Mostrar mensagens com a etiqueta multimedia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta multimedia. Mostrar todas as mensagens

março 14, 2020

COVID-19: comunicação de ciência

Nos últimos dias, quase todos vimos o diagrama animado "Flatten the Curve" (alisamento da curva), que relaciona o número de doentes com COVID-19 com o capacidade de resposta dos hospitais em cada momento. A razão porque o temos visto tantas vezes tem mais que ver com comunicação de ciência do que com ciência. Ou seja, o gráfico foi um dos melhores elementos de comunicação multimédia elaborados nas últimas semanas para o combate preventivo requerido por médicos e investigadores.
Gráfico 1, baseado numa proposta preventiva para evitar o que aconteceu em Itália e Wuhan

O diagrama surgiu pela primeira vez no dia 8 de março na revista online, The SpinOff, da Nova Zelândia, num artigo escrito pela professora de microbiologia Siouxsie Wiles, no qual dava inicialmente conta do surto na cidade de Wuhan, recorrendo a gráficos científicos, como os abaixo. Após essa discussão, propunha uma resposta comunitária, baseada num artigo de Anderson et a. (2020), publicado na Lancet, mas também em práticas que vêm sendo propostas há décadas, e que consistia na ideia de todos contribuirem, aumentando os cuidados de higiene, para assim se conseguir baixar ou alisar a curva de casos, para que os hospitais conseguissem dar resposta a todos os doentes graves em tempo útil. Essa solução foi então trabalhada pelo ilustrador Toby Morris, acabando no gráfico que hoje todos conhecemos como "Flatten the Curve" (no topo).
Gráfico com os dados do surto do vírus em Wuhan. Para consumo de especialistas.
Gráfico criado a partir das ações de controlo do surto em Itália. Para consumo de especialistas. [Fonte]

Da análise do diagrama animado e comparativo com os gráficos criados exclusivamente por investigadores para consumo da comunidade científica, temos vários pontos a salientar:
  1. Simplicidade: diminuição da quantidade de informação presente em redor das curvas do gráfico.
  2. Movimento: a animação torna realista o efeito no tempo da mensagem, produzindo evidência e eficácia comunicativa.
  3. Forma gráfica: uso de traço e cor cartoonescos, criam proximidade e reconhecimento de formas, levando a crer que é algo que podemos compreender.
  4. Empatia - Por fim, não se limitaram a apresentar as duas curvas, introduzirem dois personagens que servem para dar indicações, mas mais do que isso, servem para criar empatia com algo que é profundamente abstracto, os diagramas e números.
O gráfico tornou-se representativo das políticas de ataque e prevenção sendo hoje usado como ilustração das mesmas pela Wikipedia, na página que reune toda a informação sobre a pandemia. Entretanto, como surgiram vários questionamentos sobre esta resposta preventiva, nomeadamente sobre a intensidade de ação e efeitos no tempo, Wiles voltou a trabalhar com Morris, agora baseados nos modelos usados por Singapura, Coreia do Sul e defendidos por movimentos internacionais como #StayTheFuckHome. Para tal, adaptaram o primeiro gráfico para ilustrar o impacto de diferentes medidas no tempo, intitulado Stop The Spread (ver abaixo), que foi publicado hoje no TheSpinOff.
Gráfico 2, baseado em modelos preventivos implementados por Singapura e Coreia do Sul.

fevereiro 10, 2020

Mais um portal aberto pela Realidade Virtual

No passado dia 6 de fevereiro a MBC, uma das principais cadeias de televisão da Coreia do Sul, exibiu o documentário chamado "Eu encontrei-te" ("I Met You") no qual a realidade virtual foi utilizada como ponte comunicativa para "o além". Jang Ji-sung mãe de 4 filhos, perdeu em 2016 a filha Nayeon, na altura com apenas 7 anos, morreu de leucemia. Em 2020, a tecnologia de RV e uma equipa de vários criadores multimedia a trabalhar durante 8 meses, proporcionaram a esta mãe o reencontro com "a filha", num ambiente virtual, uma experiência que a mãe qualificou como "um verdadeiro paraíso". A experiência levanta mais questões do que aquelas a que responde, mas é para lhes tentar responder que trabalhamos todos os dias.
Talvez o mais inquietante de tudo isto surja pelo lado do aproveitamento da cadeia de televisão, que explora de forma brutal e sem qualquer pudor a emocionalidade íntima daquela mãe. Por outro lado, provavelmente sem esta exibição não teria havido meios suficientes para construir a simulação que foi apresentada. A menina, Nayeon, não é apenas realista graficamente, ela movimenta-se e fala como a filha de Ji-sung, e isso exige todo um estudo de comportamento e reconstrução tridimensional demorado, complexo e muito caro.

Trecho de síntese do documentário exibido na MBC (tudo em coreano).

O visionamento da experiência funciona de forma bastante dramática, já que a criança surge de modo bastante realista, e percebemos pela reação da mãe que ela mexe totalmente consigo, sendo depois tudo assistido pelas irmãs e pai, que são aqui exibidos também, acrescendo em tensão dramática. A tecnologia utilizada não se limitou ao visual interativo, foi implementado todo um sistema háptico que permite à mãe tocar e acariciar a filha, e podemos ver como a mãe se queda ali diante da ilusão ligada a esse toque, como se tivesse tido acesso a um mundo ausente, diretamente projetado da sua mente, mas plasmado em algo que se pode ver e tocar, como se o seu mais íntimo desejo se tivesse tornado realidade. Nas palavras da mãe:
"Eu encontrei Nayeon, que me chamou com um sorriso, foi um momento muito curto, mas um momento muito feliz. Acho que tive o sonho que sempre desejei."
Do ponto de vista psicológico, podemos questionar se é uma experiência benéfica. Não sabemos, mas não será pior do que ver e rever fotografias e vídeos, claro que com a diferença de acrescentar a dimensão de agência que cria toda uma nova experiência no repertório de memórias da mãe. Mas será diferente de encontrar uma carta deixada por um familiar que partiu, nunca antes lida? Ou de uma gravação de vídeo que nunca anteriormente vimos? Podemos discutir a relevância de reviver o passado, ou de rememorar nesse passado, mas esse não é um problema da RV. Aqui trata-se de uma experiência de poucos minutos. Claro que se levarmos isto para a ideia de reconstrução de uma persona completa num mundo virtual, com inteligência e capaz de comunicar e reagir a nós, no fundo um ressuscitar virtual de uma pessoa, como foi perspectivado recentemente num episódio de Black Mirror, aí sim, estaremos a entrar em águas desconhecidas...
Do ponto de vista da tecnologia, o que temos aqui é a RV a cumprir o sonho do cinema, segundo André Bazin. Para Bazin, o cinema devia ter-nos dado acesso ao "mito total", o de um "realismo integral, a recriação do mundo à sua imagem, uma imagem na qual não era ponderada a hipótese da liberdade de interpretação do artista numa irreversibilidade do tempo". O cinema não deveria registar apenas a imagem, som e movimento deveria ir além e registar as pessoas, guardá-las, preservá-las, e de cada vez que víssemos o filme poderíamos vê-las, mas poderíamos também com elas interagir, falar e assim criar novas experiências, novas memórias. Mas como ele dizia em 1948, o cinema não tinha ainda sido "inventado", mas parece que estamos cada vez mais perto desse "mito".

outubro 27, 2019

Kevin Kelly e o Elogio da Tecnologia num Mundo Sem Humanos

Este livro — "The Inevitable: Understanding the 12 Technological Forces That Will Shape Our Future" (2016) — tem sido vendido como tecnológico-otimista, mas devia antes ser catalogado como tecnológico-ridículo. Seis anos depois de ter publicado um dos livros mais interessantes sobre tecnologia, "What Technology Wants" (2010), Kelly conseguiu inverter totalmente o pólo para nos oferecer um mero remendo de textos de blog, feito de múltiplas divagações inconsequentes, distorções da realidade e ainda múltiplos erros. Isto não é ingenuidade, como alguns apontaram, isto é puro desleixo e acima de tudo alheamento do mundo, tanto da sua parte como de quem editou o livro.


A melhor forma de perceber a razão da minha crítica dura é ler este excerto abaixo, retirado do capítulo 5, "Accessing":
I live in a complex. Like a lot of my friends, I choose to live in the complex because of the round-the-clock services I can get. The box in my apartment is refreshed four times a day. That means I can leave my refreshables (like clothes) there and have them replenished in a few hours. The complex also has its own Node where hourly packages come in via drones, robo vans, and robo bikes from the local processing center. I tell my device what I need and then it’s in my box (at home or at work) within two hours, often sooner. The Node in the lobby also has an awesome 3-D printing fab that can print just about anything in metal, composite, and tissue. There’s also a pretty good storage room full of appliances and tools. The other day I wanted a turkey fryer; there was one in my box from the Node’s library in a hour. Of course, I don’t need to clean it after I’m done; it just goes back into the box. When my friend was visiting, he decided he wanted to cut his own hair. There were hair clippers in the box in 30 minutes. I also subscribe to a camping gear outfit. Camping gear improves so fast each year, and I use it for only a few weeks or weekends, that I much prefer to get the latest, best, pristine gear in my box. Cameras and computers are the same way. They go obsolete so fast, I prefer to subscribe to the latest, greatest ones. Like a lot of my friends, I subscribe to most of my clothes too. It’s a good deal. I can wear something different each day of the year if I want, and I just toss the clothes into the box at the end of the day. They are cleaned and redistributed, and often altered a “bit to keep people guessing. They even have a great selection of vintage T-shirts that most other companies don’t have. The few special smartshirts I own are chipped-tagged so they come back to me the next day cleaned and pressed.
I subscribe to several food lines. I get fresh produce directly from a farmer nearby, and a line of hot ready-to-eat meals at the door. The Node knows my schedule, my location on my commute, my preferences, so it’s really accurate in timing the delivery. When I want to cook myself, I can get any ingredient or special dish I need. My complex has an arrangement so all the ongoing food and cleaning replenishables appear a day before they are needed in the refrig or cupboard. If I was flush with cash, I’d rent a premium flat, but I got a great deal on my place in the complex because they rent it out anytime I am not there. It’s fine with me since when I return it’s cleaner than I leave it.”
“I have never owned any music, movies, games, books, art, or realie worlds. I just subscribe to Universal Stuff. The arty pictures on my wall keep changing so I don’t take them for granted. I use a special online service that prepares my walls from my collection on Pinterest. My parents subscribe to a museum service that lends them actual historical works of art in rotation, but that is out of my range. These days I am trying out 3-D sculptures that reconfigure themselves each month so you keep noticing them. Even the toys I had as a kid growing up were from Universal. My mom used to say, “You only play with them for a few months—why own them?” So every couple of months they would go into the box and new toys would show up.
Universal is so smart I usually don’t have to wait more than 30 seconds for my ride, even during surges. The car just appears because it knows my schedule and can deduce my plans from my texts, calendar, and calls. I’m trying to save money, so sometimes I’ll double or triple up with others on the way to work. There is plenty of bandwidth so we can all screen. For exercise, I subscribe to several gyms and a bicycle service. I get an up-to-date bike, tuned and cleaned and ready at my departure point. For long-haul travel I like these new personal hover drones. They are hard to get when you need them right now since they are so new, but so much more convenient than commercial jets. As long as I travel to complexes in other cities that have reciprocal services, I don’t need to pack very much since I can get everything—the same things I normally use—from the local Nodes.
My father sometimes asks me if I feel untethered and irresponsible not owning anything. I tell him I feel the opposite: I feel a deep connection to the primeval. I feel like an ancient hunter-gatherer who owns nothing as he wends his way through the complexities of nature, conjuring up a tool just in time for its use and then leaving it behind as he moves on. It is the farmer who needs a barn for his accumulation. The digital native is free to race ahead and explore the unknown. Accessing rather than owning keeps me agile and fresh, ready for whatever is next.
O que acabaram de ler podia bem ser um sonho de Lenine numa noite de 1916, em que veria o futuro em 2116 da sociedade soviética otimizada pela força do trabalho comum, partilhado, suportado pelo poder da tecnologia na produção do bem supremo para todos. O problema aqui não é o Comunismo, é o passar por cima de todos os problemas desse regime, mantendo apenas o lado da teoria e do sonho. Tudo o resto, que tem que ver com aquilo que faz de nós seres humanos, auto-motivados e autónomos, é totalmente ignorado, como foi ignorado durante 70 anos na URSS, e continua a ser ignorado na China.

O que isto põe a nu, é aquilo que estamos cansados de saber, que muitas das pessoas que gravitam no domínio da tecnologia, têm a sua bússola apenas focada na invenção tecnológica, nas possibilidades e impossibilidades da matéria, e ignoram totalmente o humano. Não compreendem que a tecnologia, por muito que afete os humanos, não passa de ferramenta e extensão daquilo que intrinsecamente somos. Que a tecnologia per se não altera, em nada, isso que somos. Que a invenção do Nuclear tanto serviu para providenciar vidas melhores a milhões de humanos, por via das centrais de produção elétrica, como serviu para tirar vidas as milhões de humanos em parcos segundos. Que o machado é fantástico para cortar lenha e providenciar calor, mas é brutalmente ainda mais eficaz no abrir da cabeça uns aos outros.

Isto para não falar do ridículo que é lançar uma prospeção destas sem fundamentar de onde adviria o contributo do sujeito, já que nesta extensa divagação este não produz nada, limita-se a consumir o que dezenas de pessoas continuam a produzir. Ou seja, no limite isto nem sequer se trataria de uma utopia comunista, mas talvez melhor dizer uma utopia monárquica. Ou seja, não há limites para quem se limita a pensar do alto do seu bem-estar o que pode vir a conseguir ainda de melhor para si, quanto ao resto da sociedade, logo se vê. Aliás, repare-se no tamanho ridículo da afirmação feita um pouco à frente:
“The more we benefit from such collaboration, the more open we become to socialized institutions in government. The coercive, soul-smashing system that controls North Korea is dead (outside of North Korea)”
Eu sei que ele escreveu isto antes de Trump ser eleito, mas era preciso Brexit e Trump para compreender aquilo que os negacionistas do Holocausto não param de fazer há décadas? Mas depois é ver como Kelly tanto aponta para a direita como para esquerda, sem saber ao que vem nem vai, veja-se as contradições:
“The increasingly common habit of sharing what you’re thinking (Twitter), what you’re reading (StumbleUpon), your finances (Motley Fool Caps), your everything (Facebook) is becoming a foundation of our culture. Doing it while collaboratively building encyclopedias, news agencies, video archives, and software in groups that span continents, with people you don’t know and whose class is irrelevant—that makes political socialism seem like the logical next step.”
E logo a seguir:
“Instead of a government monopoly distributing mail, let market players like DHL, FedEx, and UPS try it as well. In many cases, a modified market solution worked significantly better. Much of the prosperity in recent decades was gained by unleashing market forces on social problems.”
Repare-se ainda no seguinte:
“is neither the classic communism of centralized planning without private property nor the undiluted selfish chaos of a free market. Instead, it is an emerging design space in which decentralized public coordination can solve problems and create things that neither pure communism nor pure capitalism can.”
Algumas páginas depois
“The shift from hierarchy to networks, from centralized heads to decentralized webs, where sharing is the default, has been the major cultural story of the last three decades”
Confrontando numas páginas mais à frente:
“If one looks hard and honestly, even the supposed paragon of user-generated content—Wikipedia itself—is far from pure bottom-up. In fact, Wikipedia’s open-to-anyone process contains an elite in the back room. The more articles someone edits, the more likely their edits will endure and not be undone, which means that over time veteran editors find it easier to make edits that stick, which means that the process favors those few editors who devote lots of time over many years (..) “These persistent old hands act as a type of management, supplying a thin layer of editorial judgment and continuity to this open ad-hocracy. In fact, this relatively small group of self-appointed editors is why Wikipedia continues to work and grow into its third decade.”
Kelly diz-nos então que nem o capitalismo nem o comunismo são bons, e depois apresenta-nos uma suposta terceira-via, a mistura ambas, mas que no final nos dá o mesmo do regime da URSS, que não era Comunismo, porque o comunismo real só existe em teoria, quando levado à prática transforma-se em algo diferente. Para manter todos a colaborar e a partilhar aceita-se a necessidade de estruturas hierárquicas que impõem a missão e a regulação segundo os seus próprios ideais. Veja-se a recente promoção de Xi Jinping a líder da China vitalício. O coletivo é ótimo e a hierarquia é necessária, desde que sejamos nós a controlar o topo! É muito pobre, mero deslumbramento com as possibilidades do coletivo, que já tantas vezes destruiu comunidades, sociedades e nações inteiras.


Noutro registo completamente diferente, Kelly apresenta-se como um verdadeiro seguidor da sociedade das métricas e quantificações. Ao longo de todo o livro, são continuamente contabilizadas as horas, os minutos, as produções, as partilhas, os comentários, dos milhões e milhões de utilizadores. Tudo isso serve para lançar supostas teorias sobre o futuro, o problema é que para se conseguirem ler corretamente esses números, não bastam os números, é preciso conhecer o humano, como ele funciona e se comporta, e isso está sempre ausente em toda esta discussão.
“Every 12 months we produce 8 million new songs, 2 million new books, 16,000 new films, 30 billion blog posts, 182 billion tweets, 400,000 new products. (..)  
It is 10 times easier today to make a simple video than 10 years ago. It is a hundred times easier to create a small mechanical part and make it real than a century ago. It is a thousand times easier today to write and publish a book than a thousand years ago. (..)
if you track the number of songs being written every year, there are millions and millions. We’re on a curve where basically everybody in the world will have written a book or a song or made a video, on average (..)  
YouTube videos are viewed more than 12 billion times in a single month. The most viewed videos have been watched several billion times each, more than any blockbuster movie. More than 100 million short video clips with very small audiences are shared to the net every day. Judged merely by volume and the amount of attention the videos collectively garner, these clips are now the center of our culture.”
Não entrando sequer naquele "todo o mundo", que deixa fora uma gigantesca divisão digital, eu pergunto, no caso do texto, como relacionar os triliões de carácteres escritos por milhões de nós no Facebook, Twitter ou Instagram com a meia-dúzia de livros que permanecem para a posteridade em cada ano? Em que que é que diferem as câmaras e computadores para filmar e montar um filme e colocá-lo na nuvem, e as canetas ou computadores para escrever, dos filmes e livros que valem a pena manter vivos na nossa memória? Não é com certeza a tecnologia, essa é irrelevante, não será antes a capacidade de cada humano de criar usando essas ferramentas, dependente do talento e de anos e anos de investimento e esforço na aprendizagem da literacia da arte? Mas isso é irrelevante para alguém que pouco à frente, quando fala em literacia é apenas para definir técnicas de citação, de cortar e copiar, e acaba com esta brilhante frase:
“These tools, more than just reading, are the foundations of literacy.” 
Toda a forma como vai falando sobre política, comunicação, media, atrevendo-se até a falar de identidade, é atroz pela simples razão de que consegue apenas ver um lado da equação, o da tecnologia, esquecendo que para que a tecnologia funcione são precisos humanos que a adoptem. Mas isto é algo enraizado, veja-se a discussão sobre o futuro da Realidade Virtual, dá pena ver como tendo Kelly estado lá, na génese em 1989, passados 30 anos pouco aprendeu sobre a mesma, ou melhor, sobre os humanos que supostamente a deveriam usar. Porque se a tecnologia é teoricamente fantástica, o tempo e o uso mostrou que os humanos não estão interessados nela porque existem uma quantidade de barreiras psicológicas ao seu uso. No entanto gasta páginas e páginas a discutir o que a VR nos vai trazer, fala do hipertexto e hipermedia como se estivessem para chegar, parecendo amiúde estar a escrever em 1995. Talvez isto não seja propriamente alheio à vida pessoal de Kelly, alguém que passa o tempo a teorizar sobre o futuro tecnológico, mas depois se regozija por não usar nenhuma dessas tecnologias. Diz-nos que o seu trabalho é experimentar doses mínimas para contar aos outros, como se meras horas de contacto fossem representantes do uso real. No caso dos videojogos que nos traz (ex. Red Dead Redemption 2) nem sequer os experimenta, simplesmente vê os outros a jogar. Dá para rir, se não tiverem pago pelo livro.

Por outro lado, Kelly apresenta um problema clássico, a falta de estudo e análise do trabalho feito por tantos outros antes de si. Não que ele não cite outros, mas a grande maioria não vai além de sites, notícias e wikis. Veja-se o exemplo: ao longo do livro Kelly continuamente afirma o mundo como "líquido", uma característica que fundamenta na tecnologia de digitalização e gestão do produto dessa, do como tudo isso altera o nosso bem-estar. Contudo, não existe uma única referência a Zygmunt Bauman, o criador do conceito "modernidade líquida". Não sei se por desconhecimento, por incompreensão ou simplesmente por vontade de omissão, mas se tivesse parado para confrontar a sua tecnologia líquida com o humano líquido de Bauman, Kelly teria compreendido muitos dos erros que cometeu ao longo de todo este livro.

O mesmo pode ser dito da total alucinação que acontece quando chegamos ao capítulo 10, "Tracking", em que Kelly escreve o seguinte:
Ubiquitous surveillance is inevitable. Since we cannot stop the system from tracking, we can only make the relationships more symmetrical.”
Não bastava a barbaridade de afirmar que a vigilância total é inevitável, como vai mais longe, e propõe como modo de combater os seus problemas, que todos saibamos o mesmo uns sobre os outros, incluindo empresas e estados. Vamos esquecer a encriptação porque as passwords não protegem nada, e vamos ser todos transparentes. Isto é tão insano que nem sei por onde começar, porque isto representa um enorme potencial de problemas para a identidade humana. Se eliminarmos os redutos em que a identidade pode crescer e florescer na sua privacidade individual, teremos apenas um amontoado de massa homogénea, que como sabemos tenderá para a frustração. Mas isto nem sequer é o maior problema, o que poderiam fazer aqueles que nos querem mal tendo acesso a todo esse conhecimento, não apenas nós indivíduos, mas a empresas e a estados? Kelly sente-se muito orgulhoso por defender Snowden e depois baseia quase todas as suas conclusões no bom funcionamento da impossibilidade de anonimato no Facebook, como se isso fosse uma panaceia para tudo. Como se as empresas em vez de competir entre elas colaborassem e fossem amigas, dispostas a perder umas para outras, mesmo que isso implicasse perder acionistas ou ter de despedir trabalhadores. Como se as pessoas se sentissem felizes por ver os outros, na mesma condição que eles, a ganhar mais porque são primos ou enteados. No fundo, como se o mundo fosse um mero sistema computacional, e as regras societais apenas algoritmos, bastando aperfeiçoar os algoritmos e tornar o código aberto, para eliminar todos os bugs, todos os problemas.

setembro 29, 2019

Diálogo: A Arte da Ação Verbal

Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele“Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.” 



É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .

Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:


1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee

Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.
“I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.”
“To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”

O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]

2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO

“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.” 

2.1. Exposition 
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.”
“Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”
2.2. Characterization
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”

Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”
2.3. Action 
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”


3 – EXPRESSIVIDADE

O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.

3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”
Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.

The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”

Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:

Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak.
Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
3.2 Forma
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”

3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”
Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio

O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.

Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.

fevereiro 27, 2019

Multimedia não é apenas uma questão de múltiplos media

O livro de Cranny-Francis, apesar de se intitular Multimedia, é mais um tratado sobre multimodalidade do ponto de vista da semiótica cultural, trabalhando a criação de sentido por cada um dos modos — texto, som e vídeo. É claramente um trabalho no campo da comunicação, mas que não consegue chegar ao design de comunicação apesar de apresentar intenções de tal. Existem demasiadas falhas e problemas, como veremos a seguir. A autora opta por dividir a multimodalidade em cinco categorias — "writing, visuals, sound, movement, space" — e dedica quase todo o livro a dissertar sobre a construção de textos e contextos em cada uma dessas.


Apesar da discussão por vezes rica, sente-se falta de concretização, tanto na definição de um quadro ou modelo de trabalho geral para a multimedia, como na relação entre teoria e prática. Cranny-Francis dedica a maior parte do livro a falar sobre cada um dos modos em particular, aprofundando as particularidades culturais, muito agarrada a teorizações da realidade, pouco suportadas em objetos e exemplos efetivos. Dos 7 capítulos, 5 são dedicados a uma  desconstrução em profundidade de cada modo, com um sexto dedicado ao corpo e ao virtual, e apenas o último — "Synasthesia" — dedicado à inter-relação entre os modos. Cranny-Francis limita-se assim a dissertar sobre os modos individualmente, praticamente esquecendo a integração dos mesmos. Isso é visível desde logo nas categorias de criação de sentido definidas por ela — "writing, visuals, sound, movement, space" —, não existe nada sobre o modo como os vários meios funcionam quando integrados, nem tão pouco sobre a interatividade proporcionada pelas novas tecnologias do digital, e sobre as possibilidades de colaboração e participação na criação de sentidos. Fazem falta livros que se detenham sobre a criação de sentido na multimedia, mas falar desta sem falar da essência do que distingue a multimédia de outros media multimodais, como por exemplo o cinema ou a televisão é um ato falhado.

Por outro lado, a argumentação nas categorias menos clássicas, como o "movimento" e o "espaço", deixam muito a desejar. Cranny-Francis passa completamente ao lado da animação e do motion design, tecendo críticas à falta de movimento na web, como se a web fosse o único suporte da multimédia, e como se a linguagem da animação não estivesse presente na generalidade das interfaces e dos conteúdos que se produzem. Já na questão do espaço, sem entrar por questões de 3D e acesso em tempo-real ao mesmo, não passa de um refinamento das questões visuais. Em parte, podemos dizer que Cranny-Francis limita o seu discurso ao seguir o trabalho de Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, especialistas em semiótica e linguística, com trabalho relevante no campo do texto, que nos últimos anos procuraram traduzir esse trabalho para o campo multimodal, mas que diga-se com muito pouco sucesso, desde logo porque deixam de fora toda a panóplia de trabalho desenvolvido nos últimos 60 anos pelos estudos fílmicos e nos últimos 30 anos pelos estudos da multimédia.

No último capítulo, onde supostamente deveria aparecer algum quadro de trabalho para a multimedia, que pudesse como diz Cranny-Francis "servir os designers multimedia", o que temos é uma discussão sobre a necessidade de uma nova semiótica, que nasce a partir do conceito de remediação que já vem de Bolter. Cranny-Francis limita-se depois a apresentar uma espécie de "matrizes de influência" que nada dizem, limitando-se a repetir algumas ideias sobre identidade e públicos que já conhecemos de outros media. Para agravar tudo isto, essas matrizes são apresentadas sem elencar qualquer método seguido ou estudo realizado, nem dados que suportem o seu desenho.

Posto tudo isto, não admira que só agora me tivesse dado conta da existência deste livro, tendo este sido publicado já em 2005. Apesar de publicado pela SAGE, as citações e referências são residuais. E 2005, apesar de estarmos no mundo da tecnologia, não serve de desculpa, pois se requisitei o livro na biblioteca, foi porque estou a trabalhar definições da área, para as quais tenho estado a consultar múltiplos textos bem anteriores.

dezembro 12, 2018

Multimedia 25 anos [1993 - 2018]

1993 foi há 25 anos e foi um ano revolucionário na afirmação das imagens geradas por computador (CGI), assim como no campo da afirmação da Multimedia, tanto na sua aplicação em termos visuais no cinema, por via dos VFx 3D, como na afirmação dos modos expressivos dos videojogos. Foram lançadas, neste mesmo ano, três obras fundamentais para esta viragem —"Myst", "Doom" e "Jurassic Park"— que marcariam um antes e um depois nas capacidades tecnológicas e potencialidades criativas. A estes juntavam-se ainda, neste mesmo ano, o lançamento do primeiro browser de internet gráfico, a primeira revista sobre avanços multimédia, e a primeira licenciatura nacional na área.
"Myst" (1993) de Rand Miller e Robyn Miller (documentário online)
"Doom" (1993) de John Carmack e John Romero
"Jurassic Park" (1993) de Steven Spielberg
"Ao tomar a decisão de não utilizar o stop-motion para utilizar o CGI na realização de Jurassic Park, Spielberg dava um verdadeiro salto em frente nos efeitos visuais. Uma decisão bastante complicada, uma vez que já estavam fabricados imensos modelos, Phil Tippett já tinha começado a fazer experiências com a sua técnica de Go-motion. Ou seja, quando a produção de Jurassic Park começou, Spielberg não tinha previsto a utilização de qualquer personagem CGI" (Zagalo, 2009:101
(..)
Esta mudança marca o início de uma nova busca pelo realismo no cinema a que Prince (1996) chama de “realismo perceptivo”, um realismo que “estruturalmente corresponde à experiência audiovisual de um espaço tridimensional”. Já no caso dos videojogos, Myst representa uma marca similar à de "Jurassic Park". A audiência percebeu que se os gráficos de computador poderiam permitir a representação de uma espécie “desconhecida”, poderiam permitir a representação de um mundo completo, misterioso e desconhecido, do passado ou do futuro (Pierson, 2002). O CGI era visto como uma máquina do tempo." (Zagalo, 2009:235)
Esta viragem e afirmação não se fez apenas por via de filmes e jogos, mas foi também impulsionada por vários outros atores dos quais destaco, no plano internacional, o surgimento do primeiro browser gráfico, o "Mosaic", responsável pela total revolução no acesso e compreensão daquilo que representava a internet, e em particular a web; o surgimento do pacote de software "After Effects" adquirido mais tarde pela Adobe e que se transformaria no principal editor de Efeitos Visuais; o nascimento da revista "Wired" pelas mãos de Nicholas Negroponte, na altura diretor do MIT Media Lab; e no plano nacional, o lançamento da primeira licenciatura em multimédia do país, o curso "Novas Tecnologias da Comunicação" na Universidade de Aveiro.
"Mosaic 1.0" do National Center for Supercomputing Applications, Setembro 1993
"After Effects 1.0", Janeiro 1993
Primeiro número da revista "Wired", Novembro 1993
Panfleto de lançamento do curso "Novas Tecnologias da Comunicação" na Universidade de Aveiro, Outubro 1993. O curso iniciou este mês de setembro as comemorações que se vão prolongar até ao final do ano lectivo.

No campo das efemeridades, mas parte das experiências a que vou ainda recorrendo como memórias de referência, deixo mais alguns destaques: um dos mais interessantes filmes no campo do Design de Narrativa, "Groundhog Day", já no campo da História do Cinema, internacional, tivemos "Schindler's List" de Steven Spielberg, e a nível nacional, o filme mais relevante de Manoel de Oliveira, "Vale Abraão". Foi ainda o ano de Toni Morrison receber o Nobel da Literatura ("The Bluest Eyes" (1970) e "Beloved" (1987)) escritora que gosto de comparar com José Saramago.

"Groundhog Day" (1993) cartaz de celebração dos 25 anos com regresso às salas de cinema.
"Schindler's List" (1993) cartaz de celebração dos 25 anos com regresso às salas de cinema.
"Vale Abraão" (1993) de Manoel de Oliveira, premiado em 1993 nos festivais internacionais de cinema de São Paulo e Tóquio. Ao contrário dos dois filmes americanos, acima, e apesar de ser um dos filmes mais importantes da filmografia nacional, não tem prevista qualquer reposição em sala. Assim torna-se difícil fazer valer a nossa cultura.

agosto 12, 2017

All That Fall (1956)

Cheguei até “All That Fall” através de Elena Ferrante, que se socorre desta peça no segundo volume da saga “A Amiga Genial” para lançar uma discussão existencial entre Lenu, Lila e Nino. Ferrante fixa a conversa em redor de um dos múltiplos pontos discutidos na peça, e apesar de ser algo fugaz é provavelmente uma das partes mais relevantes da peça, já que se liga diretamente ao modo como Beckett desejava que a peça fosse experienciada.


“All That Fall” foi criada como audio drama, uma peça dramática para rádio. Vários foram os criadores que procuraram Beckett para realizar adaptações para palco, entre os quais Ingmar Bergman e Laurence Olivier, mas sempre, ou quase sempre, recusadas por Beckett. Dizia ele:
“Even the reduced visual dimension it will receive from the simplest and most static of readings (..) will be destructive of whatever quality it may have and which depends on the whole thing's coming out of the dark." (fonte)
Ou seja, “All That Fall” baseia a criação e comunicação da experiência na forma do medium. Um dos personagens é cego, daí que toda a peça seja construída para o sentido da audição por meio dos diálogos, música e efeitos sonoros. Cabe ao recetor recriar mentalmente os cenários, espaços e cores. E aqui chego ao destaque realizado por Ferrante, e que me parece ser aquele que verdadeiramente justifica a obstinação de Beckett quanto à não adaptação para palco.
“Mr. Rooney: (..) No, I cannot be said to be well. But I am no worse. Indeed, I am better than I was. The loss of my sight was a great fillip. If I could go deaf and dumb I think I might pant on to be a hundred”, excerto de “All that Fall” de Beckett
“Dan Rooney, she said, is blind but he’s not bitter about it, because he believes that life is better without sight, and in fact he wonders whether, if one became deaf and mute, life would not be still more life, life without anything but life.” excerto de “The Story of a New Name” de Elena Ferrante
O velho e eterno dilema dos sentidos, tão discutido por Sócrates e Platão, sobre o modo como estes deturpam a realidade que nos chega, impossibilitando-nos de aceder à pura verdade. A realidade não é possível através do modo sensível, dizia Platão, tendo por isso defendido a erradicação das artes da República. A elaboração de Ferrante é distinta, já que procura um enaltecer da desistência existencialista da realidade perceptiva, ou seja, uma fuga às dores e obstáculos que a vida nos vai colocando na frente. Já Beckett pelo contrário está mais preocupado em encontrar distintas possibilidades de aceder ao belo, servindo este diálogo num extremar dessa busca.

A peça tem sido bastante trabalhada em ambiente escolar dada a sua imensa expressividade, nomeadamente simbólica. Deixo aqui uma ligação que vale a pena explorar para quem pretenda trabalhar a peça nesses ambientes. A peça pode ser ouvida no YouTube, embora o som não esteja com a melhor qualidade, e por isso pode ser também lida em português online.

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

março 04, 2017

Media Lab, formalismo vs. criatividade

MIT e Media Lab são hoje duas marcas da ciência. A primeira, uma Universidade em Boston, a segunda, um grande centro de investigação dessa universidade, pioneiro nos estudos que cruzam Arte e Ciência. Sendo Joi Ito o atual diretor desse mesmo Media Lab, faz de “Whiplash: How to Survive Our Faster Future” (2016) um livro obrigatório para quem quer que trabalhe no domínio. Contudo, e tendo em conta as expetativas, tenho de dizer que ficaram muito longe de se cumprir.


Joi Ito lidera o Media Lab desde 2011 mas está longe de ser uma pessoa consensual no cargo que ocupa, desde logo porque não é doutorado, tal como não é mestre, já que nem sequer licenciado é. Isto não deve ser por si só um indicador de competência, mas ser líder de um dos laboratórios de investigação mais avançados, no qual trabalham algumas das mentes mais educadas e brilhantes do planeta dá que pensar. Mas se Ito é o atual diretor deve-o a Nicholas Negroponte, o fundador do Media Lab nos anos 1980, e o seu mais carismático líder em toda a sua história. Foi ele, pessoalmente, que tudo fez para o colocar na direção. Porquê?

Grupos de Investigação do Media Lab

As razões essenciais prendem-se com a essência filosófica do Media Lab: fazer tudo aquilo que ainda ninguém fez. E não estou a falar de ter líderes sem educação formal, mas de procurar nestes líderes, diferentes visões do mundo que sirvam o objetivo de fazer diferente. Ou seja, encarregar a direção a mais um doutorado brilhante, poderia ser bom ou mau, contudo encarregar a alguém fora do sistema, habituado a edificar-se a si mesmo e a tudo o que o rodeia, poderia à partida potenciar todo um mundo de diferença e inovação, porque traria consigo formas diferentes de estar na vida.

Tenho a dizer que concordo com Negroponte, porque concordo com esta visão de que alguém capaz de vingar e chegar ao topo sem os alicerces da educação formal, só está ao alcance de alguém muito combativo, resiliente e criativo. Aliás, Ito enquadra-se na categoria do típico aluno brilhante que nunca se encaixou na formatação escolar, entrou em três licenciaturas diferentes, mas nunca se sentiu realizado e por isso desistiu de todas. Um perfil que conhecemos, e que tem como exemplo próximo Steve Jobs.

Se estas histórias fazem as delícias de muitos de nós, que vemos nestas pessoas forças da natureza, capazes de muito daquilo que nós nem imaginar conseguimos; como todas as restantes histórias, mais comuns e banais, possuem também lados menos bons. Porque ser-se muito bom em algo não pode significar ser-se bom em tudo. E assim se Steve Jobs foi fabuloso na criação e liderança de inovação da Apple, e Joi Ito foi um grande ativista de causas da sociedade de informação que o fez chegar à liderança do Media Labs, isso não fez deles grandes cientistas. O que podemos dizer de ambos, mentes enormemente criativas, sedentas de conhecimento, imparáveis na persecução de marcar a diferença, é que funcionam melhor na condução e na transmissão de conhecimento por exemplo. Jobs nunca escreveu um livro, escreveram muitos sobre ele. Ito escreveu este, e não foi sozinho, trabalhou com Jeff Howe, especialista em escrita jornalística, mas disse muito pouco, disse muito menos do que tudo aquilo que a sua visão e liderança representam.

Ou seja, a leitura de “Whiplash”, para quem não conheça o Media Lab, ou não esteja a par da história e cultura do domínio da Interação Humano-Computador, pode até contribuir como introdução às atuais abordagens dos laboratórios que trabalham na área. Contudo, para quem trabalha na área, acaba sendo uma leitura triste, porque nada de novo se diz, quando tanto se esperava de alguém que ocupa o cargo que ocupa, e tem as capacidades que tem. Soa muito curto o que está no papel, soa distante, não colam as ideais aqui plasmadas com o verdadeiro potencial de quem as proclama. E na verdade, talvez nada disto nos deva surpreender. Ito nunca se encaixou num sistema de ensino formal, Ito nunca conseguiu compreender a razão do funcionamento de um sistema com tais características, talvez porque o modo como vê o mundo seja tão diferente que acaba por o condicionar quando este tenta fazer o caminho inverso, ou seja tornar-se o professor.

outubro 07, 2016

A glória de Unity, e sem programação

Demorou alguns anos, mas podemos agora dizer que 2016 ficará como o ano de coroação do Unity enquanto ferramenta de desenvolvimento de videojogos. Isto é relevante pelo modo como democratiza o processo de criação de videojogos, mas não se fica por aqui, alguns dos jogos que marcam este ano, não só recorreram ao Unity, como recorreram ao seu plugin Playmaker.




Se olharmos à lista dos 2016 Unity Award encontramos nela: Firewatch (Campo Santo); Inside (Playdead); Superhot (Super Hot Team); Virginia (Variable State); Oxenfree (Night School Studio). Tudo jogos criados por pequenos estúdios, que apesar disso foram distribuídos em multiplataforma e conseguiram enorme sucesso, junto da crítica e público internacional.

Todos aqueles que já trabalham, ou procuram iniciar-se, no Unity sabem que as linguagens de referência são o C# e o UnityScript (que usa uma sintaxe semelhante ao Javascript). O C# já tinha sido eleito pelo XNA, tendo aí começado a sua introdução na comunidade de desenvolvimento de videojogos, com o surgimento do Unity e o suporte da mesma, foi-se tornando na linguagem de partida para quem trabalha na produção de conteúdos multimédia, nomeadamente pequenas equipas de criação de jogos.

E é aqui que surge um novo dado ainda mais interessante, o Playmaker. Um plugin criado em 2011 que permite desenvolver toda a componente de authoring multimédia, dentro do Unity, sem recurso a qualquer programação. O Playmaker permite dar instruções, criar acessos interativos, gerar comunicação entre objetos, tal como se de uma linguagem de programação se tratasse, mas apenas por meio de caixas interconectadas na forma de fluxograma, pura programação visual. E o mais impressionante é que o consegue juntando dois atributos que nestes casos dificilmente navegam juntos, facilidade e flexibilidade, a prová-lo temos dois dos jogos acima elencados, que foram desenvolvidos com recurso ao Playmaker: Inside (Playdead) e Virginia (Variable State).

O uso do Unity com o Playmaker recorda-nos inevitavelmente o defunto Virtools, uma ferramenta que gerou imensa expectativa, mas que nunca conseguiu afirmar-se, tendo contudo apontado o caminho. Depois disso o Flash ainda tentou criar um modo 3d, e outras ferramentas foram surgindo aqui e ali. Diga-se que o Unity não está completamente isolado neste campo, desde o fim do Flash e o surgimento em força do HTML5, foram muitas as ferramentas a surgir no mercado com vontade de ocupar o lugar deixado em aberto pela Adobe. Contudo o desenvolvimento em HTML5 e WebGL obriga a entrar no mundo menos estável e demasiado aberto do Javascript, tornando-o menos apetecível para quem trabalha com plataformas de authoring, que normalmente busca ambientes delimitados e facilmente reconhecíveis, no sentido de eliminar as preocupações com a tecnologia para se poder concentrar nos conteúdos.

Deste modo podemos dizer que até ao momento nada conseguiu chegar ao nível de aprimoramento e amplitude do motor de Unity, que juntamente com o Playmaker acaba por assim criar, talvez, uma das ferramentas mais acessíveis e poderosas de sempre no campo do authoring multimédia.


Mais info:
Tutoriais de Playmaker