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setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

maio 31, 2020

Design de Experiência através do “Power of Moments”

“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.

setembro 15, 2018

Discursos e realidades no caso do aumento da Extrema-Direita

Dizem-me que o aumento da extrema-direita nos anos recentes — do Brexit a Trump, passando pela França, Itália, Hungria, Holanda, Suécia — tem que ver com o modo como esta conseguiu tomar contar dos media, e criar um discurso beligerante sem oposição. Que nos tornámos demasiado passivos e passámos a aceitar tudo como Liberdade de Expressão. E que o caminho é abandonar a civilidade e reagir na mesma moeda, atacar, se não quisermos voltar a sofrer as atrocidades que a Europa viveu há 70 anos. Mas eu pergunto, porque é que vivemos aquelas atrocidades há 70 anos? Porque é que aquele líder chegou ao poder? A mesma pergunta devemos fazer agora, porque é que Trump, Orbán e Salvini chegam ao poder?


A respostas estão na nossa frente, crises económicas, instabilidade financeira que produz insegurança e induz medo intenso e fobias. E quando temos uma população acossada, com receio do amanhã para os seus filhos — veja-se as cidades inteiras de rulotes nos EUA, e os milhares de pessoas que vivem em carros, veja-se as reportagens da Grécia e passeie-se pela Europa profunda — qualquer arauto que prometa um jardim seguro, mesmo com pouco, será sempre visto como estando a oferecer mais do que os outros que oferecem nada. Aqui a extrema-direita vence facilmente, não precisa de dizer nada de especial, basta a sua ideologia — o discurso baseado no melhor para cada um e não no melhor para todos — que apela ao que sentem verdadeiramente estas pessoas, já que no mundo em que vivem ninguém quer saber delas, por isso estão também prontas a não querer saber de mais ninguém.

No entanto, quando se discute o problema da extrema-direita, vejo falarem apenas de falta de educação, de brutidão, de emigração e de refugiados, de individualismo, de egoísmo, de machismo e até de alterações climáticas. Dizem-me que o problema da subida da extrema-direita está na normalização destes discursos. Seguindo por aqui, bastaria mudar o discurso nos media, calar os arautos da extrema-direita, e tudo voltaria a ficar bem!!!

Só não vejo propostas para lidar com o forte desemprego que se sente, que vem baixando porque os estados têm criado programas e mais programas para manter as pessoas ocupadas. Que os empregos que vão surgindo, pagam metade daquilo que as pessoas recebiam antes. Que a segurança, ou manutenção no tempo, desses programas estatais e desses empregos recém-criados é absolutamente nula, e que até lhe dão um nome, "flexigurança". Que muitos pais e mães de famílias arranjaram segundos e terceiros empregos para continuar a manter o barco a flutuar. Que durante a crise os mais abastados continuaram a aumentar os seus rendimentos, enquanto famílias inteiras perdiam tudo. Que aqueles que provocaram a crise não só não foram castigados, como continuam a agir exatamente da mesma forma como antes. Que nada se alterou, e que todos os dias somos brindados com notícias da possibilidade de crise idêntica no futuro próximo.

Pedimos às pessoas para que acreditem, para que façam um esforço pelo planeta, salvem o clima, a única proteção real de todos, enquanto 1% do planeta arrecada tanto como os restantes 99%. Pedem àqueles que pouco têm e nada têm, que pensem nos que tudo têm e tudo querem. Pedem-lhes que mantenham o ecossistema vivo, para que nada mude, e tudo se mantenha como está.


Não, isto não é um problema de ideologias de extrema-direita, nem de discursos. Isto é um problema de grandes desequilíbrios, de fortes injustiças, de receio perfeitamente justificado pelo amanhã. Sim, existe sempre quem está muito pior, e os emigrantes e refugiados que fogem de cenários de guerra, vivem incomparavelmente pior que um americano numa rulote. Mas não podemos pedir às pessoas que vivam com base em abstrações, porque elas não vivem no pensamento e nas imagens que lhes chegam pelos media, elas vivem com base na realidade em que estão inseridas, em que são todos os dias confrontadas com a comparação entre a sua indigência e a opulência de quem simplesmente os ignora.

Podemos discursar sobre os problemas maiores que podem advir, que podem cair numa guerra ou ficar sem planeta, mas estaremos a usar medo sobre medo, as mesmas armas que os senhores feudais e monarcas usaram tanto tempo para se manter acima dos demais. O problema é que esse medo sobre medo, abstração completa, só funcionava pela força, não porque realmente nele os súbditos acreditassem. Enquanto isso, vai-se perdendo por completo a ligação com estas pessoas que ficam à deriva até que outros com elas se conectem, mesmo que com propostas utópicas, mas que por momentos lhes apresentem caminhos de saída, confiança num qualquer futuro.


Atualização de links 2.10.2018:
Here’s the science behind the Brexit vote and Trump’s rise, 17.09.2018
Saving liberal democracy from the extremes, 25.09.2018



março 31, 2018

"O Que Fazer?" por Tchernichevski

Tenho aqui feito muitas resenhas de livros e algumas têm conseguido atingir níveis de profundidade com que não contava à partida. A literatura é um meio rico para compreender o mundo e a realidade, ainda assim nem sempre os temas se aproximam dos nossos interesses o suficiente para justificar um investimento grande no estudo e interpretação da mesma. Neste caso senti alguma ambivalência: por um lado queria compreender melhor a Rússia, nomeadamente a sua evolução política; por outro, não esperava retirar daqui conhecimento particularmente novo, uma vez que o sistema político ali implantado teve tempo para demonstrar a sua ineficácia, não querendo debater algo que empiricamente já foi demonstrado como utópico. Contudo, não deixava de me intrigar o como, ou seja, a História conducente à Revolução Russa, à criação da primeira nação governada segundo um regime comunista. Embora talvez o mais importante para mim tenha sido mesmo o tentar compreender como é que um simples livro, a simples literatura, contribuiu para tal. O problema é que ao tentar compreender apenas isto, vi-me enredado num mar de leituras sem fim, já que para compreender o impacto deste livro, tive de aprender mais sobre a realidade em que ele surgiu. Assim, tentarei nas próximas linhas dar conta do que li, compreendi e interpretei.


Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.

O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.

Nikolai Tchernichevski (1828-1889)


A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.

Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.

Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.

Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.

How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner


Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.

E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.

O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
O romance de Tchernichévski é demasiado complicado, muito cheio de ideias para ser entendido e avaliado numa idade precoce... Mas depois da execução do meu irmão, sabendo que o romance de Tchernichévski era um de seus livros favoritos, comecei a lê-lo de outra forma e fiquei a refletir sobre ele não apenas alguns dias, mas semanas inteiras. Foi só então que entendi a sua profundidade. É uma coisa que pode fazer disparar as energias duma pessoa para toda a vida. Vladimir Lenine, in The Russian Revolutionary Novel, (1985, p.24) 
Vladimir Lenine (1870-1924)

As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.

Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.

Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.

Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.

Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.

Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro." in "O Que Fazer" (p.363)
Se a Rússia se transformaria numa ditadura pesada, gerida por um dos mais vis chefes-de-estado de sempre — Estaline — a abordagem acabaria por saltar fronteiras e entrar, como um cavalo de Tróia, no ocidente por meio de Ayn Rand, nascida em São Petersburgo. Um século depois, esta apresentava o seu objetivismo — o indivíduo como o fim em si mesmo —,  que sustentaria a criação da grande ideologia económica — o Neoliberalismo —profundamente promovida pelo seu discípulo, Alan Greenspan, o arquiteto da recente crise financeira mundial de 2008. É impressionante descobrir que Alan Greenspan, o potenciador do capitalismo selvagem internacional, levou para a sua cerimónia de juramento na sala oval apenas duas pessoas, a sua mãe e Ayn Rand. Não admira que se designasse o séquito de Rand como seita.

Ayn Rand (1905-1982)

Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.

Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.


Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.


Referências

Weiner, Adam, (2016), The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of, in Politico, December 11, 2016
Turta, E. (2014). Socialist paradise or tower of total surveillance? Metamorphoses of the Crystal Palace in Chernyshevsky and Dostoevsky (Doctoral dissertation, The University of North Carolina at Chapel Hill)
Saltmarshe, Ella, (2018), Using Story to Change Systems, in Stanford Social Innovation Review, Feb. 20, 2018
Chernyshevsky, NG, (1853) “The Aesthetic Relations of Art to Reality”, Tese de Licenciatura na Universidade de São Petersburgo
Freeborn, R. (1985). The Russian Revolutionary Novel: Turgenev to Pasternak. Cambridge University Press.
Andrew, J. (1988). Women in Russian Literature 1780-1863. Springer.
Murr, (2010), 'What Is To Be Done?' Nikolai Chernyshevsky, in The Lectern,
Kahneman, D., (2011), Thinking, Fast And Slow, Penguin Books
Nabokov, (1938) O Dom, Relógio d'Água
Lev Tolstói, (1867), Guerra e Paz, Ed. Presença
Lev Tolstói, (1867), Anna Karenina, Ed. Presença
Nikolai Gógol (1842), Almas Mortas, Circulo de Leitores
Ivan Turgueniev (1862), Pais e Filhos, Relógio d'Água
Boris Pasternak (1957), Doutor Jivago, Público
Chernyshevsky, NG, (1863). What is to be Done?. Cornell University Press. (1989)
Chernyshevsky, NG, (1860). “The Anthropological Principle in Philosophy”, Sovrernennik, no. 4; in: Selected Philosophical Essays (pgs. 49-135), Moscow, 1953.
Lopatin, GA, (1922), Avtobiografia, Petrograd (1845-1918)
Rand, A. (1957). Atlas shrugged. Penguin.

março 18, 2017

“The Undoing Project”, 12/2016

O novo livro de Michael Lewis, autor do enorme sucesso “Moneyball” (2003) passado a filme homónimo em 2011 com Brad Pitt, é uma montanha russa de emoções. Usando como tema de fundo a amizade entre dois cientistas que revolucionaram a psicologia, Lewis leva-nos a conhecer o duo, dando conta de toda a sua genialidade sem descurar todas as fragilidades humanas. As páginas viram-se por si porque Lewis conta como poucos sabem contar uma boa história. É verdade que embeleza, que temos de ir colocando algum sal nos heroísmos, sonhos e facilidades que tão a jeito se colocam para nos lançar nos turbilhões emocionais, mas isso faz parte da arte do storytelling. Lewis não é um historiador, não está à procura da certeza absoluta, nem da total evidência daquilo que diz, Lewis é um contador de histórias, e usa toda a sua arte para nos inebriar e interessar pelo mundo da investigação científica.

Amos Tverski e Daniel Kahneman, nos anos 1970

Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.


Apesar de acreditar no livro como um excelente relato de proezas científicas, preenchido por uma boa componente humana que lhe confere grande empatia, recomendaria a qualquer leitor, se quiser extrair o máximo desta leitura, a ler primeiro “Pensar, Depressa e Devagar” (2011). Este é o livro que Daniel Kahneman e Amos Tverski tinham decidido escrever juntos, mas só acabaria por acontecer já depois da morte de Tverski e depois do Nobel. É um livro de divulgação científica, que abre o conhecimento complexo à leitura de leigos. E é um livro que não tenho parado de recomendar e recomendar a todos, porque é um livro que muda a forma como vemos o mundo, desde logo como nos vemos a nós mesmos. Daí que compreendendo melhor o alcance do trabalho de Kahneman e Tverski e admirando-o, aumenta consideravelmente o prazer desta leitura. Em “The Undoing Project” Lewis dá conta das principais teorias desenvolvidas e sua relevância, mas é no livro de Kahneman que podem encontrar uma porta segura para se iniciarem.

De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.

Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.

setembro 11, 2016

"Grandes Esperanças" (1861)

O que mais impressiona é a humanidade dos personagens, apesar de embrulhado por um aparentemente banal enredo de aventuras e amores impossíveis, à medida que vamos entrando no livro vamos percebendo como todo o detalhe tem fundamento, tudo se desenha em várias camadas de sentido, e os personagens que pareciam apenas motivar a progressão da história são bem mais do que isso, são veículos ideológicos que Dickens usa para desconstruir o mundo e dar a compreender a realidade.


Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que não há “happy ending” para dar conta da presença de marca autoral, da vontade de expressar um sentir sobre a áspera realidade. Dickens usa a sua arte de contar histórias para traçar uma análise crítica de vários temas, da família à amizade, da orfandade ao amor, acentuando fortemente as emoções de culpa e vergonha, sem nunca explorar o sentimentalismo junto do leitor.  Por outro lado, todo o cerne do texto está permeado pela questão financeira, base do contraste de classes sociais, dando amplo espaço a Dickens para digladiar ideologias e tecer a crítica ao modelo capitalista que progredia com a Revolução Industrial nesse tempo.

Interessante como seguindo esta base relacional tripartida — família, amor e dinheiro — Dickens constrói o fundamento do título, "Grandes Esperanças", consubstanciando-o nas três vertentes, não deixando de garantir o sentido particular em cada uma dessas dimensões mas forçando-as numa confluência interpretativa no sentido de elevar as "esperanças" a motor da volição humana, sustentando assim a sua ideia fundamental da defesa do progressismo por oposição ao conservadorismo.

A decadência da estagnação, uma das metáforas mais elaboradas do livro. 

Para primeiro livro de Dickens, fiquei bem impressionado com a sua escrita elaborada e poética, mas ao mesmo tempo com a enorme facilidade com que simplifica o complexo. Os personagens surgem como objetos narrativos simples, muito empáticos, verdadeiros livros abertos, mas ao mesmo dotados de enormes complexidades motivadas pela constante contradição humana, que os leitores reconhecem em sede do seu íntimo e raramente tornado público.
“De fato, o frescor de sua beleza se havia desvanecido, mas uma indescritível majestade e um indescritível encantamento permaneciam. Esses seus atributos eu já vira antes; o que eu jamais vira era aquela luz suavizada e melancólica nos olhos outrora orgulhosos; o que jamais sentira antes era o toque simpático da mão outrora insensível.”
Assim, apesar de se poder ler como jornada de amadurecimento e relato de aventuras, não se oferece a tal com suficiente atratividade, já que Dickens não explora o fantasioso, mantendo as peripécias algo contidas, como que delimitadas pela sua sede de realismo. A leitura obriga a alguma predisposição à reflexividade, correndo o risco de se passar ao lado do essencial e que garantiu ao texto o lugar de clássico incontornável.

Edição: Penguin/Companhia de Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 2012

abril 10, 2016

Uma fronteira de desigualdade erguida aos Refugiados

Chocado, é como me sinto depois de ver o documentário animação “Do outro lado da linha” de Lukas Schrank. Descobrir que tal “coisa” existe no nosso planeta em pleno século XXI, criada e mantida por um país pertencente ao G20, que se diz democrata e defensor da liberdade, foi uma lambada. Por outro lado, se isto é possível, imagine-se tudo aquilo que se estará a passar por essa Europa fora na receção aos refugiados sírios, aliás pense-se no recente acordo Europa-Turquia, e pouco se diferenciará do que aqui podemos ver.





As vozes “Do outro lado da linha” vêm da Ilha de Manus, um ponto remoto no Pacífico Sul, para onde a Austrália atira os refugiados que interceta no mar, impedindo-os de chegar ao país. A estes nenhuma alternativa é dada, seja voltar ao seu país de origem, entrar na Austrália, ou mesmo entrar em Papua Nova Guiné. Estão ali, tal como estiveram os judeus em campos europeus, sem propósito, sem esperança, à espera da morte. “Do outro lado da linha” relata a partir do interior do Centro de Detenção Manus Island, em discurso direto pelas vozes de dois homens que aí se encontram detidos.

Mas se me sinto chocado, surpreso, é talvez por pura ingenuidade. Que podemos esperar de governos que produzem massivamente armas para vender a outros países, promovendo assim abertamente as guerras intermináveis? Que devemos esperar de governos que promovem os offshores e países fiscais, nada fazendo ao longo de décadas e décadas de destruição das suas próprias sociedades?

Basta olhar o exemplo de Portugal e ver quem paga IRS por cá, para se poder compreender o mundo em que vivemos. Bernie Sanders dizia numa entrevista recente, “we are all in this together”, mas parece que são muito poucos os que assim pensam. Podemos continuar a assobiar para o lado, dizer que não é fruto do neoliberalismo que é apenas o mundo em que sempre vivemos, mas quando resolvermos acordar talvez seja já demasiado tarde...

"Do Outro Lado da Linha" (2015) de Lukas Schrank

Quanto ao trabalho de Schrank, é absolutamente delicioso, tendo-me feito recordar bastante o não menos brilhante “Waltz with Bashir” (2008) de Ari Folman. O trabalho de mescla entre 2d e 3d contribui para a enfatização dramática do filme, conseguindo dar corpo a dois relatos simples, que se erguem e nos transportam para toda uma outra dimensão. A escolha da animação e tom gráfico, diz-nos Schrank, provém da sua reação ao facto da Austrália ter produzido uma banda desenhada com esta abordagem gráfica e distribuído a mesma no Afeganistão para dissuadir os potenciais requerentes de asilo!

janeiro 09, 2016

“Debt: The First 5,000 Years”

Brilhante, incisivo e ao mesmo tempo angustiante. David Graeber é um antropólogo especializado em economia, o que lhe dá uma visão bastante distinta do comum economista, já que coloca lado a lado o humano e as finanças, estudando em profundidade as suas implicações e dependências. O facto de ter sido professor em Yale e agora na London School of Economics, apenas possível pela qualidade do seu trabalho, garante sustentabilidade ao que afirma ao longo de todo este livro, mesmo quando se afirma como anarquista. Graeber foi um dos principais mentores do movimento Occupy Wall Street, nomeadamente da sua premissa de partida, "We are the 99 percent”.


Debt: The First 5,000 Years” é um trabalho de fundo sobre os papéis do dinheiro e poder na organização das sociedades humanas que explica o modo como toda a nossa civilização se sustenta em processos de dívida. Graeber dá conta dos primeiros registos escritos que dão conta dessas mesmas dívidas, algo que não me surpreendeu já que essa é uma percepção que fui construindo com a visita a vários museus arqueológicos, nos quais vi alguns dos primeiros registos em pequenas pedras, tendo percebido que na generalidade se tratavam de inventários, heranças ou sentenças judiciais de pagamentos de dívidas.

São vários os mitos desmontados por Graeber ao longo do livro, um dos mais gritantes, o da economia de troca, algo que existe no nosso imaginário como uma cultura existente anterior ao dinheiro, e que por isso mesmo vimos florescer nos anos recentes como tentativa de resposta aos efeitos da austeridade, mas que aqui ao longo de muitas páginas, dezenas de exemplos, e muita história vamos perceber como nunca tendo passado de mero desejo do nosso imaginário. Seria insustentável desenvolver a civilização até ao ponto de complexidade que chegámos, baseado numa economia desse género, já que a possibilidade de trocas entre indivíduos seria imensamente mais lenta e reduzida na ausência de um qualquer registo (dinheiro) que garante a troca entre todos e em qualquer momento.

Graeber começa o primeiro capítulo de forma brilhante tocando o âmago da discussão do momento, a crise das dívidas soberanas, explicando como se chegou a este ponto, como evoluiu a sociedade por meio de uma obsessão quantitativa suportada por um moralismo judicial, no qual o FMI é o píncaro global, o grande cobrador de dívidas. Nos vários capítulos que se sucedem vários momentos da história da evolução da civilização são apontados como basilares, nomeadamente processos de exploração, desde os Romanos à expansão colonial europeia, ao tráfico de escravos, tráfico sexual, etc.. Tudo processos de poder e domínio por via da dívida permanente entre partes, que serve de justificativa moral na exploração do mais fraco pelo mais forte.
"Why debt? What makes the concept so strangely powerful? Consumer debt is the life-blood of our economy. All modern nation-states are built on deficit spending. Debt has come to be the central issue of international politics. But nobody seems to know exactly what it is, or how to think about it.
The very fact that we don’t know what debt is, the very flexibility of the concept, is the basis of its power. If history shows anything, it is that there’s no better way to justify relations founded on violence, to make such relations seem moral, than by reframing them in the language of debt — above all, because it immediately makes it seem like it’s the victim who’s doing something wrong." p.5-6
“It is the secret scandal of capitalism that at no point has it been or­ganized primarily around free labor. The conquest of the Americas began with mass enslavement, then gradually settled into various forms of debt peonage, African slavery, and "indentured service" that is, the use of contract labor, workers who had received cash in advance and were thus bound for five-, seven-, or ten-year terms to pay it back (.. ) This is a scandal (..) because it plays havoc with our most cherished assumptions about what capitalism really is­ particularly that, in its basic nature, capitalism has something to do with freedom.” p.350 
Concordando com muito, ou toda a forma como Graeber desconstrói e critica o desenvolvimento e estado da nossa civilização, o encanto deste seu livro esvai-se quando chega o momento de propor alternativas. Mas seria expectável que um homem só, no tempo de uma vida pudesse chegar a propor tal alternativa? Ou mesmo recuando a Marx e ligando ao mais recente trabalho de Piketty? O que acaba por ser imensamente angustiante é perceber que se estes que tiveram a capacidade de destrinçar a malha que nos encurrala, tal prisão invisível, não conseguiram ver como, que podemos então nós esperar? Existirá mesmo alternativa?

Acredito que sim, mas só num nível de consciência e autocontrolo muito superior ao que temos atualmente enquanto sociedade. O grande problema é que se somos profundamente gregários, cooperativos e colaborativos, não somos menos profundamente dependentes uns dos outros para sobreviver, daí que a dívida seja a base da civilização, porque ela é no fundo a base da classe mamífera, que ao contrário da dos répteis, não consegue sobreviver individualmente, apenas em grupo.

maio 16, 2015

Subempregados

"Underemployed" (2015) é uma banda desenhada autobiográfica de Jackie Roche que aborda o impacto da Grande Recessão sobre os recém-licenciados, apontando a quase ausência de emprego qualificado, incapaz de dar conta de vidas cheias de sonho e energia.



"Underemployed" (2015) de Jackie Roche

A Grande Recessão nasceu do rebentar da crise imobiliária nos EUA, em 2007/2008, tendo um impacto muito para além da geografia dos EUA, atingindo praticamente todo o globo, a tempos diferentes. Juntamente com esta, o avanço tecnológico passou a funcionar como tábua de salvação na redução de custos, para empresas e instituições, gerando ondas sucessivas de diminuição de emprego desde então. Em breve estaremos a fazer 10 anos pós-início da crise, e esta não deu ainda quaisquer sinais de recuperação. Porque se até aqui quem detinha muito dinheiro ia investindo facilmente na bolsa, em bancos, em empresas e em países, agora com toda a economia em risco contínuo de colapso, em que as redes de dinheiro público foram também já esgotadas, quem tem muito dinheiro prefere investir na compra de "arte".

Daqui resulta o filme que podemos experienciar ao longa desta magnífica banda-desenhada de Roche, que nos dá conta de um casal com licenciaturas e mestrados, em boas universidades, e mesmo assim não vai além dos trabalhos temporários, sazonais, part-time, e por fim freelance. Isto corrói-me por dentro, porque não se está a passar apenas nos EUA, vejo isto em Portugal, para todo o lado que me viro. Vejo jovens altamente qualificados, com tanto para dar à sociedade, ao país, mas totalmente atados de pés e mãos, sobrando apenas a emigração, como se lá fora tudo se resolvesse por simples passe de mágica!

Esta é uma banda-desenha que bate forte porque não fala de algo no passado, de algo que aconteceu à sociedade, com alguém que teve a pouca sorte, mas que relata o presente, o aqui e agora, duro como a vida que precisa de continuar a ser vivida, dia após dia.

Ler e ver a obra completa.

fevereiro 01, 2015

"Creativity Inc." (2014)

É um livro impressionantemente honesto e extremamente relevante, uma leitura inebriante da primeira à última página. As principais razões para tal: 1) é um dos livros mais importantes já escritos sobre gestão de criatividade, tendo-se já tornado um clássico obrigatório; 2) é um livro construído com base numa premissa fruto de validação científica; 3) é um livro sobre tecnologias CGI e Animação, sobre a Pixar e a Disney; 4) é um livro sobre a realização de um sonho, fruto de grande ambição, visão e muita humildade. Para que se compreenda a relevância deste livro é preciso compreender quem é o autor, e o que fez. O livro foi escrito por Ed Catmull, fundador da Pixar e seu actual presidente, a única empresa na história do Cinema a ter criado mais de uma dezena de filmes (14), sem nunca ter conhecido o falhanço, com todos os filmes a atingirem o 1º lugar do Box Office, metade conseguiu o Oscar de Melhor Animação (7). Não existe nenhuma outra empresa no ramo do cinema, dentro ou fora da animação, que se compare com a Pixar, e é por isso que se torna tão importante compreender o que constitui a estrutura desta empresa.


Catmull começa o livro discutindo a origem da sua paixão, nos anos 1950 quando via os desenhos animados da Disney na televisão percebeu que era aquilo que queria fazer na sua vida. Sinto aqui alguma sintonia, mas no meu caso não foi a Disney, foi a Pixar. Tal como “Snow White” tinha sido a primeira longa de animação em 1937, “Toy Story” tornou-se na primeira longa de animação 3d em 1995. Ambas estas duas conquistas estão ao nível do primeiro passo da humanidade na Lua, por tudo aquilo que exigiram do ser humano em duas frentes: arte e tecnologia.

Para termos “Toy Story” foi preciso juntar três pessoas - Ed Catmull, John Lasseter e Steve Jobs. Como Catmull frisa várias vezes ao longo do livro, não basta talento, muito esforço e dedicação, muito daquilo que fazemos nas nossas vidas é fruto de vários acasos. Neste caso, se Jobs não tivesse sido despedido da Apple, ou se Lasseter não tivesse sido despedido da Disney, nunca teria existido a Pixar, mas estas são apenas duas das imensas bifurcações que possibilitaram que algo que começou como um sonho na cabeça de Catmull se tivesse tornado em algo real.

Uma das dimensões que mais me interessou neste livro foi perceber de que era feito Catmull, e como é que alguém com formação tão tecnológica foi capaz de desenvolver tanta sensibilidade pelos aspectos criativos. A minha conclusão depois da leitura do livro, e é algo que o próprio refere, embora não o afirme, é que o seu modelo de gestão de criatividade é baseado no modelo de peer-reviewing académico. Catmull antes de ser empresário, licenciou-se e doutorou-se em Ciências da Computação na Universidade do Utah, onde teve mais uma vez a sorte de trabalhar num dos momentos, e com uma das equipas, mais importantes da Computação Gráfica e Interacção Humano-Computador, na qual se encontravam Ivan Sutherland e Alan Kay. A sua tese de doutoramento (“A subdivision algorithm for computer display of curved surfaces”, 1974) daria origem a um algoritmo de render. Aliás ainda hoje, para mim, Catmull soa a render porque foi dos primeiros que me recordo de usar na modelação e rendering 3d.

A experiência académica de Catmull revelou-se crucial no modo como este iria passar a lidar com o conhecimento e com os seus colegas de trabalho. O conhecimento é fruto da partilha, da humildade, do reconhecimento dos demais, de ouvir e construir sempre com os outros, sempre pela via da experimentação e validação junto dos pares. O mundo académico é um ambiente descentralizado, em que cada investigador tem grande autonomia, o que tem o seu lado bom, mas obriga a que este tenha de ser proativo, capaz de se orientar, de encontrar o seu caminho, ainda que o seu trabalho só possa evoluir com o reconhecimento dos seus pares. Foi exactamente este tipo de cultura que Catmull implementou na Pixar, é este o fundamento do "BrainTrust", a equipa, rotativa, que na Pixar analisa e discute regularmente as produções em curso (mais detalhe nos pontos 5 e 6 da análise de "Imagine").

Catmull professa assim uma gestão baseada na frontalidade e abertura, na descentralização e desierarquização, na autonomia e responsabilização de cada ser individual, tudo fundamentado em dois elementos centrais, a honestidade e a humildade. Se dúvidas houvesse quanto a estes dois elementos, basta pensar, quem seria o presidente de duas multinacionais envolvidas em milhões, que faria um livro abrindo e revelando todos os detalhes da sua forma de trabalho, dos seus sucessos, mas também dos seus falhanços? Mas este livro não é apenas uma confissão, ou diário, é muito mais do que isso e Catmull vai frisá-lo a meio do livro. A razão principal porque escreveu este livro foi porque teve hipótese de validar o método de gestão criado na Pixar. Em 2006, depois de se tornar presidente da Disney, implementou aí o mesmo método de gestão de cultura criativa, seguindo uma abordagem experimental científica, procurando evitar contaminar variáveis, e o método emergiu, com nuances mas com os resultados que hoje conhecemos (veja-se nomeadamente os filmes "Wreck-It Ralph" (2012) e "Big Hero 6" (2014)). A Disney mudou radicalmente o seu modelo de gestão ao bom estilo Fordiano, e tem hoje o seu próprio BrainTrust, batizado "StoryTrust".

Diga-se que o método não emerge apenas de Catmull, ele é fruto de um projecto a três cabeças - Catmull, Lasseter e Jobs. Catmull o especialista em computação gráfica, Lasseter o especialista em storytelling e Jobs o especialista em inovação pela arte e criatividade.  Foi a obsessão deste trio por cada um dos seus domínios que permitiu o surgimento de uma Pixar. À gestão criativa em modo de peer-reviewing de Catmull, juntou-se o brilhantismo do storytelling em animação de Lasseter (vejam ou revejam “Luxo Jr” (1986), já perdi a conta ao número de vezes que mostrei este filme em aulas), a estes juntou-se a obsessão de Jobs pela fusão entre arte e tecnologia, e pela qualidade, sendo capaz de preferir perder milhões cancelando um produto ou filme, a ter um fracasso comercial.

Da esq. para a dir.: Ed Catmull, Steve Jobs e John Lasseter

Existe muito mais que gostaria de dizer sobre este livro, sobre a Pixar, sobre os “três mosqueteiros”, mas isso também estragaria o interesse da leitura para quem ainda não leu. É verdade que me deixei inebriar com o livro, dado o meu amor pela Disney e Pixar e claro todo o reconhecimento que tenho pelo legado tecnológico de várias pessoas que são aqui centrais, o Steve Jobs e a Apple, mas também Ivan Sutherland e Alan Kay, e claro Catmull, que além de se ter tornado num gestor de topo, é antes de tudo um cientista da computação. E talvez mais importante ainda, nada disto existiria sem o fruto principal, o legado artístico de Walt Disney, Ollie Johnston e Frank Thomas, e do que ficará de criadores como John Lasseter, Andrew Stanton e Brad Bird.

Deixo aqui no final apenas algumas indicações do modelo de Catmull, mas são apenas isso, indicações. Leiam o livro, absorvam-no e tentem aplicar os seus ideais pelas empresas por onde passarem.
  1. As pessoas e os seus talentos, são mais importantes que as ideias.
  2. Contratem pessoas pelo seu potencial, não pelo seu passado.
  3. Contratem pessoas que sejam mais inteligentes que vocês.
  4. Todos devem sentir-se livres para contribuir com ideias. Todos.
  5. Eliminem o medo. 
  6. Não escondam os problemas, é o primeiro passo para o falhanço
  7. As primeiras conclusões, estão quase sempre erradas.
Para que estes princípios possam ser aplicados, é necessário seguir algumas lógicas de acção no seio da empresa:
  1. Honestidade e Candura. Centrais, sem honestidade a candura não emerge, e sem ela a crítica construtiva não surge.
  2. Medo e Falhanço. Preciso falhar para avançar, sendo que o medo de falhar é central, é preciso atacá-lo desde a raíz.
  3. A Mudança. Um ponto, que julgo muito relevante nestes tempos conturbados de crise, sobre a mudança, a sua necessidade, e formas de o fazer sem criar demasiados atritos, desconfiança e medo.
:: Why change?
“Many of the rules that people find onerous and bureaucratic were put in place to deal with real abuses, problems, or inconsistencies or as a way of managing complex environments. But while each rule may have been instituted for good reason, after a while a thicket of rules develops that may not make sense in the aggregate. The danger is that your company becomes overwhelmed by well-intended rules that only accomplish one thing: draining the creative impulse.”

:: How to approach change?

“Pete has a few methods he uses to help manage people through the fears brought on by pre-production chaos. “Sometimes in meetings, I sense people seizing up, not wanting to even talk about changes,” he says. “So I try to trick them. I’ll say, ‘This would be a big change if we were really going to do it, but just as a thought exercise, what if …’ Or, ‘I’m not actually suggesting this, but go with me for a minute …’ If people anticipate the production pressures, they’ll close the door to new ideas—so you have to pretend you’re not actually going to do anything, we’re just talking, just playing around. Then if you hit upon some new idea that clearly works, people are excited about it and are happier to act on the change.”
Por fim, fecho com o aspecto central de toda esta leitura, uma reiteração que vai surgindo ao longo do livro por Catmull:
To reiterate, it is the focus on people—their work habits, their talents, their values—that is absolutely central to any creative venture.


Ler também
O primeiro filme CGI, criado por Catmull há 40 anos
Como funciona a Criatividade, baseado no modelo da Pixar,
O storytelling por Andrew Stanton
O legado de Steve Jobs

Nota quantitativa no Goodreads.

Actualização 2.2.2015:
Descobri que o livro foi entretanto traduzido para português e lançado por estes dias, tendo mantido a mesma capa, mas com o título simplificado, "Criatividade" apenas.

janeiro 14, 2015

O alto custo do barato

Adam Westbrook publicou hoje mais um dos seus interessantíssimos ensaios audiovisuais no Delve, no qual nos fala de “Bananas, Sardines and Shark” (2015), ou antes sobre os impactos dos produtos baratos. Em apenas 7 minutos Westbrook dá conta das teias económicas que conseguiram mover meio mundo, precipitando a morte de milhares de pessoas, para manter o preço das bananas baixo. O foco do documento não é, de todo, as bananas mas a globalização e os seus atropelos aos direitos humanos, com uma mensagem final bastante forte que nos deve levar a reflectir sobre o consumo que fazemos todos os dias.



Mais uma vez Westbrook questiona-me sobre o valor do audiovisual para transmitir ideias, a sua capacidade para sintetizar conceitos, torná-los facilmente digeríveis e assim fazer com que cheguem a um muito maior número de pessoas. Claro que para tornar isto num artefacto envolvente, apenas nos é dado a saber um mínimo de elementos chave capazes de criar um raciocínio causal. E é nisso que Westbrook é muito bom, na escolha dos elementos chave, na construção da linha narrativa, e no processo de storytelling dando a informação apenas nos momentos correctos, mantendo-nos agarrados, surpreendendo-nos, e assim conseguindo fazer passar a sua mensagem.

Se quisermos perceber realmente o que se passou na Guatemala, ou como é que a CIA chegou aqui, teremos de aprofundar o assunto, e aí claramente que o meio do livro tem um alcance muito mais amplo. Aliás, Westbrook dá conta dos livros (http://delve.tv/bananas-sardines-sharks-video-essay-consumerism/) que usou para produzir este filme, tendo um deles servido para intitular o seu ensaio, “The Shark and the Sardines” de Juan Jose Arevalo.

"Bananas, Sardines and Sharks" (2015) de Adam Westbrook
"Before our favourite smartphones, tablets, taxi apps and online stores there was the humble banana. This remarkable true story of a Cold War coup warns us that no matter how cheap and convenient our stuff is, there is always a price to pay."

março 19, 2014

Economias dos bens virtuais

Novo documentário da série OffBook, "The Rise of Videogame Economies" (2014), podemos ver várias discussões em redor das novas economias geradas pelos videojogos online. Escassez e desafio a base de qualquer jogo, mas também a base do que nos motiva enquanto seres humanos. Por isso é tão complicado desenvolver regulações que optimizem a vida em sociedade, porque uma sociedade perfeitamente regulada, não responderia às ansiedades cognitivas dos seres humanos, como muito bem acaba sendo explicado em “The Matrix” (1999). Somos seres dominados por um conjunto de elementos que compõem a motivação de cada um de nós, que por sua vez é fortemente dominada por muita irracionalidade (cf. Behavioral Economics).



Não existe nada lógico no facto de alguém comprar uma espada virtual num videojogo por  centenas ou milhares de euros, baseado na sua escassez artificial, é completamente irracional. Podemos e devemos pagar o trabalho do criador do artefacto original, mas adquirir por um preço inflacionado pelo facto de poucas pessoas deterem o mesmo item que pode facilmente ser copiado é desprovido de sentido. Contudo milhões fazem-no todos os dias, porque aquilo que dita às suas motivações não é a lógica, mas antes um conjunto de cálculos mentais sobre um conjunto de variáveis sociais enviesadas que contribuem para dar ao indivíduo a crença de que é lógico e faz sentido aquela compra.

Por outro lado, é tudo isto que nos faz mover todos os dias, as lógicas e as ilógicas das acções e interacções que temos com os outros, isso contribui para nos motivar e manter interessados no mundo que nos rodeia. É complexo mas desafiante, e sem desafio não existiria vida.

The Rise of Videogame Economies (2014)

maio 22, 2013

Pensar, Depressa e Devagar

Thinking, Fast and Slow (2011) devia ser o livro utilizado nas escolas para fazer a introdução à Psicologia, com isto quero dizer que o livro é de tal forma fundamental na compreensão da cognição humana que se torna obrigatório. O livro vai ao fundo daquilo que somos, e porque vemos o mundo desta forma. O livro não pode transformar-nos, mas pode deixar-nos muito mais conscientes daquilo que nos comanda. O livro é de tal forma fundamental que vários livros, bestsellers sobre o comportamento humano, se têm baseado nos estudos aqui apresentados - Fooled by Randomness: The Hidden Role of Chance in Life and in the Markets (2001), "Freakonomics: A Rogue Economist Explores the Hidden Side of Everything" (2005), "Predictably Irrational: The Hidden Forces That Shape Our Decisions" (2008), "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules Our Lives" (2009).


Daniel Kahneman ganhou o prémio nobel da Economia em 2002! É isso, um psicólogo ganhou o nobel da economia. Durante mais de 30 anos Kahneman, e o seu colega Amos Tversky que morreu em 1996 e que teria recebido o Nobel conjunto caso estivesse vivo em 2002, trabalharam questões fundamentais na chamada área da economia comportamental ("behavioral economics"). A sua maior preocupação foi procurar compreender o que contribui para o enviesamento das decisões que as pessoas tomam, aquilo que alguns catalogaram de "psicologia da estupidez". No fundo Kahneman e Tversky passaram décadas a desmontar toda a nossa máquina cognitiva e exemplificam como muito daquilo que utilizamos para nos garantir a sobrevivência num mundo inconstante e altamente variável, nos conduz também à produção de erros, por vezes muito graves.

PARTE I - Dois Sistemas
À medida que ia lendo a primeira parte do livro, "Two Systems", parecia que estava ler uma espécie de atlas de toda a ciência cognitiva com que tenho trabalhado na última década, incluindo os avanços e contribuições da neurociência. Uma síntese poderosa e belissimamente formulada sobre o funcionamento da nossa cognição. A conceptualização é tão boa que consegue passar por cima de toda a problemática que vimos discutindo desde Descartes a propósito da Razão e da Emoção. Kahneman, não perde tempo com essa divisão, aceita os avanços da neurociência, e coloca tudo num único plano, não dando espaço a bom e mau, preocupando-se, apenas e só, com a variação do tempo de resposta. Kahneman define a nossa cognição como simplesmente alicerçada num sistema a duas velocidades, o Sistema 1 e o Sistema 2. A inteligência desta conceptualização assenta no modo como vai construir todo o livro, assumindo ambos os sistemas como personagens de uma mesma história.
"System 1 operates automatically and quickly, with little or no effort and no sense of voluntary control."
"System 2 allocates attention to the effortful mental activities that demand it, including complex computations. The operations of System 2 are often associated with the subjective experience of agency, choice, and concentration."
Kahneman
O que acontece então nas nossas tomadas de decisão é que existe uma constante tentativa do  Sistema 1 de responder a tudo, porque é muito mais rápido, simplesmente intui. Este apenas pára quando o que é pedido se torna complexo demais, e é obrigado a recorrer ao Sistema 2. Ou seja, o Sistema 2 é digamos mais "preguiçoso", só entra em ação quando o Sistema 1 não consegue dar conta do recado, para realizar processamento mais complexo. As ilustrações criadas pelo New York Times e pelo Financial Times com a Lebre e a Tartaruga dizem tudo sobre os Sistemas 1 e 2 (imagens abaixo). Deste modo o que acontece é que muitas das decisões que tomamos são baseadas em análises intuitivas daquilo que nos é apresentado. E esta intuição consegue funcionar muitíssimo bem a maior parte das vezes. Quando atravessamos a rua, conseguimos rapidamente decidir qual é o momento certo para atravessar, e se devemos correr ou podemos avançar calmamente. Quando se aproxima alguém de nós, o Sistema 1 consegue rapidamente identificar a cara da pessoa e responder quem é, e como devemos reagir. O que temos é então um sistema de cognição, Sistema 1, que é muito rápido e automático, ou seja não temos de o ativar conscientemente, ele reage com toda a informação emocional e estereotipada que temos.

Os Sistemas 1 e 2. Ilustração de David Plunkert (NYT)

Por outro lado o Sistema 2 é acionado de modo consciente para realizar uma decisão, para ponderar os prós e contras, exige esforço da nossa parte, realiza cálculos de hipóteses e age segundo lógicas aprendidas, não se baseia na intuição. O sistema 2 entra em acção com esforço, quando somos obrigados a realizar decisões complexas que exigem ponderação complicada, como cálculo matemático mental. As nossas pupilas são o reflexo exterior do Sistema 2. As pupilas dilatam e encolhem consoante o cérebro está mais profundamente activo, ou seja são um claro indicador da quantidade electricidade activa no nosso cérebro.
"System 2 is the only one that can follow rules, compare objects on several attributes, and make deliberate choices between options. The automatic System 1 does not have these capabilities. System 1 detects simple relations (“they are all alike,” “the son is much taller than the father”) and excels at integrating information about one thing, but it does not deal with multiple distinct topics at once." Kahneman
Depois de apresentados os dois sistemas, Kahneman vai passar toda a primeira parte do livro a detalhar situações em que o Sistema 1 se sobrepõe ao Sistema 2 e nos leva a cometer decisões erradas: esforço e atenção; controlador preguiçoso; máquina associativa; facilitador cognitivo; normas, surpresas e causas. Algumas destas situações são verdadeiramente preocupantes, e deveriam ser mais discutidas entre nós, assumidas como uma realidade, para que pudéssemos compreender melhor como funcionamos no nosso dia-a-dia, e como tomamos decisões. Resumo aqui apenas algumas destas:

Esforço e Atenção (irritação, açúcar e juízes)
O sistema 2 pode ocupar quase todo o nosso pensamento, mas nós não podemos deixar de continuar a monitorar a nossa biologia e o mundo que nos rodeia. Neste sentido quando o Sistema 2 está demasiado ocupado, é o Sistema 1 quem decide, e isso pode conduzir a problemas. Por outro lado o Sistema 2 quando extensivamente utilizado provoca um esgotamento dos recursos no cérebro, o que leva a cedência de decisões para o Sistema 1. Estudos realizados mostram que quando estamos sob esforço cognitivo cedemos muito mais facilmente à tentação.
"Imagine that you are asked to retain a list of seven digits for a minute or two. You are told that remembering the digits is your top priority. While your attention is focused on the digits, you are offered a choice between two desserts: a sinful chocolate cake and a virtuous fruit salad. The evidence suggests that you would be more likely to select the tempting chocolate cake when your mind is loaded with digits… People who are cognitively busy are also more likely to make selfish choices, use sexist language, and make superficial judgments in social situations." Kahneman
No caso do chocolate faz todo o sentido, porque outros estudos demonstraram que para poder conseguir manter performance mental, a ingestão de glucose era fundamental para manter o mesmo nível de açúcar no cérebro e assim conseguir manter o Sistema 2 ativo. Um estudo apresentado por Kahneman é deveras preocupante, porque diz respeito à justiça e aos homens que tomam decisões nos tribunais todos os dias. No estudo feito com juízes que decidem sobre liberdade condicional, foi identificado que mais de 65% das decisões afirmativas de liberdade condicional eram tomadas logo após as refeições, e que à medida que o dia ia avançando as negativas iam aumentando. O cansaço vai-se apoderando do juiz, e este vai recorrendo cada vez mais à intuição para tomar decisões.

Máquina Associativa, (dinheiro e o individualismo)
O nosso cérebro tem uma enorme capacidade para despoletar associações de ideias, várias em simultâneo. Como tal quando nos dizem Dia, imediatamente pensamos em Noite, se dizem Comer imediatamente pensamos em comer algo. Kahneman refere-se a este poder associativo, como um efeito de priming, ou seja um efeito de impressão de ideias no nosso cérebro, e diz que este efeito não acontece apenas com conceitos e palavras, mas pode acontecer com acções e emoções. Num estudo pediram a um grupo de jovens para andar durante um espaço de tempo a um ritmo inferior duas vezes ao seu normal, no fim da experiência as palavras que mais lhes vinham à ideia eram: "esquecimento, velho e solitário".  Noutro estudo pessoas são levadas a acreditar que estão a testar auscultadores, e é-lhes pedido para abanarem a cabeça na vertical, para cima e para baixo, indicando o gesto "Sim". A outras é-lhes pedido que abanem para os lados, na horizontal, indicando o gesto "Não". Os primeiros começam a concordar com aquilo que estão a ouvir nos auscultadores, enquanto que os segundos acabam por maioritariamente discordar do que ouvem. Isto para além de demonstração dos efeitos de priming, é mais uma prova da importância e do impacto da nossa fisiologia e biologia sobre o nosso pensamento, sobre o nosso discernimento do mundo.
“The world makes much less sense than you think. The coherence comes mostly from the way your mind works.” Kahneman
Num experimento feito por Kathleen Vohs, ela demonstrou que quando imprimimos a ideia de dinheiro (por palavras ou imagens) na cabeça de estudantes, estes mudam de atitude. Passam a investir o dobro do tempo a tentar resolver um problema, e a ter menos vontade de investir tempo a ajudar os colegas na resolução de problemas. Quando se sentam ao pé dos outros estudantes, têm uma tendência para se sentar mais afastados uns dos outros que os estudantes que não receberam qualquer priming de dinheiro. Assim como têm uma maior preferência por estar sozinhos. Isto é tudo aquilo que as correntes do Individualismo defendem, e forma toda a base do objectivismo defendido por Ayn Rand. Para fugir ao extremo oposto do colectivismo russo, Rand extremou a sua ideia de sociedade, e acabou por desenhar uma ideia totalmente assente num viés cognitivo. A ideia de um "Homo Economicus", perfeitamente racional e baseado no interesse próprio apenas, tal como definido por Richard Thaler and Cass Sunstein em Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth, and Happiness (2008).
"The general theme of these findings is that the idea of money primes individualism: a reluctance to be involved with others, to depend on others, or to accept demands from others… findings suggest that living in a culture that surrounds us with reminders of money may shape our behavior and our attitudes in ways that we do not know about and of which we may not be proud. Some cultures provide frequent reminders of respect, others constantly remind their members of God, and some societies prime obedience by large images of the Dear Leader. Can there be any doubt that the ubiquitous portraits of the national leader in dictatorial societies not only convey the feeling that “Big Brother Is Watching” but also lead to an actual reduction in spontaneous thought and independent action?" Kahneman
Efeito de halo, (corrigindo exames)
É a tendência que temos para gostar ou desgostar tudo sobre uma pessoa - incluindo coisas sobre as quais nada sabemos dessa pessoa. Para explicar este efeito Kahneman apresenta um exemplo próprio brilhante e que dirá muito a quem é professor.
"Early in my career as a professor, I graded students’ essay exams in the conventional way. I would pick up one test booklet at a time and read all that student’s essays in immediate succession, grading them as I went. I would then compute the total and go on to the next student. I eventually noticed that my evaluations of the essays in each booklet were strikingly homogeneous. I began to suspect that my grading exhibited a halo effect, and that the first question I scored had a disproportionate effect on the overall grade. The mechanism was simple: if I had given a high score to the first essay, I gave the student the benefit of the doubt whenever I encountered a vague or ambiguous statement later on. This seemed reasonable. Surely a student who had done so well on the first essay would not make a foolish mistake in the second one! But there was a serious problem with my way of doing things. If a student had written two essays, one strong and one weak, I would end up with different final grades depending on which essay I read first I had told the students that the two essays had equal weight, but that was not true: the first one had a much greater impact on the final grade than the second. This was unacceptable." Kahneman
Para acabar com este problema, Kahneman passou a corrigir os exames, questão a questão, e não aluno a aluno, para evitar qualquer contágio de halo entre as perguntas. Apesar disso refere, que os efeitos dessa decisão levaram a resultados que lhe custaram a aceitar. Porque agora verificava discrepâncias grandes entre as respostas dos mesmos alunos, o que o deixava com vontade de alterar algumas notas, porque se sentia desconfortável em termos de coerência da avaliação. Mas diz que apesar disso, sabia que agora estava a ser mais justo, já que a coerência que existia antes, não existia realmente mas estava a ser criada artificialmente pelo seu cérebro.

A primeira parte do livro trabalha ainda - controlador preguiçoso; facilitador cognitivo; normas, surpresas e causas - mas não se pode aqui resumir tudo. O livro é todo ele um grande manual, que se deve ler, reler, consultar e voltar a consultar. Antes de terminar esta parte Kahneman faz um resumo das características que definem o nosso Sistema 1.
"Characteristics of System 1 
. generates impressions, feelings, and inclinations; when endorsed by System 2 these become beliefs, attitudes, and intentions
. operates automatically and quickly, with little or no effort, and no sense of voluntary control
.can be programmed by System 2 to mobilize attention when a particular pattern is detected (search)
. executes skilled responses and generates skilled intuitions, after adequate training
. creates a coherent pattern of activated ideas in associative memory
. links a sense of cognitive ease to illusions of truth, pleasant feelings, and reduced vigilance
. distinguishes the surprising from the normal
. infers and invents causes and intentions
. neglects ambiguity and suppresses doubt
. is biased to believe and confirm
. exaggerates emotional consistency (halo effect)
. focuses on existing evidence and ignores absent evidence (WYSIATI)
. generates a limited set of basic assessments
. represents sets by norms and prototypes, does not integrate
. matches intensities across scales (e.g., size to loudness)
. computes more than intended (mental shotgun)
. sometimes substitutes an easier question for a difficult one (heuristics)
. is more sensitive to changes than to states (prospect theory)*
. overweights low probabilities*
. shows diminishing sensitivity to quantity (psychophysics)*
. responds more strongly to losses than to gains (loss aversion)
. frames decision problems narrowly, in isolation from one another" 
Kahneman

PARTE II e III - Definição de Intuição e a Previsão do Futuro
Na segunda parte Kahneman continuará a trabalhar as questões dos desvios de cognição, indo ao âmago dos métodos que utilizamos para raciocinar, ou sejas as heurísticas que utilizamos, tais como - Lei dos Números Pequenos; Âncoras, Disponibilidade, Risco, Padrões estatísticos, Regressão à média. Depois na terceira parte entra no campo da Ultraconfiança, e apresenta os problemas do excesso de confiança na análise apresentando elementos como - ilusão de compreensão ou a ilusão de validade que conduzem a um dos tópicos mais interessantes de todo o livro a Intuição dos Especialistas. O capítulo começa com uma afirmação controversa, mas com a qual me identifico bastante,
"Professional controversies bring out the worst in academics. Scientific journals occasionally publish exchanges, often beginning with someone’s critique of another’s research, followed by a reply and a rejoinder. I have always thought that these exchanges are a waste of time. Especially when the original critique is sharply worded, the reply and the rejoinder are often exercises in what I have called sarcasm for beginners and advanced sarcasm. The replies rarely concede anything to a biting critique, and it is almost unheard of for a rejoinder to admit that the original critique was misguided or erroneous in any way. On a few occasions I have responded to criticisms that I thought were grossly misleading, because a failure to respond can be interpreted as conceding error, but I have never found the hostile exchanges instructive." Kahneman
A discussão segue depois para a análise do exemplo dado por Gladwell em Blink, dos especialistas em arte que percepcionavam que a obra em análise pelo museu era falsa, só não sabiam explicar porquê. Ou seja, Gladwell apresenta o caso como sendo um dos exemplos do poder da intuição dos especialistas. Mas Kahneman não crê nessa explicação, diz-nos que na verdade se os especialistas tivessem realizado um verdadeiro trabalho de inquérito teriam descoberto porque era falsa. Kahneman vai explicar a seguir que a Intuição não é mais do que o Reconhecimento de algo que já se fez ou encontrou antes, citando a definição de intuição dada por Herbert Simon,
“The situation has provided a cue; this cue has given the expert access to information stored in memory, and the information provides the answer. Intuition is nothing more and nothing less than recognition.” Kahneman
Isto responde em parte ao facto pelo qual muitas das previsões futuristas de especialistas não funcionam. Kahneman apresenta vários estudos que demonstram preto no branco que ter utilizado grandes especialistas (corretores de bolsa, analistas políticos, etc.) ou um conjunto de macacos para tomar decisões teria tido o mesmo resultado, o estudo que mais me impressionou foi exactamente o dos correctores da bolsa. Num estudo feito pelo próprio a pedido de uma empresa de Wall Street para procurar definir um melhor sistema de compensação pelas competências, Kahneman ficou ele próprio surpreendido, porque não encontrou qualquer relação entre as competências dos correctores de bolsa e os seus resultados, como ele diz: "The results resembled what you would expect from a dice-rolling contest, not a game of skill". A razão para isto não está verdadeiramente na falta de competências dos correctores, a razão para isto está no objecto em análise, porque o mundo é muito mais difícil e variável  do que queremos acreditar. Kahneman tenta então definir as actividades nas quais faz sentido questionar especialistas. Ou seja, é apenas expectável encontrar argumentos sólidos e leituras relevantes feitas por especialistas sobre o futuro quando estas dizem respeito a:
"- an environment that is sufficiently regular to be predictable"
"- an opportunity to learn these regularities through prolonged practice"
Kahneman
Quando ambas as condições existem, então a intuição funcionará com todo o poder das competências. O xadrez é o exemplo de um ambiente regular que permite ser treinado através da prática prolongada das 10 mil horas de mestria. O mesmo se pode dizer dos Médicos ou Bombeiros quando encontram sistema complexos mas ordenados. O que acontece nestas situações é que "o Sistema 1 aprendeu a utilizar os sinais para guiar as suas acções, mesmo quando o Sistema 2 não aprendeu a nomear os sinais ou as acções".


Ilustração de James Ferguson (FT)

Por outro lado os correctores da bolsa ou os cientistas políticos que fazem previsões de longo-prazo trabalham num ambiente de validade zero. No fundo os seus falhanços são apenas um reflexo da total imprevisibilidade dos eventos que eles estão a tentar prever. Leonard Mlodinow escreveu todo um livro sobre as questões da aleatoriedade da vida a propósito destes estudos, The Drunkard's Walk: How Randomness Rules Our Lives (2009). Mas um dos exemplos mais interessantes que Kahneman nos dá é da análise da história do século XX.
"The idea that large historical events are determined by luck is profoundly shocking, although it is demonstrably true. It is hard to think of the history of the twentieth century, including its large social movements, without bringing in the role of Hitler, Stalin, and Mao Zedong. But there was a moment in time, just before an egg was fertilized, when there was a fifty-fifty chance that the embryo that became Hitler could have been a female. Compounding the three events, there was a probability of one-eighth of a twentieth century without any of the three great villains and it is impossible to argue that history would have been roughly the same in their absence. The fertilization of these three eggs had momentous consequences, and it makes a joke of the idea that long-term developments are predictable." Kahneman
PARTE IV - "Prospect Theory"
Na quarta parte do livro Kahneman dedica-se a apresentar o seu trabalho no campo das Escolhas, e é aqui que apresenta a sua grande teoria, responsável pelo Nobel recebido em 2002 - Prospect Theory. Amos e Kahneman descobriram uma falha nas teorias económicas, que previam os comportamentos das pessoas com base em lógicas racionais quantificáveis. Os economistas acreditavam que as pessoas procuravam sempre maximizar os seus ganhos - “maximize utility" - mas isso verificou-se não ser verdade, por causa de falhas ao nível cognitivo, como por exemplo a Aversão à Perda. Quantos de nós são capazes de agir racionalmente e optar por vender a nossa casa por menos dinheiro do que nos custou? A teoria fica demonstrada no exemplo abaixo:

- Se forçados a escolher entre receber garantidamente 500€ ou ter 50% de chance de ganhar 1.000€, a maioria de nós irá optar pela coisa certa. Mas se a escolha for entre perder garantidamente 500€, ou ter 50% de chance de perder 1.000€, a maioria de nós preferirá jogar -  

PARTE V
A quinta e última parte é dedicada aos seus mais recentes trabalhos no campo da análise da felicidade e bem estar. Deste capítulo o que mais me interessou foram as suas análises e comparações entre o processo de storytelling e o modo como criamos e guardamos memórias das nossas experiências. Neste processo o autor definiu um novo patamar cognitivo, a que chamou os Dois Eus ("Two Selves"), que não estão relacionados com os Sistemas 1 e 2, mas antes com o Eu que Experiencia, e o Eu que Recorda. Nos seus estudos demonstrou que a nossa memória segue uma lógica de "Peak-end rule", em que apenas preserva o pico da experiência e o modo como acaba, negligenciando a duração da experiência. Já falei disto num artigo na Eurogamer - A Memória da Experiência. Deixo um excerto desse artigo,
"Aprendemos assim que existe um conflito entre o Eu que experimenta, e o Eu que relembra. Somos seres feitos de histórias, e a nossa mente constrói continuamente histórias sobre as nossas experiências. Estas descobertas vêm de algum modo lançar mais alguma luz sobre as razões pelas quais estruturamos as narrativas em modelos que possuem um início, um meio, e um fim. O que interessa de cada história que nos contam, é o modo como começa pelo seu contexto, depois o seu momento alto, o clímax, e finalmente o modo como acaba. Assim não só explicamos a necessidade de linearidade, seguir estes três momentos, mas explicamos ainda melhor a obsessão que temos pelos finais felizes nas histórias." Zagalo, in Eurogamer.pt

O livro é grande por isso a quantidade de dados, estudos, experimentos e casos é enorme. A quantidade de teorização apresentada para suportar cada um destes é ainda maior. Como dizia no início isto deveria ser um livro obrigatório em qualquer introdução ao mundo da Psicologia. É um dos livros maiores da área para leigos, capaz de nos ajudar a ir além do mero senso comum, do expectável, das crenças. É já um clássico, e um dos grandes livros obrigatórios.


Edição analisada: Thinking, Fast And Slow, 2011, Daniel Kahneman, Penguin Books, Páginas: 512
Edição portuguesa: Pensar, Depressa e Devagar, 2012, Daniel Kahneman, Temas e Debates, Páginas: 644