Verkhovensky e Varvara Petrovna Stavrogina — com a sua forma de estar intelectual, aristocrática e distante, e em segundo plano, ou talvez o principal, os seus filhos — Nikolai Vsevolodovich Stavrogin e Pyotr Stepanovich Verkhovensky —, os radicais totalmente incapazes de empatia. Dostoiévski não estabelece nunca a relação entre pais e filhos, deixando para o leitor o trabalho de compreender essa relação, mas apontando claramente no sentido mais crítico à obra de Turguenev "Pais e Filhos" (1862).

Sobre a edição portuguesa, devo dizer que vem com um capítulo extra no final do livro, que foi escrito por Dostoiévski para ser lido como o primeiro capítulo da terceira parte, mas que aquando da publicação teve dificuldades em fazer passar pelo editor. Li como Dostoiévski pretendia, e considero que tinha toda a razão. Sim, é um capítulo forte e intenso, talvez mais vulgar nos dias de hoje, mas é um capítulo fundamental para compreender até onde pode ir a obscenidade do radicalismo do protagonista da história: Nikolai Vsevolodovich Stavrogin. Todo o resto do livro apresenta um Stavrogin muito indefinido, necessário à criação da complexidade psicológica, mas este capítulo funciona como espécie de chave do seu caráter, e mais do que isso, como chave explicativa do niilismo.

abril 26, 2018

Os últimos anos de Dostoiévski

São Petersburgo é uma das grandes capitais da arte e cultura europeias, muito graças a Pedro o Grande e aos que o sucederam na dinastia Romanov nos 300 anos seguintes, que sempre tiveram um enorme interesse pelo desenvolvimento destas áreas, ainda assim e no meio de tanta e tanta cultura que se pode por aqui encontrar, existe um talento que se destaca enormemente, Dostoiévski. Não nasceu cá, mas foi aqui que morreu e escreveu praticamente toda a sua obra. Por isso torna-se obrigatório visitar o museu que a cidade lhe dedica no qual podemos aceder ao apartamento em que viveu os últimos três anos da sua vida e onde escreveu o derradeiro, e profético, “Os Irmãos de Karamazov”.

Estúdio de trabalho de Dostoiévski

O apartamento está imensamente bem mantido. Nele podemos ver o quarto dos seus filhos, o escritório da esposa, e o seu estúdio, e não deixa de ser impactante como estes três cómodos apresentam todos mesas com utensílios de escrita. Toda a família se dedicava à escrita, as crianças eram educadas desde tenra idade não apenas na leitura, mas também na escrita, e a esposa, à semelhança de tantas outras esposas de grandes escritores, era quem corrigia as provas de Dostoiévski. O autor nutria uma profunda admiração pelos filhos, considerando-os a razão para estar vivo, no quarto destes podemos ver também vários brinquedos da época. A sua filha, Lyubov Dostoevskaya, viria a publicar, em 1920, um livro com as recordações do seu pai — "Dostoyevsky as Portrayed by His Daughter" — que segundo os historiadores não é muito factual, devendo-se muito ao facto de Lyubov ter apenas 11 anos quando Dostoiévski morreu, ainda assim fiquei imensamente curioso por conhecer este relato.

À esquerda, a mesa do quarto das crianças (Lyubov e Fyodor). À direita, a mesa da esposa Anna Grigoryevna Snitkina

Já tinha visto fotografias do último escritório de Dostoiévski, por isso não me surpreendeu propriamente, o que me tocou mais profundamente foi o relato, do sistema audioguia, sobre o último ano de vida, junto com os objetos ali mantidos. Falo especialmente da cigarreira, na qual podemos ver inscrita pela mão da filha, Lyubov, o dia da sua morte. Apesar de avisado pelos médicos, Dostoiévski fumou sempre até morrer, e de modo intenso enquanto escrevia pela noite adentro. O relógio do escritório foi também parado no dia e hora. Além disso, podemos ver várias fotografias da família, as mesas e cadeiras, espreitar a rua pelas janelas, sentir o espaço e a vida de quem ali terá vivido.

A caixa de tabaco de Dostoiévski com a inscrição pela filha da data da morte do pai — 28 janeiro 1881. Data antiga que no nosso calendário gregoriano corresponde a 9 fevereiro 1881.

Talvez a maior novidade, para mim, tenha sido a descoberta do impacto gerado pelo seu “Discurso a Puchkin” (deixo o PDF, em inglês) para a inauguração do monumento dedicado ao poeta em Moscovo, em 1880. Dostoiévksi terá desejado enaltecer a obra de Pushkin a um ponto mitológico, fazendo dele o representante máximo da alma russa, mas ao fazê-lo, e tão perto da sua própria morte, estava já bastante doente, acabou sendo ele próprio elevado a profeta. Quando terminou, o público chorava e gritava — Profeta, Profeta, Profeta — levando-o em braços. É a apoteose de Dostoiévski, que ainda desejava escrever a segunda parte de ”Os Irmãos Karamazov” mas já não teria tempo para tal. No museu encontram-se fotografias do evento em Moscovo, e descrições do que se passou nesse dia, e tenho de dizer que aceder a tudo isto, pela primeira vez e no espaço em que ele viveu, produziu em mim um forte impacto.

Inauguração, em 1880, do monumento de homenagem a Pushkin em que Dostoiévski participou.

Dostoiévski não foi apenas um escritor, não foi sequer mero criador de movimentos literários, seja o psicologismo ou o existencialismo. A sua forma de estar no mundo deveu-se a muitas variáveis, as quais não podemos simplesmente atribuir à sua família, à prisão na Sibéria, à perda de dois filhos pequenos (uma com três meses, outro com três anos), ou à política. O que o destacou dos demais foi o seu profundo humanismo, o qual soube tão bem utilizar para descrever o ser-humano e as suas entranhas psicológicas.


Obras analisadas no VI:
"Os Irmãos Karamazov" (1881)
"Os Demónios" (1872)
"O Idiota" (1868)
"Crime e Castigo" (1866)
"Memórias do Subterrâneo" (1864)

abril 04, 2018

Dostoievski desvelado

“Crime e Castigo” é um dos meus livros preferidos de sempre, volto mentalmente a ele muitas vezes, mas ao longo de todos estes anos tinha-me debatido sempre com uma mesma questão — o que é que teria conduzido Dostoievski a retratar um assassino e o seu remorso? — para a qual ainda não tinha obtido resposta. Foi agora, ao reler “Memórias do Subterrâneo” (1864), imediatamente depois de ter lido “O Que Fazer” (1863) de Tchernichevski, que compreendi. Raskolnikov (1866), o assassino arrependido, é um sucessor do funcionário público (1864), o intolerante, tendo ambos um mesmo propósito: demonstrar o que estava errado nas teses filosóficas de “O Que Fazer” (1863) (ler análise anterior). Encontrei outros que fizeram esta mesma ligação, o que me diz que esta minha leitura não é assim tão exótica. Não posso dizer que a relação seja muito comum nas análises das duas obras, mas isso com certeza deve-se mais ao facto do livro de Tchernichevski ter praticamente sido esquecido no tempo.

A belíssima capa da nova edição da RA

No caso de “Memórias do Subterrâneo”, a relação com Tchernichevski é comumente reconhecida, talvez porque a leitura de qualquer texto sobre Tchernichevski e o seu livro, no conduz inevitavelmente para este livro de Dostoievski que desse ponto de vista é visto como uma resposta. Na verdade, por ter lido um a seguir ao outro, posso dizer que em vários momentos o discurso do Funcionário Público de “Memórias do Subterrâneo”, parece quase uma carta a Tchernichevski. Porque na verdade ele fala dirigindo-se a alguém, mas não é alguém abstracto, ele fala de teorias e visões da realidade — nomeadamente os “sonhos”, os “estudos”, a “vantagem”, o “radioso e lindo”, o “Palácio de Cristal” — que são alusões diretas ao livro de Tchernichevski e que vão sendo contra-argumentadas e contra-atacadas com casos e cenários concretos que refutam totalmente a “utopia” representada em “o que Fazer?”.
“Mas tudo isso não passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou que o homem só age mal porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instrução, se lhe abrissem os olhos para os seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo sórdido, imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas vantagens reais, veria justamente no bem a sua própria vantagem?”
“Ah, a vantagem! Que é a vantagem? Os senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a vantagem não só possa, como também deva consistir, algumas vezes, em desejar para si aquilo que é ruim, e não o vantajoso?”
“O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor!”
 Se o livro de Tchernichevski é difícil de ler, é porque a escrita é terrível, já o livro de Dostoievski não é menos difícil de ler, mas é porque o modo como ele perscruta o sentir humano é apresentado num modo profundamente elaborado. O livro é pequeno, mas cada página exige a máxima atenção da nossa parte para compreender todo o alcance da argumentação. Claramente que ler o livro depois de ter lido Tchernichevski condiciona a leitura, porque estamos continuamente a aferir os dois lados da barricada argumentativa, e a tentar compreender em toda a extensão da argumentação as evidências e factos propostos. Dostóievski vai a ponto de antever o funcionamento do processo de tomada de decisão que ocorre no nosso inconsciente, e que só no final do século passado começou a ser compreendido:
“E como eu, por exemplo, me tranqüilizaria? Onde estão os meus motivos originais, nos quais me apoiaria? Onde estão os fundamentos? De onde vou tirá-los? Faço uma ginástica mental e, em conseqüência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais original, e vai por aí afora, até o infinito. Essa é precisamente a essência de toda consciência e reflexão.”
Todas estas discussões, a que em parte se pode aceder nestes pequenos fragmentos retirados da primeira parte de “Memórias do Subterrâneo”, servem para sustentar a história que nos é contada na segunda parte sobre os casos de intolerância e irascibilidade do Funcionário Público para com amigos de infância e uma mulher. Mas estes servem também para ilustrar o que está na base de Raskolnikov. No fundo Dostoievski procura ilustrar o quão impossível é traçar regras que coloquem todas as pessoas no mesmo patamar, que uma vantagem para um é uma desvantagem para outro, e vice-versa, que somos profundamente diferentes, ao que se junta a questão de que o mundo não é simplesmente a preto e branco, somos seres conscientes, dotados de sentires e contradições internas, sendo capazes de colocar a moral de lado para assassinar alguém, assim como logo a seguir sentir todo o peso da moral dessa ação.

Várias leituras apontam o ataque ao determinismo, e por sua vez a criação do existencialismo por Dostoievski em “Memórias do Subterrâneo”. Pois vejo antes de tudo isso, uma capacidade para antever o ser humano na sua infinita complexidade e variabilidade, e uma recusa da simplificação desse humano, daí o surgimento de "Crime e Castigo". Para Tchernichevski bastariam pessoas formadas com acesso a boas condições de vida para se transformarem em novas pessoas, investidas em ações pelo bem. Dostoievski questiona o determinismo, mas não mecanicista e sim num sentido dogmático, em que alguém determina os parâmetros de regulação da ordem. No fundo, Dostoievski aponta exatamente para onde as ideias de Tchernichevski, seguidas muito depois por Lenine, acabariam por conduzir a Russia, a ditadura.


Nota: Os excertos do livro são da tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares para a L&PM, pela facilidade no acesso a cópia digital. A versão lida foi a de António Pescada para a RA.

agosto 22, 2016

“Almas Mortas” (1842)

Uma comédia negra social e uma introdução à arte de Tolstói e Dostoiévski. Dito isto, “Almas Mortas” é uma obra relevante em termos históricos pela sua a sua arte e crítica social, no entanto continua a ler-se imensamente bem, com bons momentos de humor e uma belíssima escrita.


Este livro deveria ter sido o primeiro de uma trilogia, mas face às reações violentas da sociedade Gogol que tinha já iniciado o segundo volume acabaria por o destruir pouco antes de morrer. Contudo e sendo este o seu único romance, não desmerece em nada a leitura, já que o livro se fecha, deixando claro, caminho aberto para novas aventuras que nunca viremos a conhecer. A agressividade despoletada pela obra é facilmente entendível, já que Gogol desfaz tudo e todos ao longo do texto, desde os grandes proprietários, aos camponeses, aos funcionários públicos, incluindo procuradores, chefes de polícia, etc. Nada escapa à sátira, frontal e direta, que hoje está já muito distante desse real, mas que facilmente percebemos, já que se muito mudou, muito ainda continua na mesma.

Chichikov é alguém com anos de experiência na função pública russa do século XIX, sabe manejar a máquina e ganhar com isso. O seu mais brilhante esquema é o foco deste livro, e passa por comprar "almas mortas", nesta Rússia as "almas" eram servos, os camponeses que trabalhavam para os grandes proprietários que por sua vez mediam a riqueza em função do número de almas que possuíam. As almas mortas eram os servos mortos, que pagavam impostos enquanto o senhorio não desse baixa dos mesmos. Chichikov pretendia comprar os contratos dessas almas, conquanto os senhorios não os dessem como mortos. O fundamento e o esquema é revelado no final do livro, mas ficamos a perceber assim que o nosso herói é um vilão, mas é-o no sentido da sátira, já que para Gogol ele encarna o espírito da época, o que se levados a refletir sobre os esquemas criados pela banca internacional nos dias de hoje (ex. subprimes, ativos tóxicos, etc.) rapidamente percebemos que pouco mudou, neste caso apenas passou do público para o privado.

Claro que toda esta análise social pode ser também encontrada em Tolstói, e tendo em conta o facto de Gogol no fim do livro dizer que o escritor tem o dever de relatar e criticar o social, nenhum outro sucessor de Gogol poderia ter sido mais efetivo nessa função. Já Dostóievski é bem mais psicológico, embora traga sempre rente ao texto o olhar social, mas considero que aquilo que melhor recupera de Gogol é a descrição realista com laivos poéticos. Aliás Gogol sempre que se refere ao livro, já que enquanto autor se assume como narrador e vai falando com o leitor em apartes à história de Chichikov, fá-lo como poema. Para quem tenha lido Tolstói e Dostoiévski facilmente sentirá ao ler Gogoel as suas reminiscências.
"Feliz o viajante que após longa e incómoda jornada, durante a qual suporta o frio, a chuva, a lama, o tilintar contínuo dos guizos, as constantes reparações nas estradas, as sempiternas zaragatas dos cocheiros com os ferradores, chefes de posta ensonados e demais canalha dos caminhos, volta a ver enfim o telhado familiar, as luzes e os lugares que conhece, as pessoas que estima e acorrem, calorosas, a recebê-lo, e a ouvir as alegres exclamações dos criados, as turbulentas correrias das crianças, os relatos de tudo quanto se passou na sua ausência, estes entrecortados de abraços e beijos tão ardentes que varrem logo da memória todos os desgostos sofridos.” (p.141)

Edição do Círculo de Leitores, 1977, p.263, trad. José António Machado

março 22, 2016

“Os Irmãos Karamazov”, da dúvida

Não tenho muito para dizer de novo sobre uma das obras mais estudadas de sempre. Talvez não surja tantas vezes no topo de listas de livros como outras emblemáticas — Guerra e Paz, Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido — mas isso não faz com que represente menos, talvez se deva apenas ao facto de ser uma obra mais simbólica e menos realista ou artística, o que acaba também por a tornar mais apetecível em termos de estudos académicos. A escrita, a estrutura e a história são muito boas, mas não são excepcionais, o que aqui é excepcional é o modo como a ideia central é trabalhada, como se construiu todo um enredo, personagens e ambientes, aparentemente iguais a tantas outras obras, para no seu interior se depositar uma questão.


Porque sentimos necessidade de acreditar em Deus e ao mesmo tempo não conseguimos deixar de o refutar?

Os Irmãos Karamazov” apresenta-se como uma história de parricídio, na qual uma pessoa de poucos escrúpulos, ou nenhuns, tem quatro filhos, um de uma primeira mulher, dois de uma segunda mulher, e um terceiro bastardo e não reconhecido, desprezando-os e despojando-os de potenciais heranças, até que um dia um destes quatro acaba por o matar. O miolo da história acaba por se desenrolar em volta dos 4 irmãos, e da tentativa de perceber de entre eles qual terá sido o verdadeiro assassino, sendo nós levados a acreditar que qualquer um deles o pode ter feito, nem que seja apenas no plano moral.

Dmitri, o mais velho, é o mais humano, pleno de defeitos, sem grandes louvores, mas em oposição é alguém pleno de valores, defensor da dignidade e honra até às últimas consequências. Ivan é o racionalista, aquele que tudo questiona, e que garante que na ausência de Deus tudo é permitido. Por sua vez Aliocha é o contrário de Ivan, nada racional mas verdadeiramente crente na espécie humana e em Deus. Por fim Smerdiakov, o filho bastardo, integra elementos de todos os três, é fraco de saúde, muito humilde, mas também muito inteligente e por isso extremamente racional. Como se depreende destas quatro personagens centrais, o cerne da família Karamazov assenta na contradição de espírito, derivando daqui o adjetivo karamazoviano, pelo facto da complexificação que se germina em redor destes já que nada é linear, tudo tem um contrário. Dmitri é um doidivanas, só pensa em mulheres, mas é dono de uma honra férrea. Por outro lado Ivan e Aliocha, os dois irmãos da mesma mãe, são reverso um do outro. Por fim Smerdiakov, o mais complexo de todos, visto como mero servo, mas capaz de perscrutar o interior da alma de todos os seus irmãos, debatendo-se interiormente sobre o que fazer com o conhecimento que deles absorve.

Toda esta descrição acima só é possível graças ao labor psicológico de Dostoiévski que nos consegue levar junto de tais personagens e fazer-nos sentir como eles sentem, ao que se junta todo o labor filosófico para criar as condições para a pergunta central do texto. Mas sobre isso convido quem ainda não leu a parar aqui a leitura, já que irei abrir o jogo para poder debater o que está em questão no cerne da obra.

À superfície “Os Irmãos Karamazov” é aquilo que descrevi acima, embrulhado numa trama de eventos detectivescos carregados de descrições para aguçar o interesse, contudo no levantar do véu e procurando respostas para alguns quadros menos tradicionais vemos que existe algo mais, por debaixo da camada de quotidiano realista Dostoiévski surpreende-nos com o simbolismo da fé. A obra contém assim dois momentos principais, a parábola do Grande Inquisidor a meio do livro, e o julgamento de Dmitri no final, estes dois eventos apesar de totalmente separados, e contendo discursos sem qualquer ligação aparente, fazem parte da mesma discussão, elevando a força simbólica do texto, tornando a obra, como dizia acima, absolutamente brilhante e obrigatória em qualquer cânone.

A parábola do Grande Inquisidor é uma história contada por Ivan, que surge depois deste questionar: se Deus existe, porque permite a existência do mal? Assim Ivan dá conta de uma hipotética conversa ocorrida no século XVI, em Sevilha, entre o Grande Inquisidor e Jesus regressado à terra. Nesta o Inquisidor acusa Jesus de ter falhado ao não aceitar nenhuma das três tentações do Diabo no deserto (transformar pedra em pão; deixar-se cair do templo e ser salvo por Deus; e tornar-se o senhor da Terra) apenas para garantir a liberdade de arbítrio dos seres humanos, já que desta forma teria transformado a liberdade num peso. Ou seja, não é a evidência dos milagres aquilo que todos procuram para aplacar as dúvidas, porque Jesus não acedeu então? Ser livre de acreditar coloca sobre nós o ónus da evidência.

"Auto de Fe" (1683) de Francisco Ricci

Para o Inquisidor esta liberdade acabaria por nos aprisionar em vez de libertar, e é por isso que manda prender Jesus, dizendo-lhe, os humanos já não precisam de ti, a Igreja desenvolveu as ferramentas necessárias para acabar com o sofrimento, com a dúvida, mostrando e ordenando sobre aquilo em que se deve acreditar, não te queremos por cá a questionar novamente tudo.

Além da crítica à igreja, Dostoiévski toca aqui a essência do ser. Uma vez adquirida a capacidade cognitiva de conhecer e interpretar o real, e na completa incapacidade para chegar à resposta ao porquê da existência, sentimo-nos tocar o vazio que na ausência de objeto torna impossível teorizar, racionalizar e no fundo tomar qualquer decisão ou agir em liberdade. Ao Inquisidor, Jesus responde com um beijo, o amor infinito é a única reposta possível, e capaz de dar conta da dúvida.

Para dar conta desta mesma ideia Dostoiévski fecha o livro com o julgamento de Dmitri, o irmão julgado culpado pela morte do pai injustamente e enviado para a Sibéria para os trabalhos forçados. O júri na impossibilidade de chegar à verdade acontecida, opta por seguir a via do racional e não a do amor ao próximo, teses contrárias defendidas pelo procurador e advogado de defesa. Quando os indícios apontaram a Dmitri, estes foram incapazes de ver para lá das provas circunstanciais, tal como acontece com a pergunta “se Deus existe, porque permite a existência do mal?", fazendo com que ambas conduzam à descrença. Por isso é que apenas Aliocha acredita em Dmitri, já que este é o único que aprendeu a crer, aquele que não se deixa levar pela superficialidade do racional, decidindo em virtude daquilo que sente. Personagem este que é o eleito como principal ao longo do livro pelo narrador e fecha o mesmo numa tentativa de nos mostrar o caminho…

Não estou a dizer nada de novo, mas impressiona ver o alcance deste escritor, como a esta distância teve a clarividência para separar o racional do transcendente, assumindo a fulcralidade da razão mas não esquecendo que esta também pode deturpar a nossa visão. Nem tudo pode ser respondido pela racionalidade dos eventos, e quando assim é precisamos de ser capazes de aceitar outras visões, mesmo que na ausência de evidência (ex. milagres). Não se defende aqui a crença, assim como não se defende a não crença, o escritor navega completamente no limiar entre os dois lados.

Dostoiévski morria quatro meses depois de publicar “Os Irmãos Karamazov”, com 59 anos, dava aqui conta de todo o seu percurso de vida, de toda a intensidade vivida, do questionamento interno, do querer acreditar mas sempre duvidar, da inconstância das ideias e do contraste constante entre as mesmas, sendo tudo isso aquilo que plasmou de modo simbólico nesta monumental obra. Será que tudo se finda no último minuto?


Textos consultados
Depois de terminar o livro procurei saber mais sobre a obra e acabei por ler vários textos, muitos irrelevantes, outros que me ajudaram e colo aqui abaixo. Tendo em conta o carácter simbólico do texto encontrei várias interpretações, bem distintas, e segui as ideias que mais me falaram. Percebo as abordagens que procuram ver no texto a oposição comunismo/capitalismo, percebo as abordagens que se focam no modo como as histórias servem para iludir o real, percebo também aqueles que usam o texto para criticar a igreja, mas não foi por aí que optei por seguir. Senti antes, nomeadamente tendo em conta o historial de vida do escritor, que aquilo que estava aqui em questão era muito mais profundo que isso, era algo individual, que cada um de nós tem de confrontar na solidão do seu interior.

. The Reification of Evil and The Failure of Theodicy: The Devil in Dostoevsky’s The Brothers Karamazov
. The Relation between Dostoevsky and the Characters of The Brothers Karamazov
. The Brothers Karamazov: Theme Analysis
. Why Did Jesus Kiss the Grand Inquisitor?
. The Metaphysical meaning of the Legend
. Book of a lifetime: The Brothers Karamazovby
. The Brothers Karamazov
. The Grand Inquisitor

fevereiro 14, 2015

Dostoievski, arte e autobiografia

Nada posso dizer de novo sobre “Crime e Castigo” (1866) de Dostoiévski, é um clássico, como tal escrutinado em todas as demais dimensões que possamos imaginar. Contudo aproveitarei estas linhas para dar conta da minha experiência com o livro. Escrito no século XIX nada lhe falta se comparado com o género literário tão em voga neste nosso século, o thriller psicológico. Os personagens e os seus problemas desmontados como quem desmonta um relógio suíço, a constante introdução de novos problemas e as suas reviravoltas, a gestão minuciosa do suspense através do ritmo a que cada nova informação vai sendo revelada. É um livro escrito para nos prender, ainda que mesmo que o não fosse, nos manteria interessados pelo seu personagem e a sua busca existencial. Nesse sentido acaba sendo uma obra intemporal, já que o âmago da discussão se prende àquilo que faz de nós seres-humanos.


Crime e Castigo” (1866), illustrações de D. Shmarinov, para edição russa de 1970

Crime e Castigo” é um relato do mundo realizado a partir do interior de uma alma amargurada. Dostoiévski coloca-nos sob a pele de Raskólnikov, e faz-nos sentir o peso do ser, do outro, da sociedade. É um relato imensamente poderoso, que muito deve à experiência pessoal do autor. Em 1849 Dostoiévski foi preso sob suspeita de conspiração contra Nicolau I da Rússia. Com ele foram detidos muitos outros, todos condenados à morte. No dia marcado para a execução, já estavam amarrados aos postes os primeiros quando chegou a ordem do Czar para comutar a pena por trabalhos forçados na Sibéria.
“A mágoa e a inquietude sem saída de todo aquele tempo, sobretudo das últimas horas, tinham-no oprimido a um ponto tal que agora se precipitava, literalmente, para a esperança que lhe abria aquela sensação plena, nova, íntegra. A sensação acometeu-o como um ataque: acendeu-se-lhe na alma como uma faísca e, num sopro, incendiou-o todo. Tudo nele se abrandou de vez, jorraram-lhe as lágrimas. Caiu de joelhos…” Dostoiévski, “Crime e Castigo” (1866)
À medida que vou recuperando a leitura de clássicos, e seguindo obras enaltecidas, dou-me conta do quão relevante é o peso autobiográfico de uma obra. Como a experiência pessoal de sentires, vivências, lugares, pessoas, vidas, medos e alegrias é importante no criar de lastro de sustentação do relato de uma história interessante, crepitante, capaz de se dar a uma total degustação por outro ser humano. A obra imaginada, deslocada do fio de vida de quem a escreve, pode até ser um exercício interessante, mas dificilmente contém o detalhe necessário à reconstrução cristalina de um espaço-tempo capaz de ombrear com a obra que se recria a partir das experiências vividas de um autor.

Isto explica, em parte, as razões pelas quais certos autores conseguem por vezes fazer uma obra, de rasgo genial, mas depois nunca mais voltam a atingir picos com a mesma intensidade. Aliás, isto vem de encontro à queixa do júri do prémio Nobel deste ano que referiu o facto de os escritores se acomodarem ao conforto da vida com bolsas, impossibilitando o surgimento de experiências de vida capazes de suportar novas ideias, novas abordagens, novos mundos. Mas isto não é uma queixa apenas deste júri, para quem vive no meio, e o gere enquanto editor, sabe que isso é uma realidade. Atente-se nas palavras de Bruno Vieira Amaral, autor de uma primeira-obra nacional de enorme sucesso junto da crítica em 2013, com vários prémios, e que em entrevista nos diz que não quer dedicar-se apenas à escrita, que irá continuar a dedicar-se a múltiplas outras coisas,
"Não quero viver da escrita, isso é uma armadilha... obriga a uma desmultiplicação... Sei como o meio funciona... obriga a decisões que podem ser más a médio, longo prazo para o trabalho do escritor. Muita produção, com um ritmo que rouba a liberdade de dizer 'vou escrever quando me apetecer'." (Bruno Vieira Amaral, in iOnline, 10.2013)
Isto sente-se bastante quando começamos a ler (ou a ver no caso do cinema) a obra de certos autores, nomeadamente os contemporâneos, que pouco mais fizeram na vida para além de escrever. Ao fim de 3 ou 4 livros ficamos com a ideia que dizem sempre o mesmo, que nada mais dali se pode esperar retirar. Não admira que criativos mais conscientes desta vicissitude da criação artística, pensem em renegar a arte que os consagrou. A título de exemplo veja-se Bela Tarr, retirou-se em 2011 depois de 30 anos e 9 filmes, atente-se às suas palavras:
“Ser cineasta é um belo trabalho burguês. Mas eu realmente não o quero fazer. Eu não sou um  verdadeiro cineasta. Eu sempre estive nisto pelas pessoas, e só queria dizer algo sobre as suas vidas. Durante 34 anos de cinema, disse tudo aquilo que queria dizer. Eu posso repetir, posso fazer uma centena de coisas, mas na verdade não quero aborrecer-vos. Não quero copiar os meus filmes. É isto.” (Bela Tarr, in IndieWire, 02.2012)
Num sentido completamente oposto, veja-se como António Lobo Antunes, com 24 romances publicados, se mantém ativo, e como se processa a escrita de cada nova obra sua. Como o processo mecânico e repetitivo toma conta da vontade expressiva, transformando o pessoal em maquinal.
“Cada vez mais escrevo sem plano. Sento-me e fico à espera de começar a ouvir a voz. Tenho de fechar uma parte da cabeça para que a outra funcione. E a mão começa a andar sozinha... Este livro está pronto há muito tempo. Não sei, não me lembro. Só escrevi. Não me lembro de nenhum, mesmo deste que estou a escrever. Leio a última linha e continuo.” (António Lobo Antunes, in Estante, 10.2014


ACTUALIZAÇÃO: 28 Fevereiro 2015

É interessante analisar como alguns dos autores mais consagrados viveram as suas vidas assentes em empregos que lhes permitiam ter o tempo e dinheiro para escrever nas horas livres. Num quadro publicado pela Laphams Quarterly podemos ver o que faziam autores como Charlotte Bronte, Kafka ou Faulkner. A escrita para estes autores estava longe de ser um emprego, uma obrigação, funcionava antes como escape, e ao mesmo tempo modo de expressão das suas experiências de vida diária.