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dezembro 11, 2017

"Ilíada" de Homero

Durante muito tempo me questionei porque sempre que se citava Homero, ou se citavam os clássicos da literatura grega, era da “Odisseia” que primeiro se falava, quando em termos cronológicos, tanto da sua conceção como da história contada, é a “Ilíada” o primeiro dos dois livros. Não compreendia, até porque na tradição contemporânea, o mais importante das histórias está normalmente associado ao primeiro livro, ou primeiro filme, não passando os restantes de sequelas, sucedâneos, que não raras vezes falham em atingir o nível dos primeiros volumes das séries. Assim, e tendo eu lido primeiro a “Odisseia”, no ano passado, agora terminada a leitura da “Ilíada”, compreendi o porquê, e é sobre isso que me irei deter nas próximas linhas.

"O Triunfo de Aquiles" por Franz Matsch, num fresco do século XX, em que se vê Aquiles puxado pelos seus "cavalos de casco não fendido", arrastando, pelos pés, o corpo de Heitor.

A “Odisseia”, como o próprio título indica, trata uma viagem, no caso, a do regresso de Ulisses a casa, depois dos 10 anos que duraram a Guerra de Tróia. Já a “Ilíada” foca-se nessa guerra, mas se dá conta das razões que a ela conduziram, acaba por depois se centrar quase exclusivamente num punhado de eventos, realizando avanços e recuos ao longo de toda a sua descrição, sem nunca chegar a concluir o que inicia. Assim, temos como razão para o início da guerra, um tanto tonta como Heródoto já terá dito: Paris, filho do rei de Tróia, rapta a mulher, Helena, do rei de Esparta (Antiga Grécia), Menelau, e fogem ambos para Tróia, fazendo com que os gregos se levantem em sua perseguição, e iniciem uma guerra de 10 anos para destruir Troia e reaver Helena.

A edição em capa dura da Cotovia é deliciosa, mas o melhor continua sendo a tradução, como já havia dito a propósito da "Odisseia", realizada por Frederico Lourenço.

Os avanços e recuos nesta guerra acabam por ocupar a maior parte do livro, com as peripécias dos diferentes personagens. Do lado de Tróia: Paris, o seu irmão Heitor, e pai Priamo, ou o militar Eneias, que surgirá mais tarde como personagem principal da “Eneida” de Virgilo. Do lado dos gregos, temos Menelau, Agamenon, Ajax, Pátroclo e Ulisses que será o principal personagem da “Odisseia”. O miolo da narrativa arrasta-se bastante, não fossem as intervenções dos Deuses (Zeus, Ares, Afrodite, Atena, Apolo, Hera, Poseidon, etc.) em defesa de cada fação! Sim os Deuses defendem lados e atacam-se uns aos outros, tornando-os numa das mais interessantes atrações deste livro.

O núcleo da narrativa, acabará por surgir apenas na última parte do texto, com Aquiles a assumir por completo o protagonismo, a ponto de no final se tornar inevitável ler a “Ilíada” como o livro de Aquiles, ou como é reconhecido por alguns, "A Ira de Aquiles". Isto é no mínimo surpreendente, já que apesar de Aquiles surgir desde o início, ele é praticamente secundário durante todo o livro, contudo o modo como depois Homero o trabalha nesse último terço, acaba por elevar a sua personagem a um ponto de destaque não dado a mais nenhum dos restantes elementos. Aliás, em parte, o problema desta "Ilíada" está exatamente no quão pouco trabalhados vão surgindo cada um dos personagens, completamente lineares, ao contrário do que acaba por acontecer com Aquiles, o problema é isto acontecer apenas na reta final. Repare-se como em a "Odisseia", o trabalho de desenvolvimento de personagem recai sobre Ulisses mas esse é trabalhado o início ao final do poema.
“E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu —
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.”
Canto XXII 
Se é crível o despoletador da chama de Aquiles (a morte do seu amigo Pátroclo)? Julgo que é tão crível como uma cidade inteira deixar-se levar para uma guerra destrutiva por causa de um capricho, moralmente indefensável, de um filho de um rei. No fundo a "Ilíada" mostra, como desde a primeira hora, a narrativa teve de lidar como problemas de dissonância cognitiva, no caso: com tantos e tantos personagens mortos de formas violentíssimas, descritas para nos fazer sentir o terror da guerra, quer depois a narrativa que se chorem alguns desses personagens em particular, como se umas vidas tivessem mais valor que outras. Isto apenas se explica porque como muitos foram dizendo, estes poemas épicos não procuram retratar a realidade, antes dão conta de histórias populares, folclore, com um sentido de puro entretenimento, recorrendo à fantasia e mitologia.

Neste sentido, interessa menos a credibilidade do que se conta, e mais a ênfase do heróico dos personagens, que para o ser requer emocionalidade, e nesse campo Aquiles acaba sendo um dos poucos a ser capaz de nos emocionar. Faltam episódios marcantes, mais ainda quando comparado com a “Odisseia”, nem mesmo o Cavalo de Tróia aqui surge, ou o tendão de Aquiles, ainda que no último terço surjam todo um conjunto de eventos fortes enquadrados pela Ira de Aquiles — a morte de Pátrocolo; o resgate do seu corpo; a luta entre Heitor e Aquiles; a morte de Heitor; e o pedido de Priamo para levar o corpo do seu filho Heitor de volta.

"Priamo implorando a Aquiles" (1815) de Bertel Thorvaldsen 

Dito tudo isto, julgo que fica clara a relação das duas obras, e nomeadamente porque “Odisseia” vai surgindo quase sempre como a referência desta época. Não fosse a “Íliada” o primeiro poema épico sobrevivente (depois do curto poema “Gilgamesh”),  e provavelmente acabaria esquecido na nossa história. Tudo o que tem para oferecer é imensamente melhor conseguido na “Odisseia”. Ainda assim, não posso deixar de recomendar a sua leitura. É um processo lento, mas em que o crescendo se vai instalando, para no último terço, vivido com Aquiles, recompensar todo o nosso investimento. Como já tinha dito a propósito da “Odisseia”, Homero parece um autêntico realizador de cinema de Hollywood, capaz de nos arrastar pelo pescoço, com a emoção pendurada desde o canto do olho até à ponta do coração. Pura visceralidade, não fosse este é um Poema Épico.


A ler:
"Odisseia" de Homero, in Virtual Illusion

novembro 30, 2016

"Odisseia" de Homero

Ler um livro com mais de 2700 anos e sentir prazer genuíno com a sua leitura é por si só admirável, e leva-me a constatar de imediato que: o seu criador era alguém extremamente dotado na arte narrativa; e que existe uma estrutura base no modo como contamos histórias que se tem mantido bastante estável ao longo dos últimos milénios.

Ulisses (1 a.c.)

“Odisseia” e “Ilíada” são comumente reconhecidos como os poemas épicos, ou histórias completas, mais antigos da nossa história, pertencendo a um movimento, o Ciclo Épico, em que surgiram várias obras do mesmo género, por distintos autores, tendo sido estes os únicos dois grandes poemas sobreviventes. Na verdade, antes deste ciclo existiu um outro, por volta de 2100 a.c., na Suméria, do qual sobreviveu ainda, o chamado “Épico de Gilgamesh”, contudo, e apesar do relato ser de algum modo aproximado dos relatos destes épicos gregos, com reis heróis e muito valentes, nem a sua preservação nem a complexidade da sua estrutura se aproximam dos dois poemas de Homero.

É verdade que os académicos andam há séculos entretidos com a discussão daquilo que pertence verdadeiramente ao poema original da “Odisseia”, ainda assim, descontando aquilo que pode não ter estado na criação original, ou aquilo que foi “remendado” para tornar mais completo, mais “redondo”, o esqueleto essencial da estrutura do poema continua sendo uma peça brilhante de arte narrativa. Temos uma história que se inicia ’in media res’ mas não se limita a progredir daí em diante, usa narração dentro de narração para criar analepses, ou flashbacks, e assim dar à compreensão do leitor o que se passou e como se passou, num modo completamente não-linear. Ou seja, Homero não se limita a relatar algo que terá acontecido, mas desenha um enredo com claro objetivo de envolver, estimular e provocar os seus leitores.

A mestria da não-linearidade da ocorrência dos eventos é tanto mais evidente à medida que nos vamos aproximando do final e Homero começa a gerir a informação relatada, no sentido de retardar o acesso do leitor a determinadas partes do que está acontecer, conseguindo assim produzir verdadeiras sequências de suspense, tal qual o cinema de hollywood desenvolveu durante o século XX. Mas a estimulação não se dá apenas a partir da estrutura, esta surge impregnada em toda a estilística do poema, nomeadamente no posicionamento do narrador, com Ulisses a variar entre terceira e primeira-pessoa, para reproduzir mais intensamente o sentimento do seu personagem, ou com a variação de narrador de Ulisses para Telémaco de modo a reforçar o relato do mundo que contextualiza Ulisses, tornando-o cada vez mais vivo e presente na efabulação.

Apesar de toda esta diversificação do modo de contar, entre diferentes narradores, diferentes vozes, diferentes tempos cronológicos, a “Odisseia” utiliza uma linha condutora central, que atravessa a todo momento tudo o que está a acontecer, e permite assim não apenas situar o leitor, mas também mantê-lo envolvido, e que é o retorno de um herói a casa. Não um retorno qualquer, mas de alguém que esteve perdido 20 anos, e que por isso mesmo, viu o seu lugar ser tomado por quem tenta a qualquer custo apoderar-se do que é seu, incluindo a amada esposa. Ou seja, esta linha é como uma coluna vertebral que tudo sustenta, baseada no arquétipo “homem reencontra mulher”, e que permite a qualquer momento parar a progressão e contar histórias adicionais que contribuem para a definição dos diferentes personagens e eventos, sem que os recetores percam de vista para onde se dirigem. Sendo um artifício, não deixa de impressionar o modo como é tão bem explorado ao longo de todo o poema épico.

“Ulysses cegando o Ciclope” (1 a.c.), conjunto de esculturas encontradas numa caverna da Villa de Tiberio, Sperlonga, Itália

Neste sentido, enquanto lia questionei-me bastantes vezes sobre o modo como Homero terá conseguido chegar a este nível de elaborada complexidade narrativa. Sabemos que as histórias não surgiram da escrita, que a oralidade era abundante, e existiam pessoas que mais pareciam enciclopédias ambulantes. Aliás, recorde-se que Sócrates sempre detestou a figura da escrita, por achar que ela implicaria a perda e o treino da memória, que ela seria um convite à preguiça. Contudo, e apesar de termos de reconhecer o trabalho excepcional, o desenvolvido por muitos dos contadores de historias assim como dos filósofos que dissertavam pelas ruas da cidade, o alcance, em termos de elaboração, permitida pela oralidade é bastante mais circunscrita. Neste sentido, é provável, como apontam muitas das evidências, que a origem da “Odisseia” seja oral, como conjunto de cantos que foi sendo alargado com a passagem do tempo, mas que provavelmente só terá ganho a forma que hoje tem, ao ser passada a registo efetivo, permitindo-se revisões, re-organizações, re-elaborações, arredondamentos e balanceamentos. Neste mesmo sentido, fica a dúvida também tantas vezes levantada, se a “Odisseia” terá surgido mesmo de um único poeta, denominado Homero, ou antes de um conjunto de poetas, que foram mantendo vivas as diferentes histórias que mais tarde formariam os Cantos passados ao objeto escrito.

Outra questão ainda que se levanta é o porquê da sua sobrevivência. Terá sido pela sua elaborada complexidade, ou terá sido mais pelo modo como se fez propagar, não apenas através dos diferentes contadores de histórias de rua, como através de diferentes meios como o teatro, a pintura ou a escultura, e mais tarde pela literatura e audiovisual, ou ainda das próprias escolas e seus professores, ao longo de séculos e séculos. Acredito mais na questão da propagação, motivada pelo facto de se tratar da marca inicial da literatura ocidental, e a que ainda hoje podemos assistir, com uma enorme percentagem do cânone ocidental a citar direta e repetidamente Homero, o que acaba por tornar ambas as suas obras completamente obrigatórias para quem pretenda compreender este mesmo cânone. Aliás, passados 26 séculos, podemos ainda ver surgir uma das obras basilares da literatura contemporânea, que não só cita, como segue de forma rígida toda a sua estrutura — “Ulisses” (1922) de James Joyce. Aliás, esta foi uma das razões pelas quais resolvi criar a minha própria listagem da estrutura da "Odisseia", e que aqui deixo, para poder comparar com os capítulos de Joyce.

"The Siren Vase" (~470 a.c.)

''Ulysses and the Sirens'' (1891) de John William Waterhouse

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A Estrutura Dramática

Cantos 1 a 4
Telémaco e os pretendentes.

Cantos 5 e 6
Ulisses liberta-se de Calipso e inicia a viagem de regresso.

Cantos 7 a 8
Recebido por Nausícaa, inícia a narração das aventuras passadas.

Canto 9
Passagem pela terra dos Ciclopes

Cantos 10 e 11
Viagem de Ulisses ao Hades

Canto 12
Enfrentando o canto das sereias

Canto 13 e 14
Regresso de Ulisses a Ítaca

Canto 15
Regresso de Telémaco a Ítaca

Canto 16
Reunião de Ulisses e Telémaco

Cantos 17 a 20
Preparação da vingança de Ulisses

Cantos 21 e 22
A vingança de Ulisses

Canto 23
Reencontro com Penélope

Canto 24
Encerramento
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Aproveito para deixar aqui também, juntamente com a estrutura, um friso cronológico dos eventos relatados pela "Odisseia", e que dão conta dos 20 anos em que Ulisses andou fora de casa. Podemos ver o primeiro período de 10 anos, dedicado à guerra em Tróia, e depois o modo como se dividem os 10 anos que demorou no caminho para casa, ou seja, os eventos relatados na "Odisseia".

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Friso cronológico da odisseia de Ulisses


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Por fim, não posso deixar de louvar o trabalho de Frederico Lourenço, e julgo que nada do que direi poderá fazer jus ao seu trabalho, nomeadamente por tudo o que representa o seu esforço para a cultura de língua portuguesa (a ter em conta que o próprio Brasil recorreu à sua tradução, numa edição da Penguin). Digo isto porque a tradução não realiza apenas um esforço de manutenção da rítmica, quase impossível de traduzir, como o faz por meio de um esforço de tornar o texto muito mais legível, diria mesmo tornando o texto quase prosa. Passei os olhos por três outras traduções, de Portugal e do Brasil, nenhuma se lhe compara em clareza.