Mostrar mensagens com a etiqueta natureza. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta natureza. Mostrar todas as mensagens

maio 12, 2022

O Instinto Humano

Miller passou as últimas décadas a defender a ciência por detrás da teoria da evolução em tribunais, apresentando argumentação contra os movimentos de criacionistas e defensores do design inteligente. Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a evolução, nomeadamente fique reticente quando ouve que “tudo não passa de uma teoria”, Miller faz aqui um bom trabalho de desmistificação, apresentando evidências, ao nível do DNA, do processo evolutivo da vida na Terra. Mas Miller não escreveu “The Human Instinct”(2018) para explicar o suporte existente à teoria de Darwin, o seu objetivo é bastante mais vasto. A questão central aqui é a de saber se o evolucionismo por ter morto Deus, como disse Nietzsche, nos deixou realmente órfãos e entregues ao niilismo, ou se podemos encontrar no próprio processo evolucionário algo mais.

março 08, 2020

Da Natureza das Coisas

De Rerum Natura” é a obra-prima do poeta-filósofo Tito Lucrécio Caro (94-55 a.C). Se quiserem saber mais sobre a história e relevância deste texto que quase se perdeu nos meandros das parcas bibliotecas da Idade Média, aconselho vivamente a leitura de “The Swerve: How the World Became Modern” (2011) de Stephen Greenblatt. Mas se foi por meio de Greenblatt que me iniciei na leitura de Lucrécio, a quem agradeço, foi por meio da belíssima tradução de Agostinho da Silva (1962), para prosa em português, que cheguei ao conhecimento das palavras e pensamento de Lucrécio. Dizer ainda que se a obra se apresenta como poema, ele é mais porque é também ensaio, não apenas filosófico, mas também científico, e por isso não admira todo o ardor que Montaigne sentia por Lucrécio, explicando também o facto de se ter passado a designar a obra como poema-didático. Em suma, podemos dizer que a obra de Lucrécio é talvez o primeiro trabalho de sempre de Comunicação de Ciência. Mais do que filosofar, argumentar ou calcular, Lucrécio estava focado em dar a conhecer as ideias dos seus mestres — Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.) — não se tendo poupado em esforços de comunicação, nomeadamente de persuasão, o que explicará o facto de ter sido escrito em verso.
Ilustração de Jennifer Luxton

Para além do impacto desta obra nas ideias dos períodos da Renascença e do Iluminismo, discutido por Greenblatt, é talvez ainda mais importante, porque responsável por esse impacto, o facto de ser o meio que permitiu que o pensamento de Demócrito e Epicuro tivesse chegado até nós. Ambos os pensadores são hoje imensamente reconhecidos no modo como anteciparam uma visão do mundo pós-religião, humanista, centrado no pensamento científico, nomeadamente pelo atomismo e o materialismo. Contudo, a maior parte dos seus escritos perderam-se, tendo restado o trabalho de Lucrécio como portador. Antes de avançar sobre o livro em si, a escrita e estrutura, devo realizar uma breve discussão destas correntes de pensamento, não apenas por serem o núcleo do poema de Lucrécio, mas por serem o núcleo daquilo que hoje assumimos como modo humanista de compreender o mundo que nos rodeia.

Comecemos por compreender que Demócrito estava nas antípodas de muitos dos que se dedicavam a compreender a realidade, entre os quais, Platão e Aristóteles. Para estes últimos, a realidade requeria explicações, sentido e significado. O mundo não poderia simplesmente existir, não se pode ser sem um propósito, uma razão ou uma causa última. Daí que os Deuses nunca tenham abandonado o Olimpo, nem Roma, tendo apenas se monoteisado e aguardado quase dois milénios para que a ciência os começasse a retirar da equação. Vale a pena releitura de “História da Filosofia Ocidental” (1945) de Russell.

Demócrito defendia um mundo constituído por pequenas e indivisíveis partículas, a que deu o nome de átomos. Nestes residiria a componente última e explicativa da realidade. Não adianta procurar além do mundo físico, pelo menos sem antes compreender esse mundo. Neste sentido, Demócrito propõe o materialismo por meio do mecanicismo, questionando: que causas dão origem a cada evento? Se nos centrarmos em saber como acontecem as coisas, como estão interligadas, e compreendermos como a sua interdependência faz o mundo avançar, deixaremos de procurar causas externas sem qualquer sustentação empírica.

Claro que podemos sempre questionar: porquê átomos indivisíveis? E é aqui que Lucrécio faz a sua melhor investida, oferecendo uma argumentação sólida na defesa do atomismo de Demócrito, sustentado no materialismo de Epicuro. Assim, temos que tudo no mundo se desmorona, tudo decai, nem mesmo as pedras mais duras resistem à força da erosão da água e da passagem do tempo. As coisas tendem a misturar-se, tal como acontece com a lama que surge da mistura entre terra com água, que depois nos garante os adobes e tijolos, até que tudo volta a desintegrar-se. No entanto, tudo aquilo que se desintegra tende a dar novamente origem a coisas iguais a si. Existe um ciclo que se mantém inalterado, de decadência e renascimento, que contrasta com a expectável ideia de tudo decair no tempo até ao infinito. Porque não temos um universo constituído por mero caldo de grãos? Para Lucrécio, porque coisas nascem de outras iguais a si, tal qual sementes, as coisas possuem em si determinadas configurações capazes de oferecer futuras e concretas estruturas. São essas configurações últimas, não divisíveis que preservam a ordem da realidade, e permitem que esta se mantenha em pé. De certo modo, Lucrécio antecipava aqui as propriedades químicas, ou aquilo que hoje aceitamos como Tabela Periódica de elementos químicos. Lucrécio discute ainda a necessidade do vazio, ou seja, a existência de espaço entre átomos que garantiria diferentes uniões entre os mesmos e proporcionaria a criação de infinita variação, oferecendo o sólido, mas também o fluído o e o gasoso. Do mesmo modo, oferecia, por via da teoria da declinação (declínio na trajetória dos átomos entre colisões) a impossibilidade da permanência das condições de geração do totalmente igual ou idêntico ao anterior, explicando a incerteza e o livre-arbítrio do elementos, do ser-humano e do universo.

Repare-se como tudo isto suporta o materialismo, que nada tem que ver com as ideias que os antagonistas, na generalidade religiosos, continuam a colar-lhe do hedonismo. Ser materialista, nada tem que ver com o desejo de coisas. O materialismo conduz-se pela simples crença nas coisas enquanto entidades próprias, sem explicações exteriores. Por esta razão o epicurismo defende a procura pela satisfação do prazer, como modo de dar resposta à condição natural dessas coisas. Para o efeito, Lucrécio convoca então o estoicismo, juntando dois sistemas de pensamento, que para muitos parecem inconciliáveis, para criar as bases do que viria a ser o Humanismo (ver “Sapiens” de Harari). Ou seja, o materialismo funciona com base na virtude, o seguimento das leis naturais, que segundo Lucrécio seriam providenciadas por uma Vénus, deusa do Amor, que guia o sentido daquilo que somos enquanto parte da natureza. Buscamos o prazer, não pelo prazer, mas pelo amor pelo outro, para que da nossa semente, nova semente continue aquilo que somos. É esta combinação teórica que permite a Lucrécio tornar a alma material, perecível, defender que depois de morrer nada mais há, deixamos de existir, restando-nos aqueles que ficam, aqueles que deixamos. Lucrécio mata assim o medo da morte que suportava, e suporta ainda, o grande fundamento das religiões no agrilhoar da liberdade do Ser, e prepara o terreno para Darwin.
À esquerda, a edição da Globo de 1962, traduzida por Agostinho da Silva, em prosa. À direita, a edição da Relógio d'Água de 2015, traduzida por Manuel Cerqueira, em verso e bilingue.

Sobre a escrita e mesmo o conteúdo, é preciso ter em atenção que tem mais de dois mil anos, e muito do que se escreve e modo como se escreve está bastante ultrapassado. Não estamos a ler um livro de divulgação científica de hoje, nem sequer do século passado. A nossa admiração faz-se mais pela sua relevância histórica, pela visão e antecipação, e acima de tudo pela liberdade de espírito na concepção de ideias desligadas do poder vigente. Não foi por mero acaso que o livro quase "se perdeu" durante 1500 anos. Por outro lado, como diz Greenblatt no final da sua obra de homenagem a Lucrécio, o trabalho deste foi concluído, os seus escritos deram frutos, os seus sucessores criaram todo um novo mundo, as ideias deram novas ideias, o seu livro foi ultrapassado e pode agora regressar a meros átomos.

Para finalizar. O livro está dividido em seis grandes capítulos, denominados de Livros, que alguns estudiosos intitulam da seguinte forma :

  1. Os constituintes permanentes do universo: átomos e vazio
  2. Como os átomos explicam os fenómenos
  3. A natureza e mortalidade da alma
  4. Fenómenos da alma
  5. O cosmos e a sua mortalidade
  6. Fenómenos cósmicos

Desta listagem facilmente se depreendem três grandes partes — os átomos; a alma; e o Cosmos — que por sua vez se dividem entre dois grandes focos ou abordagens: o que lhes dá vida e o que os conduz à morte. Tudo é feito de vida e morte, constituindo o ciclo que sustenta tudo aquilo que somos, aquilo que nos dá vida, e aquilo que constitui o Universo.

janeiro 14, 2020

Envelhecendo com Noah

Há 14 anos expressava aqui o meu espanto com o primeiro vídeo de Noah, na altura feito com fotografias diárias de 6 anos. Hoje trago o vídeo em que Noah nos mostra a passagem de 20 anos em 8 minutos, criado a partir de 7263 fotografias tiradas, entre 11 de Janeiro 2000 e 11 de Janeiro 2020, uma por dia. Quando saiu o primeiro filme ainda não existia a palavra "selfie", quando aqui o partilhei, em 2007, contava com 5 milhões de visualizações, hoje conta com mais 20 milhões.
20 anos separam estas duas imagens

O filme, apesar de mais longo e envolvido numa nova música de Carly Comando — "Circadian" — continua tão hipnótico como o primeiro. Desta vez já não vemos Noah a tornar-se adulto, mas a a envelhecer, com a face a raiar e a pele a quebrar, recordando que também nós já disso nos apercebemos quando nos olhamos ao espelho.



Atualização: 15.1.2020 
Acabei de encontrar uma grande Entrevista com Noah Kalina, por Ryan Essmaker, de julho 2018 para a The Great Discontent, na qual ele fala sobre a sua carreira, o modo como começou e como sempre trabalhou em fotografia, sobre a relação arte e comércio e um conjunto de outros tópicos. Muito interessante.
"I think about it from time to time, and I don’t even know how you would start a career in photography now. You get yourself an Instagram account or something, I guess. But just generally, I’d say take a billion pictures. I mean, that’s what I did, and still do. It’s the only way you’re going to learn. And it’s a cliche, but: look at a lot of photography. Find what styles you like, and try to emulate them. You’ll become whatever you are as a photographer out of the mashup of photographers you admire."

““…people try to put you down, and to discourage you…But for some reason, I just didn’t care. I always believed there was going to be a way to make money doing photography.”

novembro 21, 2019

Travessia da Carnificina

John Williams é um fenómeno da literatura por ter as suas obras redescobertas com sucesso pela crítica e público 50 anos depois do seu lançamento e quase 25 anos após a sua morte (1994), é algo raro e só por si digno da nossa atenção. Dos quatro livros que nos deixou, o mais conhecido é “Stoner” (1965), um trabalho de enorme simplicidade narrativa mas enorme profundidade psicológica. Confesso que demorei a aproximar-me deste “Butcher's Crossing” (1960), já que depois de ter vivido uma experiência de êxtase com “Stoner”, via muito difícil o mesmo autor conseguir repetir o feito. Para agravar o meu receio, este livro era definido como livro de género, e logo como western. Surpreendeu e superou, mesmo sabendo que vinha da pena de Williams, conseguindo mais uma vez subjugar-me.
O género, o western, acaba na verdade por não o ser. Williams segue a mesma lógica que mais tarde Cormac McCarthy seguiria, apesar de situarem a ação no coração do western, não prestam vassalagem ao género, importa-lhes apenas o local e seus personagens para dar forma ao drama. No caso, mais uma vez temos um personagem particularmente pouco expansivo que procura, pela experiência do mundo e cultura western, encontrar-se, compreender-se. Neste sentido, “Butcher's Crossing” é uma espécie de “coming of age”. Para mim, o momento mais alto dá-se quando o protagonista se confronta com o desmanche de um bisonte, morto pelos homens que acompanha, para dele retirar carne e alimentar-se:
“In the moment before sleep came upon him, he made a tenuous connection between his turning away from Francine that night in Butcher’s Crossing, and his turning away from the gutted buffalo earlier in the day, here in the Rocky Mountains of Colorado. It came to him that he had turned away from the buffalo not because of a womanish nausea at blood and stench and spilling gut; it came to him that he had sickened and turned away because of his shock at seeing the buffalo, a few moments before proud and noble and full of the dignity of life, now stark and helpless, a length of inert meat, divested of itself, or his notion of its self, swinging grotesquely, mockingly, before him. It was not itself; or it was not that self that he had imagined it to be. That self was murdered; and in that murder he had felt the destruction of something within him, and he had not been able to face it. So he had turned away.” (p.168)
Se este momento é de tomada de consciência, antes deste dá-se o massacre dos bisontes, algo sobre o que já tinha alguns factos, mas nunca me tinha dado conta do tamanho da brutalidade. E só me dei conta pelo modo como Williams vai pondo os personagens a falar, surgindo os caçadores a falar na morte de 1000 bisontes, em nome dos dólares conseguidos pela sua pele, como algo banal. Na chacina apresentada, meros 4 homens eliminam nada menos do que 4600 bisontes. É aterrador, só conseguia pensar no vírus em que nos tornámos neste planeta. Não admira que em poucos anos, na segunda metade do século XIX, o bisonte tivesse passado de 20 a 30 milhões para 100 cabeças, e tivesse sido quase extinto. Só de imaginar uma pradaria carregada de corpos enormes de milhares e milhares de bisontes deitados por terra, inertes, mutilados e sem pele, dá vontade de gritar... e todo o impacto no ecossistema produzido.
O enfoque do livro não está todo aqui, este antes serve de preâmbulo ao que Williams quer mostrar, o humano, como elemento deste planeta totalmente incapaz de qualquer harmonia com a natureza, muito contra a tão apregoada relação com a natureza por Ralph Waldo Emerson e a pseudo-experiência naturalista de Henry David Thoreau. Porque toda a experiência de inverno passada, à força e com enorme sofrimento individual, nas montanhas não é ali colocada porque Williams quisesse castigar aqueles homens por aquelas mortes. Do mesmo modo o que acontece depois ao carregamento, por força da natureza do rio, não é castigo, mas também não é acaso. Williams está claramente obcecado pela relação humano-natureza, e pelo modo como o humano é uma variável perturbadora. Repare-se no que acontece quando chegam à cidade e tudo se alterou. Reparem como a natureza, as peles, todo o seu impacto brutal pela dizimação dos animais, é engolida como mero fétiche económico. O homem ignora e despreza totalmente a natureza, vive apenas em função de si, do seu próprio proveito.
Como se não bastasse, junta-se a esta crítica dura e certeira, a escrita elaborada de Williams, logo desde o primeiro capítulo podemos deslumbrar-nos com o modo como ele trabalha a descrição, tornando-a ação e história.  Veja-se no exemplo seguinte como a descrição ganha corpo, movimento e som, e como toda esta capacidade técnica vai evoluindo e servindo na criação de cenário que submerge totalmente o nosso imaginário.
"À medida que se aproximavam da vila, a estrada tornava-se plana e a carruagem avançava com maior rapidez, oscilando levemente de um lado para outro, de forma que o jovem pôde aliviar a pressão com que se agarrava ao montante de madeira e deixar-se descair mais descontraidamente para diante no banco rijo. O toque-toque das patas das mulas tornou-se mais regular e abafado; à volta da carruagem ergueu-se uma nuvem de fumo amarelo, que se encapelou à sua retaguarda."

Se depois disto tiverem curiosidade em saber mais sobre John Williams, aconselho a leitura da recente entrevista com sua esposa pela Paris Review, "Mrs. Stoner Speaks: An Interview with Nancy Gardner Williams".

agosto 02, 2019

Blueprint: Como o DNA nos faz como Somos (2018)

O prólogo de "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" de Robert Plomin diz várias coisas de entre as quais, a seguinte afirmação que se vai repetir ao longo de todo o livro, ainda que com ligeiras variações, mas apontando baterias sempre ao mesmo objeto:
“Genetics is the most important factor shaping who we are. It explains more of the psychological differences between us than everything else put together. For example, the most important environmental factors, such as our families and schools, account for less than 5 per cent of the differences between us in our mental health or how well we did at school – once we control for the impact of genetics. Genetics accounts for 50 per cent of psychological differences, not just for mental health and school achievement, but for all psychological traits, from personality to mental abilities. I am not aware of a single psychological trait that shows no genetic influence.”
Semenya foi esta semana proibida de correr em provas de atletismo se não tomar medicação que reduza a testosterona natural no seu corpo. Já sobre Phelps nunca nada foi dito sobre a sua fisiologia anormal (discussão abaixo).

Assim, e antes de lançar qualquer análise crítica ou tentativa de discussão quero dizer que sou grande defensor da variável genética. Acredito na relação 50/50 do impacto de cada domínio — natureza e ambiente — sobre aquilo que somos, ainda que por vezes tenda a deixar-me convencer que a natureza consegue dominar mais daquilo que somos do que a cultura e ambiente que nos vai moldando ao longo da vida. Por isso, não reagi violentamente ao livro como vi outros reagir, e como o próprio autor sabia que iria acontecer. Esta é uma guerra antiga, entretanto adormecida, mas a investigação em genética nunca parou e existem avanços significativos. Não apenas ao nível do controlo celular e do DNA, mas também de estudos longitudinais realizados. E Plomin é um dos investigadores mundiais com mais estudos no campo, tendo acompanhado várias comunidades, incluindo de gémeos, desde a nascença até aos 40 anos. Por isso existe neste livro muito que interessa a todos nós que estudamos domínios que lidam com o social, cultural e humano, e assim seja também defendido por outros.


Julgo que podemos dividir o livro em duas grandes partes: uma relacionada com a discussão daquilo de que somos feitos, e como a genética impacta sobre o indivíduo e a sociedade. E uma segunda parte, sobre a relevância e impacto da genética nas vidas dos indivíduos e sociedades nos tempos próximos. A primeira parte considero ser aquela que é mais relevante, porque nos leva a questionar vários modos de olhar a realidade. A segunda parte é aquela em que me junto ao coro de críticos, pelas razões que passarei a explicitar à frente.

Sobre a primeira parte, Plomin apresenta dados e estudos que suportam uma leitura com que estamos pouco habituados a ser confrontados no dia-a-dia nos dias de hoje, a da importância dos genes nas pessoas que somos. Por que não somos apenas aquilo para que trabalhamos, apesar de enquanto sociedade termos o dever de promover essa cultura, sabemos que essa é apenas meia-verdade, no entanto por todo o lado em nosso redor, parece muitas vezes preferir-se ignorar. Veja-se a parafernália de livros e estudos sobre talento de que tenho aqui vindo a dar conta: Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell; “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, e “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How” (2009) de Daniel Coyle. Sendo verdade que a genética não é alterável e não podendo transformar-se, talvez por isso mesmo muitos acreditem que mais vale não falar dela. Contudo, do meu ponto de vista isso é um erro. É um erro porque se aceitamos que não podemos mudar a nossa genética, então precisamos de compreender mais e melhor essa genética para enquanto sociedade, e individuos, a podermos aproveitar da melhor forma, e não colocar a cabeça debaixo da areia.

Existem muitas áreas onde isto é relevante, mas talvez a mais relevante de todas seja a Educação. Continuamos hoje, com tudo aquilo que já sabemos a tentar formatar crianças da mesma forma em escolas fabris. E o meu problema não são as escolas em si, ou o modo fabril, ou meu problema é a não diferenciação das crianças, porque se segue uma ideologia de todos iguais, quando sabemos que tal não existe. Porque quanto mais formatarmos o social, mais evidente a natureza tornará as diferenças. Claramente que as crianças têm a ganhar em andar em escolas com pares da mesma idade, mesmo com cargas genéticas completamente diferentes, incluindo crianças com necessidades especiais, nada contra isso. O problema não é a criação de socialização, colaboração e redes de suporte societal. O problema é colocá-los todos numa mesma sala, apenas por terem a mesma idade, a aprender todos o mesmos, é com isso que não me conformo. E não estou a falar de inteligência, estou a falar de algo muito mais relevante, mas mais complexo, mas ainda assim mais determinante, e que tem que ver com a personalidade (e que agora querem também moldar com o que dizem ser uma novidade educacional: as competências). A personalidade de cada um determina diferenças fundamentais no humano, e essas são profundamente genéticas, o que acaba dando razão a Plomin quando diz que a genética tem maior capacidade de prever o futuro de uma criança do que as variáveis sociais, já que essas não são duradouras, enquanto a genética está lá sempre. Ou seja, aquilo que somos à nascença é determinante para aquilo que podemos vir a ser, não sendo uma guilhotina, tem grande importância e é extremamente importante compreender aquilo que somos à nascença, não apenas para nos conhecermos melhor, mas para podermos guiar e orientar as nossas escolhas em função das nossas melhores possibilidades, e não em função de ilusões e sonhos que a sociedade nos quer vender a todo o momento.

Sobre esta discussão Plomin apresenta imensos estudos demonstrativos das variáveis genéticas, desde gémeos que são educados por famílias completamente díspares mantendo no entanto sempre as mesmas tendências genéticas que os levam a construir vidas e a ter sucessos imensamente próximos mesmo quando o ambiente prediria o contrário, dando conta da força genética sobre o ambiente. Noutros, dá conta do que diferencia as escolas privadas de elite das escolas públicas, que nada tem que ver com melhor ensino, melhores escolas, melhores professores, mas apenas e só melhor seleção genética. Tanto que Plomin não fala de escolas privadas, mas escolas seletivas. Naturalmente que se fazemos testes à entrada, e deixamos apenas entrar os que melhor reagem ao que pretendemos avaliar, as diferenças com instituições onde não há qualquer filtragem têm de surgir. Os estudos de Plomin vão mesmo ao ponto de desmontar as variáveis sociais construídas nesse entorno, demonstrando que não são elas que tornam o futuro desses miúdos auspiciosos, mas é a sua carga genética de partida.

Trazendo para a discussão dois exemplos. Repare-se no caso atual de Caster Semenya, que soube esta semana que estava impedida de participar em provas competitivas de atletismo da IAAF enquanto não tomasse medicamentos que lhe fizessem reduzir os níveis de testosterona!!! Por todo o lado vemos esta sede de normalização, da Escola à Empregabilidade, como se não pudéssemos ser apenas diferentes por assim ter nascido. Repare-se como ideologicamente isto é mesmo um contrassenso, já que exigimos a aceitação societal das diferenças, incluindo a aceitação da variabilidade de género, mas chegados a pontos em que a diferença genética atira para fora da normalidade pré-convencionada, obrigamos à reposição biológica das diferenças para manter o status quo social. Claro que Semenya representa um problema para quem organiza provas convencionais, porque tem um corpo “demasiado” masculino para as provas de mulheres, mas “demasiado” feminino para as provas de homens, o que a coloca em lugar nenhum dessas convenções. Por outro lado, e para nos fazer refletir, porque nunca se levantaram questões deste tipo no caso de Michael Phelps, sabendo que o seu corpo sai completamente fora da norma colocando-o num patamar bastante distinto dos demais.


Mas tudo isto é pouco novo, o que o livro traz de novo é a segunda parte, que discute uma nova abordagem à genética assente em grandes bases de dados, seguindo uma nova técnica chamada de "genome-wide association study" (GWAS), sendo aquilo com que menos concordo, e que também tem sido mais atacado (review na Nature). Pensar a criação de sistemas de avaliação genética envolvidos em algoritmos de previsão futura, para a manipulação do bloco genético gestacional (ou seja, o famigerado design de DNA de bebés), em função desses algoritmos é completamente absurdo. E não estou a falar do medo de "Gattaca" (1997),  não é apenas um problem ético, embora por esse lado já fosse suficiente para cancelar qualquer processo destes, mas porque estamos a falar de algo que impacta em 50%, ou seja, transformar algo que sabemos que nunca terá impacto acima dos 50% não é fazer design, é jogar na roleta russa. Mas é pior, porque 50% é apenas o máximo a que se poderia chegar, já que em termos efetivos, e seguindo os métodos aqui propostos, estamos a falar de 10 a 20% de previsibilidade de traços, que o autor defende como sendo já algo muito relevante por ir além de que qualquer outro elemento de previsão (Plomin defende, por comparação, o género só consegue dar previsibilidades de 1% de variação). Pois seja, mas sendo maior continua a nada valer, 10% são completamente diluídos num mar de mundo dotado de acaso. Sobre esse acaso, o da variabilidade física do meio, indo a um extremo podemos pensar: de que adiantaria desenhar seres biologicamente imortais se eles pudessem simplesmente morrer quando atravessam uma estrada, que paradoxos, que caixas de pandora estaríamos a abrir?

Se o livro se lê bastante bem, e abre sempre discussões para nos debatermos, confesso que a certa altura comecei a sentir uma das críticas que mais tem sido feita a Plomin, e do qual todos nós padecemos, a confirmação de viés. Para quem estuda genética todo o tempo, vai-se tornando cada vez mais natural ver tudo pelos olhos da genética. Para Plomin, é possível explicar praticamente todas as variáveis ambientais como sofrendo de influência genética. Ou seja, seríamos genes, nada mais do que genes. Plomin, na sua senda e defesa da sua dama vai a ponto de afirmar que o ambiente — os pais, as escolas, a política — “matter, but they don’t make a difference”, porque segundo ele, são variáveis “unsystematic and unstable, so there’s not much we can do about them”.  Como se bastasse atirar as crianças ao leões e deixar que os genes se desenvencilhassem. Esquece Plomin que ao fazer tal estaria simplesmente a ignorar a 50% da variabilidade humana, mas pior ainda, estaria a esquecer o enorme impacto do cuidado humano à nascença e todas as variáveis sociais já amplamente demonstradas por estudos (o mais recente é deste mês) com muito maior valor empírico do que previsões de 10%.

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017

março 13, 2015

Nós e a natureza

Depois da experiência que vivi na semana passada na minha primeira visita ao Grand Canyon, encontro hoje um filme de Ryan Deboodt sobre a maior caverna conhecida, Hang Son Doong. O que liga estes dois espaços é o facto de serem ambos, obras criadas pela própria natureza, com dimensões majestosas e dotadas de formas profundamente curvo-orgânicas. É diferente passear num local destes a ver um filme, mas o filme de Deboodt impressiona, dando uma ideia aproximada do que se pode esperar ali contemplar.




Estes monumentos naturais servem essencialmente para isso, para a contemplação. Ao contemplarmos o poder e arte da natureza, podemos conhecer melhor o mundo que habitamos, mas podemos ainda aprender mais sobre aquilo de que somos feitos, porque em essência, nós e a natureza, em nada nos distinguimos.

A caverna de Hang Son Doong está situada no Parque Natural Phong Nha Ke Bang no Vietname, tendo sido apenas descoberta em 1991. Possui um comprimento de 5 km, e 200m de altura por 150m de largura. As imagens a partir do chão foram captadas com uma Canon 6D, com uma objectiva 16-35mm, para as aéreas foi utilizado DJI Phantom 2 com uma GoPro HERO4 Black. Existem vários planos soberbos, mas gostei particularmente do plano inicial em que percebemos o contraste entre o tamanho da caverna e as pessoas que parecem pequenas formigas, no topo de picos dotados de curvas graciosas, e também do plano em que se pode admirar o volume da luz a entrar pelos buracos da caverna. Um filme a ver e a rever, e mais um local para visitar um dia.

Hang Son Doong (2015) de Ryan Deboodt


[Via This is Colossal]

janeiro 13, 2014

o tempo e a nossa condição...

Raras vezes temos oportunidade para experienciar como o tempo passa ao nosso redor. Por vezes somos impelidos por um qualquer motivo - fotografia, música, ou data - a parar para reflectir sobre anos passados sobre a nossa própria vida. Mas raramente temos a oportunidade de constatar visualmente como o mundo à nossa volta se altera. Acompanhando-o parece seguir ao nosso ritmo, nós como este vamos mudando, mas acreditamos viver sempre no mesmo presente.

1927  -  2013


Tudo isto a propósito de dois pequenos filmes ingleses recém criados, um da BBC, "London to Brighton Train Journey: 1953 - 2013" outro de Simon Smith com imagens do BFI, "London in 1927 & 2013". O primero dá conta da passagem de 60 anos numa linha férrea popular de Inglaterra. O segundo mostra como centro de Londres se modificou em 86 anos.

"London to Brighton Train Journey: 1953 - 2013" (2013) da BBC

Dois filmes que mais parecem Máquinas do Tempo. E o que nos dão a ver, a experienciar realmente?

Para mim, a coisa mais notável que podemos extrair destes filmes, é que o mundo não precisa de nós para continuar a mover-se. Fá-lo lentamente, à sua vontade, e não à nossa. Os edifícios e pontes ali estão como que a olhar para nós imóveis e inalterados, enquanto nós seres humanos vamos nascendo e morrendo. Cheios de fome de viver, ansiamos por fazer, queremos sempre mais e mais. O mundo está aí, e nós para aqui sem nos resignarmos continuamos a lutar todos os dias, acreditando que vamos mudar e transformar tudo aquilo que encontrarmos pela frente.

Em certa medida, estes filmes dão-me alguma paz, ajudam-me a conceber o mundo de um modo verdadeiramente mais tranquilo...

"London in 1927 & 2013" (2013) de Simon Smtih

junho 22, 2012

destruído por dentro

Um filme curto, mas poderoso, vale a pena guardar 5 minutos em privado, e em silêncio. Apreciem a beleza da natureza e da cinematografia, e envolvam-se com a capacidade do espírito humano para encontrar motivação dentro de si, e continuar. A síntese está nesta última frase,

“I’ve shared a rope with 19 people who are now dead”


junho 14, 2012

Poemas audiovisuais: "OF SOULS + WATER"

A série web OF SOULS + WATER é produzida pela New Belgium Brewing Co. e criada pela Forget Motion Pictures. Consiste em 5 curtas lançadas gratuitamente na web mensalmente, tendo o primeiro episódio surgido em Abril deste ano, sendo que o último será lançado em Agosto.


O objectivo da série é apresentar cinco histórias tocantes, focando-se sobre cinco personagens com os quais cada um de nós se possa identificar, e possamos aprender um pouco mais sobre a humanidade à nossa volta.


O primeiro episódio foi dedicado ao Nómada, o segundo à Mãe, o deste mês será dedicado ao Transformador, o de Julho ao Guerreiro e o último em agosto será dedicado ao Idoso.


Do que pudemos ver dos dois primeiros episódios, são curtas de pura excelência, poemas audiovisuais. Uma fotografia arrebatadora, com textos inspiradores. Curtos filmes, que como eles próprios dizem sofrem de alguma efemeridade, mas que podem estimular em nós momentos de grande inspiração. Gostei particularmente do segundo episódio, da imagem, mas também muito do texto.

Episode I - THE NOMAD
His deep curiosity leads him to the far arctic north, to the streets of inner-city DC, and to the majestic waterfalls of the Pacific Northwest. But what is he seeking?



Episode II - THE MOTHER
Do our mothers still have dreams, hopes and journeys to make? Shot in the Utah Desert.



Dentro deste espírito de mini-séries sobre a natureza, vejam também as curtas da Hazardous Journeys Society.

junho 03, 2012

Filmar a adrenalina, com Seb Montaz

Ao longo do último ano vi vários pequenos filmes de grande qualidade sobre práticas de montanhismo chegarem à net. Inicialmente admirei-me com a qualidade, o fulgor das imagens surpreendentes e nunca vistas de desportos em altura. Entretanto hoje ao analisar o último filme, Summits of My Life - Trailer, reparei que estes filmes tinham todos um mesmo autor, Seb Montaz, e por isso resolvi procurar saber melhor quem era.

Sebastien Montaz-Rosset

Seb Montaz nasceu e vive em Chamonix, França ou seja no coração do famoso Mont-Blanc nos Alpes. Isto torna imediatamente clara a razão dos seus filmes se passarem quase sempre em zonas de montanha. Montaz é ele próprio praticante de várias das modalidades de desportos radicais de montanha. Até aqui nada de surpreendente, o que é mais interessante é o facto de este ser um auto-didacta no que toca à imagem em movimento.



Summer Feelings (2011)



Winter Feelings (2011)

Trabalhando como guia nos Alpes começou por brincadeira a filmar os lugares aonde levava as pessoas, daqui passou a fazer pequenos filmes semanais sobre a montanha para uma televisão local, Montagne TV. Não fez nenhum curso, porque como ele diz na sua área não existem cursos de cinema, e ele não se poderia dar ao luxo de sair dali durante 3 anos para aprender, por isso teve de aprender sozinho. Contudo analisando o seu trabalho ao longo dos últimos dois anos podemos ver como teve uma evolução surpreendente, veja-se um filme seu com 2 anos, e compare-se com os que aqui coloco como referência. A grande parte se não todos estes filmes foram criados com recurso a máquinas do tipo Canon 5D e 7D, depois editados num MacBook com o Final Cut.



Send it sistah ! (2011)

O seu trabalho ainda não lhe permite viver disto apenas, mas os convites para fazer comerciais ou participar em documentários têm vindo a aumentar. Todos os seus documentários até ao momento foram pagos por si. Para os rentabilizar o que faz é lançar os magníficos trailers na net, que criam nas pessoas a vontade de ver o filme completo. Para aceder aos filmes, é depois preciso pagar um pequeno valor online. Digamos que é uma espécie de sistema Freemium para audiovisual. Porque Montaz vai disponibilizando pequenas partes dos documentários no Vimeo, gerando cada vez mais interesse nas pessoas em ver o filme completo.



SKYLINERS - A Documentary (2010)

O seu documentário I Believe I can Fly é sem dúvida o mais conhecido e o que mais nome lhe tem trazido, tendo sido premiado em vários festivais. Podem encontrar no Vimeo vários bocados do filme em acesso livre, behind the scenes, e ainda tutoriais explicativos das técnicas utilizadas para a captura de imagens. É impressionante como Montaz nos consegue fazer sentir quase ali, eu próprio sinto vertigens a ver o seu documentário, recolho-me por vezes, nem quero olhar! Mas os seus filmes são mais do que meras sensações brutas, existe um espírito ou filosofia que subjaz sob aquelas imagens e que advém de uma enorme vontade de sentir a vida, de a absorver na sua plenitude. Como ele próprio diz,
It is an incredible sensation of freedom but also very destabilizing! (..) The documentary is not about action sports, so much as about fear, doubts, laughs, failures and how you can find the strength to live your dreams. [fonte]


I Believe I Can Fly (2011), trailer

O seu trabalho mais recente, Summits of My Life, parece ser um projecto documental para vários anos, seguindo Killian Jornet por vários picos clássicos. Podem ver toda a info no site dedicado à expedição/documentário e ver desde já o fantástico trailer. A banda sonora é original de Zikali.



Summits of My Life (2012), trailer

março 01, 2012

Curtas de aventura e exploração

Foi publicada esta semana pela Hazardous Journeys Society uma trilogia de curtas que nos fala do espírito de Aventura, da Jornada, e da atitude do Explorador. Esta sociedade apesar de ter conotações com entidades religiosas americanas, parece querer apresentar-se nestes filmes como de espírito e mentalidade abertaa, não contaminando os filmes com fundamentalismos ou exageros. A intenção dos filmes parece-me estar talhada para a organização de Expedições, o que está de acordo com alguma informação que se pode encontrar no site de expedições anteriores por eles organizadas.


As três curtas apresentam duas coisas enormemente a favor em termos estéticos: as paisagens fabulosas, e a excelência da fotografia. Por outro lado a música serve na perfeição estes dois elementos e ajuda a transportar-nos para novos territórios, cria em nós o sentimento do explorador, o desejo de aventura, por partir e sentir todas as emoções a esta associadas. O pior aparece do lado dos actores e da sua direcção, assim como na componente narrativa que parece nunca querer assumir-se deixando o lugar de destaque à atmosfera criada. Como alguém dizia num comentário aos filmes, depois de ver estas curtas é impossível não pensar em pegar na nossa DSLR e partir a aventura para filmar.



Os filmes são apresentados sem uma ordem, contudo aconselho que sejam vistos da seguinte forma: Risk, Dominion, e Manhood.