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dezembro 01, 2022

Make It New: A History of Silicon Valley Design

Não sei como passei ao lado de "Make It New: A History of Silicon Valley Design", um livro já de 2015, mas é uma das maiores jóias sobre a História de Silicon Valley, sobre o nascimento das tecnologias multimédia, mas em particular sobre o modo como o design, e não o desenvolvimento, se tornou no centro da criação tecnológica. Li já dezenas de livros sobre esta história, mas este livro de Barry M. Katz, Professor de Design Industrial e Interação no California College of the Arts e Colaborador da IDEO, Inc., distingue-se por apresentar pela primeira vez uma perspectiva completa a partir do design. Foi, sem dúvida, uma das minhas leituras mais gratificantes de 2022.

O livro está editado pela MIT Press

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

janeiro 08, 2019

Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável

“Red Dead Redemption 2” (RDR2) fica como sinónimo do mais completo e irrepreensível mundo-história criado até hoje nos videojogos, o que é diferente de dizer que é um videojogo perfeito. A experiência criada pela obra, ao longo de mais de 60 horas, vai para além daquilo a que o cinema nos habituou, aproximando-se, amiúde, da experiência literária, mantendo, no entanto, sempre a sua marca como videojogo. O que impede a obra de ser perfeita é talvez também aquilo que a torna tão singular, a teimosia da visão pessoal, autoral, do seu diretor criativo Dan Houser (44), nomeadamente no design de jogo e de narrativa.



Parte I
Começando pelo melhor, e mais impactante, o mundo-história. É uma vitória da multidisciplinaridade entre a arte e a tecnologia, contando para o efeito com todo um trabalho de qualidade elevada em quase todos os domínios das artes narrativas — mundos, personagens e eventos — das artes visuais — modelação (elementos estáticos: arquitetura e geografia; e dinâmicos: pessoas e animais), texturas, iluminação (atmosfera e clima), animação, cinematografia ¬— das artes sonoras — design de som e música — assim como artes cénicas — performances, guarda-roupa e palcos (interiores e exteriores). Mas este trabalho artístico, de altíssimo nível, só se dá à criação desse mundo-história admirável porque conjuntamente com este se estenderam até ao limite as possibilidades tecnológicas que garantem a vivacidade do mundo, assentes numa variedade de sistemas computacionais, nomeadamente inteligência artificial de suporte ao movimento, a animação de todo o mundo, tanto nos campos áudio e visual como sistemicamente, com a rede de eventos e micro-eventos, por via das uniões, interseções e interdependências, a garantir níveis impressionantes de organicidade.



A entrada no mundo aberto pleno, na primeira visita que fazemos a uma vila, logo após a fase introdutória do jogo, é de total estupefação, os nossos olhos nem querem acreditar no que estão a presenciar, a navegação pelo universo é quase surreal, ultrapassando tudo o que o cinema ou os parques temáticos já nos tinham oferecido. Não é questão de interatividade, é acima de tudo um trabalho de direção de arte, que ao contrário do que acontecia no cinema, em que se construíam maquetes para filmar e se procuravam geografias alusivas, pode aqui controlar tudo desde o primeiro ao último pixel. Temos paredes, portas, janelas, carroças e palanques de madeira que transpiram texturas de madeira, lama no chão que brilha com chuva e levanta em pó com o sol, tal como as roupas, os cabelos e as peles, todas as formas nunca perfeitas, nunca iguais, nunca simétricas. Ao que se juntam miríades de objetos —cordas, laços, roupas, candeeiros, caixas, cartazes, quadros, fotografias, armas, guitarras, cachimbos, etc. etc. — pendurados nas paredes, nas portas, nas carroças, nas pessoas. Mas se o mundo estático impacta, é o seu movimento, a miríade de animações que suportam as pessoas, nas suas formas de andar particulares de cada personagem, os animais — cães, cavalos, galinhas, pássaros, esquilos — que correm e saltam, as carroças que atascam na lama, que andam mais rápido em descidas do que em subidas, as suas rodas que ficam carregadas de lama e sobem quando pisam pequenas pedras, é a luz do sol e as sombras das nuvens carregadas que nos fazem sentir cada momento, como um momento vivo.

Claro que se fosse isto, uma representação em movimento, era uma animação excecional mas não diferente de outras maravilhas que o cinema de animação já nos ofereceu, a diferença é que este mundo descrito não surge apenas em pequenos quadros e durante breves segundos, este mundo está ali pronto a ser experimentado pelo tempo que nós quisermos e em 360º. Por isso, não basta animá-lo é preciso garantir a sua interatividade, e aí a Rockstar vai aonde nenhum jogo foi, com centenas de pessoas singulares — com traços extraídos de mais de 1200 atores — em movimento contínuo nas vilas, tratando das suas vidas, com quem podemos falar, que sempre têm uma palavra para nos dizer ou uma expressão para fazer. Ao que se juntam quase duas centenas de animais, cada um com o seu comportamento, e capaz de se relacionar com humanos assim como com outros animais, em função do seu lugar na cadeia alimentar. E ainda, meios de transporte — carroças, diligências, comboios, trolleys, barcos, barcos a motor — dezenas de armas e equipamentos — lanternas, máquina fotográficas, laços, binóculos, canas de pesca, sacolas e peles.

Todo este manancial de elementos em movimento é gerido por um sistema complexo que fornece vários níveis de autonomia a cada camada do universo, conseguindo criar a ilusão de um mundo onde penetramos, tal Alice, e sentimos como realidade, vivo. Esta componente orgânica acaba por ser responsável pelo nosso deslumbre, não apenas pela beleza e complexidade, mas também pela capacidade de nos surpreender graças ao que vai emergindo da junção de tantos elementos e das suas interações, tal como nos surpreendemos todos os dias com o mundo em que vivemos.

Parte II
Passando agora àquilo que impossibilita RDR2 de ser perfeito, e que tem servido para impedir o mesmo de ganhar os maiores galardões dos festivais de videojogos — o Design de Jogo — tenho de dizer que até ao final, antes de entrar nos dois epílogos, considerei que eram meras opções estéticas da Rockstar e Dan Houser, mas quando começaram a subir os créditos, e vi como tinha sido tratado o Design de Narrativa, fui obrigado a redimir-me e aceitar as críticas que vêm sendo feitas. Aquilo que foi feito com estes dois epílogos, juntamente com o design de jogo das missões, mostra uma teimosia artística incapaz de aceitar o conhecimento e savoir faire do design. Começo pelo jogo e depois falarei da narrativa.

A Rockstar tem fama pela incoerência do design entre o mundo aberto e as missões. Nos mundos, os jogadores podem fazer quase tudo o quiserem, mas nas missões não podem fazer nada que não esteja pré-estabelecido, algo que as discussões recentes têm gostado de confrontar com uma suposta superioridade do mundo aberto e agência de "The Legend of Zelda: Breath of the Wild" (ver Mark Brown e Discussão sobre agência em RDR2). Discordo desta visão, desde logo porque muito daquilo que Zelda faz é a custa de uma narrativa vazia, mas porque o problema da Rockstar não é esse, esse é antes uma consequência de uma opção estética, ou obsessão, e que tem que ver com o facto da Rockstar se manter agarrada a um ideal que foi ultrapassado pelas necessidades do meio, a imitação cinematográfica. Assim, procura diminuir ao mínimo possível os sistema de informação de suporte ao jogo (UI ou HUD), mantendo a interação quase toda a um nível diegético, impedindo que se utilizem sistemas de feedback de competências e experiência (Skill Trees) ou de progresso (analíticas e métricas de mundo e equipamento), como fazem hoje todos os jogos em mundo-aberto, de "Assassin’s Creed" a "Witcher 3" (2015) ou "Horizon Zero Dawn" (2017). Ora sem estes sistemas, que organizam todo o mundo virtual, e oferecem feedback ao jogador, torna-se complicado, se não impossível, fazer passar aquilo que vamos fazendo no mundo aberto para as missões da história. Nas entrevistas Rob Nelson, um dos produtores de RDR2, fala muito do sistema de Honra, que vai ficando mais negativo ou positivo, consoante o modo como nos vamos comportando, mas na verdade isso nunca afeta o desenrolar das missões. Do mesmo modo, temos de comer, porque ficamos magros ou gordos, mas isso não impacta nada no resto do jogo, porque o jogo não tem um sistema de feedback que alerte o jogador. O jogador não pode estar a meio de uma missão e cair para o lado com fome ou sono, se ele não sabe a percentagem de fome ou sono que ainda lhe resta quando decide entrar na missão. Ou seja, o jogo “fala” com o jogador apenas por meio diegético (mostra que estamos magros ou que temos olheiras, mas para determinar o impacto desse feedback, seria preciso todo um manual de nuances e tempo de aprendizagem para ler esses sinais) mas esse não é suficiente para criar sistemas com a complexidade do que se espera de um mundo-aberto. Pode funcionar, em jogos lineares e bem delimitados, como “The Last Guardian” (2016), mas é impossível de realizar num jogo abrangente como RDR2.

Por fim, o design de narrativa, mas aqui tenho de avisar que entrarei com spoilers, mas avisando. Antes de atacar os epílogos, dizer que existe muito de genial neste jogo, no campo do design de narrativa, sendo o melhor, o início de cada missão. Todas, sem exceção começam com Arthur a seguir para a missão com um ou vários companheiros, a cavalo ou a pé, durante o que se dão breves conversas, que estão magistralmente bem escritas, não apenas porque realizam toda a exposição necessária, sem precisarmos de qualquer cutscene, como pela performance desse guião se consegue criar o sentimento de cada um dos 23 indivíduos que constituem o gangue de Dutch, Arthur e Marston. Mas se isto é o melhor, acaba sendo também responsável pela separação forte, em termos narrativos, que se sente entre o mundo-aberto e as missões, porque apesar de a Rockstar dizer que todos os personagens reagem a nós, e são dotados de imensas linhas de diálogo e expressões, a verdade é que nenhuma dessas capacidades dos NPC se compara nunca a nenhuma das performances que “vivenciamos” com cada um dos elementos em cada missão. São esses momentos, em que nos preparamos para avançar para a “quest”, que nos fazem entrar no espírito daquele gangue, compreender quem são aquelas pessoas, o que as uniu e mantém unidas, o que as singulariza e acaba dando toda a vida de que RDR2 é feito.  Nestes momentos respira-se forte inspiração literária, e por mero acaso andava a ler "David Copperfield", sentindo a momentos algo no tom que aproximava imenso RDR2 de Dickens. Parecia-me estranho até que li uma entrevista com Dan Houser, em que este dizia que se tinha servido de centenas de referências, "mas nada contemporâneo para não o virem a acusar de roubar ideias", dando conta de Henry James, Keats, Émile Zola, Arthur Conan Doyle, frisando esta pérola — "Mas não há maior personagem na história da literatura do que Uriah Heep" — uma personagem de "David Copperfield" de Dickens, explicando o que senti, e tanto daquilo que temos por detrás daqueles personagens do gangue.


*** Spoilers *********************************

Epílogos. RDR2 termina verdadeiramente quando Arthur Morgan morre. Basta procurar as resenhas, as leituras e tributos feitos na net ao jogo, e veremos que Arthur é o personagem que agarrou o imaginário dos jogadores (https://www.youtube.com/watch?v=ES1Td5Pm2IE ). O personagem está imensamente bem escrito, e é suportado por uma performance e curva dramática soberbas. O jogo é sobre Arthur, não sobre John Marston. Sim, antes de RDR2 a audiência vivia fascinada por Marston, ele seria o ego da série, e talvez isso também tenha pesado na decisão de criar dois epílogos de 3 horas cada um, para nos colocar a jogar como Marston, mas foi um erro colossal como podemos ver em vários textos na rede (Forbes, VGR, Collider). Quando Arthur morre, senti o zénite de RDR2, senti a perfeição de uma história, a sua mensagem total ali plasmada e fechada. Os dois epílogos oferecem nada, mesmo a parte final, da morte de Micah, é completamente irrelevante, se era para matar alguém, era Dutch quem queria morto, desde que ele abandonou Arthur à sua sorte. Ainda assim, se os epílogos fossem uma ou duas missões na quinta, para fecharem em modo espiritual, agora horas a fio de tarefas inconsequentes, com mais gangues sanguinárias, e apenas Marston e três amigos para encher. Quando cheguei ao final dos epílogos já nem queria ouvir a música da banda sonora, só queria desligar, fechar, de tão aborrecido que estava. Para mim, não se tratou de nenhum epílogo, mas antes de dois DLC enxertados no final do jogo, um dedicado a Abigail e outro dedicado aos três amigos — Tio, Charles e Sadie e à Quinta. O design de narrativa falha completamente na gestão emocional do jogador, não aproveita a relação criada com a personagem, que deixou marca, para fazer o jogador passar por dois epílogos distantes, sem qualquer relação emocional com as 50 horas que tinha acabado de jogar.

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Dito tudo isto, quero fechar apenas dizendo que RDR2 é uma das maiores conquistas desta geração de videojogos. Tecnicamente será superado pela próxima geração, mas o Gangue de Dutch e Arthur Morgan ficarão na memória dos videojogos, nomeadamente na de todos aqueles que jogaram esta maravilha do entretenimento, arte e design.


Referências
Red Dead Redemption 2: A deep dive into Rockstar’s game design, VentureBeat
Red Dead Redemption 2 – how advanced AI and physics create the most believable open world yet,  VG247
The Story Behind the Story of ‘Red Dead Redemption 2’, Variety
How the West Was Digitized The making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2, Vulture
Red Dead Redemption 2: The inside story of the most lifelike video game ever, Entrevista Dan Houser pela GQ
Rockstar Games Reveals New Plot Details for 'Red Dead Redemption 2', Entrevista com os diretores de arte, Hollywood Reporter
Red Dead Redemption 2 Is True Art, NYT
Avec Red Dear Redemption Interview Rob Nelson, JeuxActu 

dezembro 15, 2018

"A Way Out", obrigatório dois para jogar

Josef Fares é autor de um dos mais importantes jogos desta década, “Brothers: A Tale of Two Sons” (2013), tendo conseguido inovar no cruzamento entre a linguagem cinematográfica e a linguagem da interação. Por isso quando foi anunciado que no seu novo jogo seria obrigatório duas pessoas para fazer avançar o jogo, as expectativas aumentaram exponencialmente: 'o que estaria Josef Fares a congeminar com o potencial da interação partilhada?' O resultado pode ser agora jogado em “A Way Out” (2018), e se no geral não nos surpreendeu, porque abusa dos clichés de Hollywood, no final consegue marcar-nos emocionalmente e deixar-nos na ânsia pelo próximo.

“A Way Out” (2018) de Josef Fares

O jogo começa inteiramente colado à atmosfera de “The Shawshank Redemption” (1994) passando depois por “Escape from Alcatraz” (1979), chegados cá fora, iniciamos uma viagem primeiro mais pastoral pelo interior rural americano, à la “Cool Hand Luke” (1967), seguido de uma fuga à policia à lá “The Sugarland Express” (1974), incluindo família,  que de tão alucinante quase mais parece “Fast & Furious” (2009), o que não é completamente inocente tendo em conta o que se revela perto do final sobre os personagens. Continua-se a viagem e voa-se para o México para ir atrás de Harvey, uma espécie de Fausto Alarcón de "Sicario" (2015), ambos colados a Tony Montana de “Scarface” (1983). No final temos uma luta, com armas e punhos, rumando a um ambiente de um qualquer “Bourne” (2002-2016). Como se tudo não bastasse, um dos principais personagens é o irmão do diretor, Fares Fares, imediatamente reconhecível de Westworld (2018) mas também de “Zero Dark Thirty” (2012). Já no campo dos jogos, por vezes sentimo-nos em "Uncharted", outras em "Life is Strange" (2015). Exposto tudo isto, fica evidente a quantidade de clichés de que se faz o universo cinemático criado por Josef Fares, o que é pena, porque não havia necessidade. Não me parece que faltem ideias a Fares, nem me parece que o público dos videojogos tenha de ser tratado como se só conseguisse acompanhar uma história quando ela é marcada por um ritmo de Hollywood. Assim não adianta nada Fares andar a mandar f@der os Oscars (já agora o jogo peca por excesso de asneiredo completamente desnecessário).




Em termos de interação segue-se “A Way Out” vem bastante colado a “Brothers” com uma fluidez algo presa mas aprazível, se bem que por vezes deixando um pouco a desejar, facilitando em excesso a vida ao jogador. Já no campo do gameplay, é onde se goram mais as expectativas, já que o engenho apesar de interessante, rapidamente entra em repetição, acabando por raramente nos surpreender. Ou seja, se é engraçado termos de colaborar para realizar ações, muitas vezes isso acaba por nos desligar da atmosfera narrativa, porque ficamos mais a pensar na pessoa que está a jogar connosco do que no jogo. Por outro lado, e ao contrário “Brothers” existe um claro excesso de cinemático vs. Jogo/interação o que por vezes gera alguma frustração. Se a isso juntarmos os clichés, percebe-se rapidamente porque o jogo tem dificuldade em atingir notas máximas.



O melhor é mesmo a componente emocional que Fares controla muito bem por via das cinemáticas e acima de tudo da música, com um jogo que exige pouco do jogador e está mais disposto a criar uma experiência pronta a ser sorvida. Já a sequência final é digna de ser jogada por todos, e voltar a ser jogada, e voltar a ser jogada, que foi o que aconteceu cá em casa. Percebemos claramente que não é um filme, e que nem sequer se trata apenas de carregarmos simultaneamente no mesmo botão, é antes algo que um filme nunca nos poderia dar, o sabor da picardia, a tristeza pela descoberta da verdade, o choque perante os nossos personagens, o querer ganhar a todo o custo, e o rematar de um enredo que nem sempre tem de seguir o caminho moral aguardado.

dezembro 28, 2017

"The Boat" (2015)

Trago uma novela gráfica interativa de 2015, "The Boat" de Matt Huynh, sobre a qual não tenho muito a acrescentar aos inúmeros textos e prémios granjeados. Contudo, a qualidade do trabalho impressionou-me tanto que não quis deixar passar a oportunidade de registar aqui a sua existência, e de algum modo continuar a promover o trabalho que continua tão atual como quando foi publicado.



"The Boat" (2015)

"The Boat" é uma adaptação do conto homónimo de Nam Le que nos fala da fuga de refugiados do Vietnam para a Austrália aquando a guerra em 1975. Inevitável pensar nos refugiados que hoje fogem da Síria para a Europa, é tudo tão similar, até a resposta dada pela Austrália foi tão similar. Contudo o sofrimento humano é o que mais nos arrepia, e esse fica bem plasmado na excelência do trabalho de ilustração de Matt Huynh.

Trailer

Do ponto de vista interativo existe pouco a ressalvar, usa-se a técnica de scroll muito em voga nos WebDocs, adicionando-lhe quatro pequenos ramos, também lineares, mas que acabam por gerar os únicos verdadeiros acessos de interatividade, já que no resto do trabalho se poderia aceder a toda a banda desenhada em modo não-interativo, recorrendo ao scroll automático proporcionado. No entanto o uso do scroll manual proporciona não apenas o controlo do ritmo da experiência narrativa, e o acesso aos ramos lineares extra, mas também confere feedback visual por meio de pequenos movimentos do fundo que vão seguindo a posição da nossa ação de scroll.

Podem experienciar online.

dezembro 14, 2017

Bury me, My Love (2017)

Um dos jogos que ficará deste ano será sem dúvida “Bury me, My Love” (2017) de Florent Maurin do estúdio francês The Pixel Hunt, que já nos tinha dado o interessantíssimo jogo de gestão de crises de comunicação. É apenas uma ficção interativa baseada em mensagens, com meia-dúzia de ilustrações, no entanto com tão pouco consegue fazer muito, consegue dar a sentir, em parte, o que sentem os refugiados sírios que partem para a Europa e os seus familiares que ficam a vê-los partir. O título é baseado num ditado popular árabe, usado por quem parte, para frisar “Nem penses em morrer antes de mim”. Como referência da jogabilidade temos "Lifeline" (2016), um dos jogos sensação do ano passado.



No campo da ideia e conceito, o autor realizou um extenso e interessantíssimo post-mortem que aconselho a ler depois de jogarem. Interessou-me particularmente a inspiração para o jogo que adveio por meio de um artigo no Le Monde “Le voyage d’une migrante syrienne à travers son fil WhatsApp" que usa uma abordagem na apresentação da informação muito próxima daquilo que viria a ser o jogo. Nesse sentido, Maurin refere mesmo que recorreu depois à jornalista para encontrar pessoas reais que tivessem passado pela situação, no sentido de desenvolver um guião o mais credível possível.

"Bury me, My Love" conta a história de Nour, durante a sua fuga da Síria para a Europa, colocando-nos no lugar de Majd, o seu namorado, que fica na Síria e vai comunicando com ela por SMS.

Relativamente ao desenho de mecânicas e experiência, apesar de ser ficção interativa, Maurin não se limitou a criar uma linha de diálogo com pontos de morte ou desistência, foi desenvolvida toda uma estrutura lógica de suporte ao jogo assente em quatro grandes variáveis: Moral, Relacionamento, Orçamento e Inventário. Desta forma, cada nova vez que jogamos, ou reiniciamos o jogo, podemos passar por eventos diferentes, mas mais importante é sentirmos o evoluir da nossa relação em função das nossas escolhas, o que contribui para nos aproximar do casal, tanto de Majd como de Nour. Sobre tudo isto, o jogo (se jogado no modo normal) condiciona a jogabilidade a tempo real, ou seja, vamos interagindo com Nour à medida que ela vai progredindo no terreno, o que pode levar horas ou dias.

No campo da narrativa, consegue conduzir-nos a estabelecer uma ligação com as personagens, enfatizada pelas nossas escolhas interativas que nos vão fazendo compreender melhor quem são aqueles personagens, e porque fazem aquilo que fazem. O mais relevante de tudo para mim, acabou por ser a proximidade que se desenvolve, obrigando-nos a "abrir os olhos" e a sentir aqueles refugiados como nós mesmos, porque apesar de virem de outro continente, pouco ou nada diferem de nós, partilhando culturas tão pouco diferentes das europeias. O jogo acaba assim por funcionar como um excelente medium na comunicação das diferenças mas acima de tudo das semelhanças, fazendo mais pela compreensão dos refugiados do que muito do jornalismo que vimos ao longo destes últimos anos.