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fevereiro 16, 2019

Paradoxo e Refúgio dos Super-heróis

O universo dos super-heróis, criado em revistas de banda desenhada durante os anos 1930 nos EUA, foi uma das mais brilhantes criações da imaginação e criatividade humanas do século XX, não apenas pelos mundos paralelos e alternativos criados, mas essencialmente por tudo o que representaram para uma sociedade em pantanas, primeiro com uma enorme Depressão Económica (1929), e depois com uma Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para quem tiver interesse em compreender melhor o nascimento deste mundo de ideias, aconselho vivamente a leitura de “As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay” (2000) de Michael Chabon. No entanto, ao longo dos últimos 100 anos, por várias vezes este universo de super-heróis quase desapareceu devido à ausência de interesse do público. Hoje vivemos uma nova vaga de ouro, talvez a mais intensa de sempre, nomeadamente pela força dos meios audiovisuais comparativamente ao meio da BD. E é sobre esta vaga que quero deixar algumas ideias, nomeadamente sobre o facto de não ter sido o universo de super-heróis a progredir na sua complexidade — tanto em criatividade como em valor social — mas antes parece ter sido a a própria sociedade a regredir, a voltar ao estado inicial que proporcionou o nascimento destes mesmos universos.

Nova Série "Titans" (2019) da Netflix

Para muitos milhões, como para mim, os universos de super-heróis acompanharam-nos na nossa adolescência, um tempo de formação complexo pelos choques e convulsões internas e seus impactos na relação social com o mundo que nos rodeia, nomeadamente família e escola. Contudo, todos nós que por lá passámos, atingimos um momento em que estes universos perderam o seu encantamento, e que sem saber porquê acabámos por nos desligar, desinteressar e esquecer.

Os originais de 1930

As revistas de BD da Marvel Brasil lançadas em Portugal nos anos 1980

Crescemos, os nossos interesses amadureceram, começaram a exigir maior complexidade na análise do real e do social. Os universos de super-heróis já não respondiam às particularidades do sentir e da compreensão de uma vida em mutação, esses universos não cresciam, eram estanques e imutáveis. O Homem-Aranha, o Capitão América, o Super-Homem, etc. tinham sempre a mesma idade, e se alguma vez numa história, um escritor, explorava a possibilidade de morrerem, logo a seguir se exploravam possibilidades de ressuscitarem, porque o filão não podia ser decepado. Percebíamos assim que aqueles com quem nos desejávamos identificar tinham deixado de ser personagens, eram apenas marcas publicitárias, tinham desistido de qualquer relação com o ser humano.

Ou seja, se à medida que crescemos, aprendemos pela experiência dura da realidade, aquilo que a filosofia insiste em querer ensinar-nos, que no mundo, assim como nas nossas vidas e nos nossos Eu, nada se mantém sempre igual, tudo está continuamente em transformação, tudo é devir. No mundo dos super-heróis, sendo tudo já de si fantástico e irreal, é-o também na sua relação com a vida e o seu sentido, e por isso incompatível com modelos mentais de seres-humanos interessados no crescimento de si.
“Tudo é impermanente”
Mandamento budista, tido como principal regulador de toda a sua filosofia (VI a.c.)
“Nada é permanente, exceto a mudança (..)
É impossível entrar duas vezes no mesmo rio (..)"
 
Heraclito, ~500 a.c.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

Camões, ~1500
“On closer inspection (..) The hardest stone (..) is in reality a complex vibration of quantum fields, a momentary interaction of forces, a process that for a brief moment manages to keep its shape, to hold itself in equilibrium before disintegrating again into dust.”
Rovelli, 2017
Assim sendo, como explicar todo este sucesso renovado, e duradouro, pelos super-heróis no cinema? Analisando o último século destes conteúdos na BD, os seus altos e baixos podem ligar-se a crises de valores e económicas, assim como ao surgimento e desvanecimento de cada geração. No caso atual, tendo em conta a duração do fenómeno, o primeiro filme de super-heróis com sucesso desta vaga foi "X-Men", realizado em 2000, não sendo propriamente fácil identificar um marcador único, até porque o tempo não permite que nos refugiemos nas mudanças de geração como explicação. Fazendo um rápido exercício, podemos dizer que a viragem do milénio teve um enorme impacto cultural, enfatizando valores humanos, identitários e de espécie nos mais vários produtos que foram produzidos entre 1998 e 2003. Por outro lado, em 2001 dá-se não apenas o ataque às Torres Gémeas, mas ocorre também o estouro da bolha financeira Dot.Com. Estes dois eventos que se deveriam começar a desvanecer no final da década, são rapidamente ultrapassados em 2007/2008 com o eclodir de uma Crise Económica de efeitos mundiais, que iria para além da Depressão de 1929, a responsável pela primeira Época Dourada dos super-heróis.


No fundo, a época dourada de super-heróis que atravessamos no meio audiovisual, e que nos oferece infinitos mundos de fantasia, realidades alternativas em que a estabilidade é a constante, onde o impacto e o choque nunca alteram as condições de vida de cada um dos intervenientes, servem de bunkers mentais, refúgios projetados, a uma sociedade que vive na eminência do constante desmoronamento das suas realidades exteriores. O entretenimento, tal como Pascal o definiu, é assim a base que serve ao homem para se afastar do Pensamento de Si.

abril 04, 2013

"Civil War", extenso e desaproveitado

Finalmente acabei de ler um dos arcos narrativos da Marvel mais badalados da última década, Civil War, e um dos maiores, espalhado por mais de 100 livros e 3000 páginas. Já não lia comics com esta continuidade desde os anos 1990, e se o fiz agora novamente, deve-se essencialmente ao iPad e ao acesso online. Se existe conteúdo para o qual o iPad parece ter sido desenhado propositadamente, é o dos comics. O brilho e o tamanho do ecrã, e a usabilidade deste, tornaram-no num perfeito leitor de comics. A PSP tinha um ecrã demasiado pequeno, o Kindle era monocromático, o iPad abriu uma nova janela para o meu passado!

Civil War (2006-2007), atravessa mais de 100 livros, num total de mais de 3000 páginas

Civil War tornou-se um arco de peso capaz de saltar as fronteiras dos comics, dado que o assunto de fundo tratado tem uma relação directa com o momento da história em que vivemos. É inevitável comparar o fundamento de todo o conflito, o Superhuman Registration Act (registo governamental de todos os que detém super-poderes) com toda a paranóia e nova legislação que atenta contra a liberdade individual nos EUA, o Patriot Act, criada na sequência dos ataques do 11 de Setembro 2001. Se logo após o 11/9 a comunidade aceitou que o governo usasse de todos os poderes para garantir a segurança, com o passar dos anos começou a questionar-se sobre o que é que o governo andava a fazer com tanto poder conferido. Com Guatanamo a manter pessoas indefenidamente prisioneiras sem acusação, com a invasão do Iraque sem fundamento, com milhares de deportações dos EUA por meras razões raciais/religiosas. A ideia de proteção a qualquer custo começou a deixar de ter o sentido que aparentemente parecia ter. Deste modo a Marvel aproveitou todo este sentimento generalizado na comunidade para lançar o arco da Civil War em 2006 que se estendeu até 2007.


Civil War centra-se num conflito extremamente simples, o choque entre dois grupos de heróis, um por e outro contra o registo de todos perante o governo. Os problemas começam com as implicações da descoberta de identidades que isso tem sobre a vida de cada um, o que vai servir de mote para discutir muito mais sobre a informação e controlo da informação em sociedade e pelos governos. Do lado por, o grupo é liderado pelo Homem de Ferro, do lado contra, é liderado pelo Capitão América. Neste evento acaba por ser envolvido praticamente todo o universo de heróis Marvel, mesmo alguns que tinham entretanto desaparecido, regressam ao mundo dos vivos para dar o corpo e surpreender. Assim como vários heróis acabam por perder a vida ao longo desta saga, servindo assim a dramatização de tudo o que vai acontecendo. Em termos de nós principais, estes estão centrados sobre um grupo mais reduzido de personagens, num primeiro plano temos Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha e Reed Richards (Senhor Fantástico). Num segundo plano temos ainda Pantera Negra, Thunderbolts, os Novos Vingadores, Namor e os Atlantes e Wolverine.


Julgo que o primeiro plano funciona muito bem, mas o segundo é um mero aproveitamento narrativo para expandir o tema e o tornar maior do que aquilo que seria necessário, e assim também garantir mais história e mais vendas. Nesse sentido Civil War acaba por perder face a outros eventos do passado que conheço bem - Secret Wars - nomeadamente por se perder entre tantas ramificações. Um dos maiores problemas apontados pelos fãs foi exactamente a desarticulação do arco geral. Muitos dos livros que iam surgindo pareciam falhar na coerência com os eventos centrais, tanto em termos cronológicos como em termos de causalidade. Eu senti isso também mas era algo quase inevitável tendo em conta a dimensão, distribuição e a duração do arco. É preciso ter em conta que estão aqui em jogo várias equipas de escritores e desenhistas que normalmente trabalham nos seus projectos, seguindo as suas linhas temporais.

Aliás esse foi talvez o pior sentimento produzido pela série, as diferenças estéticas tanto na arte visual como na escrita. As abordagens são tão diferentes, e o modo como cada um toca certas cordas emocionais é muito distinta. Desse modo acaba por ser muito natural que estejamos a ler um dos livros, e adoremos pelos diálogos, e logo a seguir noutro apenas nos detanhamos sobre a arte gráfica.

Por outro lado passados mais de 6 anos sobre o lançamento de Civil War o seu mote continua imensamente atual. Aliás é muito relevante que a Marvel tenha ousado entrar numa discussão tão política e tão atual. A série começa por nos confrontar com discussões, por vezes profundas sobre o que está em causa. Nomeadamente as discussões sobre a luta pela Lei e a luta pelos Princípios é o melhor. A justificação para a tomada de posição a favor de Reed Richards é também muito boa. Mas depois o guião acaba por se perder na segunda parte, a luta mantém-se porque tem de se manter, e o conflito acaba porque tem de haver um fechamento. Esta série tinha potencial para se tornar em algo verdadeiramente inesquecível, algo capaz de elevar as qualidades humanas, mas acaba por falhar tudo isso. Claramente o seu escritor, Mark Millar, não consegue dar respostas, limita demasiado o alcance daquilo que está em causa, talvez com receio da falta de bagagem do seu público alvo. Falhou, porque tendo sido capaz de lançar-se numa jornada destas deveria ter sido capaz de a assumir até ao final.


Para quem quiser ler, não aconselho a leitura de todos os cento e tal livros, aconselho apenas os 7 livros principais, que podem ser encontrados num único tomo (TPB) Civil War. Se quiserem mais leiam também The Road to Civil War que dá detalhes sobre muitas das questões discutidas ao longo dos 7 livros. Para os fãs de cada personagem existem vários TPB que reúnem as histórias de cada herói relacionadas com o evento.