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agosto 24, 2023

“Los Vencejos” de Fernando Aramburu

“Los Vencejos” (2021) é o sucessor de “Patria” (2016), o livro que trouxe reconhecimento internacional, incluindo direito a série HBO, a Fernando Aramburu. Se o estilo, de contador de histórias, permanece inalterado, o tema distancia-se, tal como a abordagem. Deixa-se para trás o terrorismo vasco e adentra-se agora os efeitos sociais do pós-patriarcado na figura masculina. Mantém-se a visão acutilante, mas em vez de sustentada pela tragédia, esta é agora baseada na sátira e humor negro que se tornam centrais no suportar de toda a vil misantropia ao longo de 700 páginas.

Imagem da web, lido na versão audiolivro com narração de Germán Gijón (Scribd).

setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

junho 13, 2021

WiZink, e o conceito de Dívida Eterna

Tem-se discutido o problema das apostas e raspadinhas, mas vejo pouca discussão sobre um problema, importado dos EUA, e que considero mais grave pela fachada institucional e respeitada com que se apresentam, estou a falar das empresas de crédito fácil, aquelas que vão para os centros comerciais enfiar cartões de crédito pelas goelas abaixo de quem tem baixa literacia financeira, tais como a WiZink, a mesma que vai agora passar a surgir nas camisolas da equipa de futebol mais popular do país. Escrevo este artigo como alerta para quem tem familiares idosos, pela sua maior susceptibilidade à manipulação destas empresas.

maio 16, 2021

A doce canção que embala as crenças sociais

Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?

maio 09, 2021

A Tirania de Ter de Ser o "Melhor"

Apesar de repetitivo, "The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?" (2020) de Michael Sandel foi o livro mais transformador que li nos últimos anos, por tocar em aspetos fundamentais da atualidade que explicam as intrincadas relações humanas da nossa sociedade neste início de século. 

Deixo múltiplos pontos que o livro suscitou, com argumentação de Sandel, algumas conclusões e  discussões desses. Começo com o ponto principal:

1. A dignidade do nosso trabalho não é medida pelo ordenado que recebemos. 

abril 10, 2021

O código da interação humana

O livro "The Culture Code" (2017) de Daniel Coyle fez-me lembrar "Blink" (2005) de Gladwell, pelo modo como discute algo tão presente na nossa realidade mas que temos imensa dificuldade em especificar e enunciar. Se Gladwell tentava definir o que torna o olhar de um especialista diferente, o modo como a sua capacidade percetiva imbuída de saber e experiência vai além do que é evidente. Coyle, procura definir aquilo que emerge da cola entre humanos quando interagem e faz com que juntos sejam mais do que a mera soma dos indivíduos. Ambas à superfície parecem dotadas de alguma magia, por não serem facilmente explanáveis nem racionalizáveis. O que é também interessante é o facto de Coyle ter feito anteriormente um trabalho soberbo na análise do talento individual, em “The Talent Code” (2009), e ter-se visto aqui obrigado a concluir que o talento dos indivíduos não é a força motriz do talento dos grupos.

agosto 06, 2020

Vigiar e Punir, segundo Foucault

Do Caos à Ordem por via da Disciplina e Punição, é o que nos diz Foucault nesta carismática obra de 1975, talvez a mais relevante de todo o seu trabalho, pelo modo como atravessa tudo e todos, obrigando a uma reflexão profunda sobre o que somos enquanto indivíduos parte de uma sociedade, fruto de processos de civilização. Em última análise, Foucault lança a ideia de que aquilo que distingue a civilização da barbárie, que nos distingue do primitivismo assim como dos animais, é a Ordem e essa é conseguida por via de dois grandes conceitos: Disciplina e Punição. Aliás, o título da obra sendo originalmente, em francês “Surveiller et Punir”, traduzido corretamente para português como “Vigiar e Punir”, ao ser passada para inglês ganharia o título de “Discipline and Punish” (“Disciplinar e Punir”).
Mas a ênfase de Foucault na vigilância não é secundária, porque segundo ele, a disciplina é resultado da vigilância. Claro que resulta da punição, que treina o comportamento humano para se manter na linha reta traçada por essa sociedade. Mas a manutenção dos indivíduos na linha reta só se consegue por via da constante vigilância. Daí que Foucault tenha recorrido ao modelo de prisão criado no século XIX para dar conta de uma figura central da sua teorização, o panoptismo. Aliás, vai além da prisão, resgatando os modos de atuação das sociedades perante a peste no século XV, que parece tão próximo destes tempos de COVID-19 que atravessamos, como se vê neste excerto do capítulo “O Panoptismo”:
“Em primeiro lugar, uma repartição espacial estrita: encerramento, obviamente, da cidade e dos arredores, interdição de sair dela, sob pena de morte, eliminação de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões distintos, onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um síndico; este vigia-a; se a deixar, será punido com a morte. No dia marcado, é ordenado que todos se fechem em casa: proibição de sair de casa, sob pena de morte. O próprio síndico vai fechar, do exterior, a porta de cada casa; leva a chave e entrega-a ao intendente de quarteirão; este guarda-a até ao fim da quarentena (..) Circulam apenas os intendentes, os síndicos, os soldados da guarda (...) “A inspeção funciona incessantemente. O olhar está alerta em toda a parte (...) guardas nas portas, na câmara municipal e em todos os bairros para tornar mais eficiente a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados, «bem como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens.”
“Todos os dias, o intendente visita o bairro pelo qual é responsável, verifica se os síndicos cumprem as suas tarefas e se os habitantes têm queixas; «vigiam as suas ações». Também todos os dias, o síndico passa pela rua pela qual é responsável; para em frente de cada casa; chama todos os habitantes às janelas chama cada um pelo seu nome; informa-se do estado de todos, um por um – «os habitantes são obrigados a dizer a verdade sob pena de morte»”

“Esta vigilância baseia-se num sistema de registo permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos magistrados municipais ou ao presidente da Câmara. (...) Tudo o que é observado durante as visitas – mortes, doenças, reclamações, irregularidades – é anotado, transmitido aos intendentes e aos magistrados (...) O registo do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com a sua doença e com a sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registo que estas fazem e pelas decisões que tomam.”
“Este espaço fechado, dividido, vigiado em todos os pontos, onde os indivíduos são introduzidos num lugar fixo, onde os mínimos movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem partilha segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente referenciado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – tudo isto constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. ”

“À peste responde a ordem;”

“A peste como forma simultaneamente real e imaginária da desordem tem como correlativo médico e político a disciplina. Por detrás dos dispositivos disciplinares, lê-se o terror dos «contágios», da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, que vivem e morrem na desordem.” 
Capítulo 7: O Panoptismo

O ataque à desordem busca o reequilíbrio, ou normalização dos processos, um voltar ao que era a linha anteriormente definida. Por seu lado, estes processos, demonstrando os seus frutos acabariam sendo importados para outros domínios, como diz Foucault:
“lentamente, vemo-los aproximarem-se; no século XIX, aplicou-se ao espaço de exclusão do qual o leproso era o habitante simbólico (..) isto foi operado regularmente pelo poder disciplinar desde inícios do século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada e, de certo modo, os hospitais.”
Capítulo 7: O Panoptismo

O sistema de ordem e punição, ou nos dias hoje, de regulação, serve então a marcação binária da sociedade entre “louco-não louco, perigoso-inofensivo; normal-anormal”, com os mecanismos de poder a agirem sobre o anormal para o fazer regredir ao normal. Mas para que os mecanismos funcionem, é necessário todo um sistema de vigilância e informação permanente que permita a punição nos momentos adequados, o treino que permite dobrar o anormal, alertando e corrigindo. Daí que Foucault invoque a figura arquitetónica do panótico, que se define por um edifício circular com uma torre de vigia no centro. Os indivíduos sabendo-se vigiados, 24/24, e o efeito punitivo da não anuência da normalização, acabarão por se auto-normalizar. Aliás este mesmo processo foi utilizado em Portugal, e em muitas ditaduras do século XX, no uso das polícias de informação e o recurso a informadores no centro das comunidades, que tudo relatavam, induzindo o medo constante, e a manutenção da aparente normalidade.

Isto explica, para Foucault, porque passámos de um mundo medieval em que a tortura e morte era o normal na atribuição de justiça, para um mundo a partir do século XVIII, feito de prisões, em que os crimes, fossem de que ordem fossem, eram sempre punidos pela clausura. Segundo Foucault, houve uma transição da tortura do corpo para o controlo da “alma”, da mente, por via do fim dos maus tratos físicos via clausura em prisões. Esta transição foi operada pela pressão da sociedade, como modo de por fim à degradação humana representada pelos enforcamentos, guilhotinagens e torturas em praças públicas. Deste modo, Foucault aponta uma espécie de génese para a regulação da ordem assente na vigilância e disciplina, pela invasão e devassa da interioridade individual, apontada como reduto último, e aquele que necessita de ser quebrado para regressar à normalidade. A justiça abandona assim o simples ato punitivo vingativo em favor do ato corretivo de normalização, de suposto reajustamento psicológico. 

Daqui aponta o nascimento da Psicologia, a nova arte de normalização do humano, e aponta a normalização do indivíduo como o objeto último das sociedades, em que todos são moldados e formatados pelas ideias centrais comungadas pela comunidade em que se envolvem. Repare-se como Foucault define o processo de otimização da prisão a partir da cadeia exemplar de Mettray, aberta em 1840 e dada como grande exemplo em 1848 por funcionar em contraponto às revoltas que surgiam nas comunidades e escolas, como lugar em que a calma se tinha redobrado ao longo dos anos em que tinha funcionado:
“Os chefes e os subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem «pais», mas um pouco de tudo isto e segundo um modo de intervenção que é específico. São, de certo modo, técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. Têm a função de fabricar corpos dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho diário (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas, os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, os recolheres, as marchas com clarim e apito; comandam a ginástica; verificam a limpeza, presidem aos banhos. Adestramento que se acompanha de uma observação permanente; retira-se constantemente um conhecimento do comportamento quotidiano dos colonos; este saber é organizado como instrumento de avaliação perpétua:”

“Os suportes institucionais e específicos desses processos multiplicaram-se a partir da pequena escola de Mettray; os seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície; os seus apoios multiplicaram-se, com os hospitais, as escolas, as administrações públicas e as empresas privadas; os seus agentes proliferaram em número, em poder e em qualificação técnica; os técnicos da disciplina criaram raízes. Na normalização do poder de normalização, na organização de um poder-saber sobre os indivíduos, Mettray e a sua escola marcaram uma nova época.” 
Capítulo 10. O Sistema Prisional

Todos estes processos buscam a normalização, mas não só, ou melhor, essa normalização não é um qualquer princípio natural ou inscrito na pedra por um qualquer Deus, mas é antes a tal linha reta definida por cada sociedade. Ora as sociedades só existem enquanto grupos de interesses comuns, se não comungam do mesmo, não se podem manter juntos. Daí que a normalização opere no sentido de unificar e levar a comungar. Neste sentido, todas as estruturas criadas pelas sociedades, das prisões às escolas, dos hospitais às empresas, tudo opera segundo o mesmo objetivo de normalização. Iria mais longe, e sendo atual, e próximo de uma área que me é cara, diria que tudo opera segundo processos de gamificação. As estruturas de jogo vivem inerentemente do vigiar e punir. O jogador precisa de puxar pelo melhor de si, de se tornar no mais exímio competente, para não ser punido, e poder atingir um alegado objetivo final.

Isto é tanto verdade no século XXI, como no XV, ou no -V, o que mudou foi a evolução do aparelho que se aprimorou com o conhecimento científico, nomeadamente a enorme evolução das ciências sociais, que nos levaram a compreender melhor o humano, e por fim, aquilo que cada sociedade e civilização considera moralmente bom e mau ou fundamental para a sua coexistência. Porque as sociedades do século XXI não pretendem o mesmo das do século XV, e menos ainda do século -V. Reflita-se sobre mais este excerto:
“A escola (...) é apenas o exemplo de um fenómeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para controlar o tempo das vidas singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para assegurar uma acumulação da duração; e para transformar em proveito ou em utilidade sempre maiores o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, nos seus corpos, nas suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja suscetível de utilização e de controlo? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também vistas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

É por isso que dizer, nos dias de hoje, que a Universidade não existe para profissionalizar, ou que não funciona como certificador de competências, é uma falácia. A sociedade aceita a Universidade com tanta omnipresença, com a maioria dos jovens a chegar aos 18 anos a procurar nela ingressar, apenas e só porque ela garante o aumento de rendimentos aos indivíduos e claro às sociedades como um todo. A Universidade não tem hoje qualquer relação com a Academia grega, desligada da realidade do quotidiano, desinteressada da posse material, focada exclusivamente no conhecimento, porque a universidade se transformou numa extensão da instituição da Escola. É preciso transformar pessoas em máquinas de competências no tempo mais curto possível, para o que se requer obrigatoriamente o treino pela repetição e divisão do saber analógico em classes discretas elementares. As unidades discretas de conhecimento permitem o treino isolado, a repetição acelerada do que não foi adquirido, e consequentemente a vigilância por via do exame que:
“tem a tripla função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, garantir a conformidade da sua aprendizagem com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo.” 
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

Este modelo opera por toda a sociedade atual, nos hospitais com a doença e os doentes, nas fábricas e empresas, com os empregados e os seus objetivos a cumprir, nos tribunais com os arguidos, obviamente nas prisões e nos militares, mas também no desporto e na política. Porque tudo na sociedade atual é regulado por processos de gamificação dirigidos ao aumento de consumo e de produção. Esse é o modelo que nos regula, o Norte do jogo que a nossa civilização aceita jogar. 

Se dúvidas houvesse, analise-se o momento que atravessamos com o COVID-19, e perceba-se como todo o discurso, em todas as dimensões que constituem a nossa sociedade, se resume aos impactos no abaixamento do consumo e da produção. Como tudo e todos se focam naquilo que dizem ser a busca pela normalização que é o atingir do estado anterior à paragem forçada criada pelo COVID-19. Queremos a escolas abertas porque os pais precisam de ir trabalhar, porque os cafés, restaurantes, táxis, lojas de roupas, perfumes, bijuterias, papelarias e livrarias precisam de servir pais, professores e alunos, porque as fábricas precisam de servir todos esses estabelecimentos. Em redor destes nós, crescem múltiplos outros, em que todos dependem uns dos outros, e a paragem de um qualquer dos nós, implica diminuição de consumo e logo de atividade produtiva. 

Foucault não escreve enquanto crítico, mas enquanto cientista social, recorrendo ao método de análise histórica focada sobre as sociedades, procura padrões, indicadores, relações, leituras, buscava sentido interpretativo que explicasse porque funcionavam as sociedades como funcionavam. Claro que não foi o único a fazê-lo, mas a sua capacidade para identificar padrões macro e ligá-los a micro, tanto societais como individuais, por meio de teorização filosófica, sociológica e psicológica fez com que Foucault atingisse níveis de profundidade na sua análise únicos. O seu discurso é científico, baseado em evidência empírica, não se move por sentidos de correto ou incorreto, isso cabe ao leitor final decidir o que fazer com o novo modo de compreender a realidade apresentado por ele.

Do mesmo modo, não me interessa aqui apontar o dedo à Justiça, Escola, Políticos ou sequer ao Capitalismo ou qualquer outra ideologia económica. Na verdade, importa compreender que este foi o caminho escolhido para dominar o caos e a desordem, importa compreender como gerimos esse controlo, que ferramentas usamos para vigiar, punir e normalizar. Não porque sejam erradas, mas porque se quisermos mudar algo no modo como vivemos enquanto sociedade é sobre estas ferramentas que teremos de agir. Foucault não oferece caminho alternativo, só explica como montámos este caminho, que é apenas à superfície aparente natural, mas é profundamente artificial. 

Aliás, o que este seu trabalho demonstra é exatamente a evolução societal no sentido da adoção da ciência, no modo como evoluiu os seus métodos de ordem e normalização da sociedade, conduzindo a população a desejar jogar o jogo das suas vidas sob as mesmas regras. Já não estamos sob o jugo das religiões que exigem na base da fé cega, ou sob o jugo ditatorial que pune sem questionar, ambos os sistemas incapazes de se justificar perante as pessoas. Tanto os sistemas religiosos como ditatoriais, falharam por falta de feedback, mas acima de tudo por falta de objetivos macro. A ciência permitiu que as sociedades criassem novas estruturas que per se conseguiram instituir nas sociedades sistemas contínuos de feedback, que por sua vez garantem o desejo de submissão, de aceitação de ordem. Em última análise, o consumo parece ser o desejo último que a todos motiva de forma igual. Bem ou mal, de uma forma ou de outra, todos parecem desejar consumir mais, seja mais conhecimento, mais experiências, mais coisas ou mais poder, estando dispostos a aceitar as regras da vigilância e punição para o conseguir.

julho 06, 2019

O caos do social e a força do humano

Vi o filme, "Capernaum" (2018), sabendo pouco mais além de ter ganho prémios e um trailer visto na diagonal. Enquanto o via senti uma abertura de território novo — o caos do Líbano e os efeitos da crise dos refugiados do país vizinho, a Síria, de onde chegou na última década mais de um milhão de refugiados a um país feito de apenas seis milhões —, um mundo de que vamos falando, mas conhecemos mal, com uma perspectiva a partir de dentro, e uma forma de filmar de guerrilha, que garante simultaneamente enorme realismo e intensidade, a fazer lembrar o  melhor de Dardenne, com um pouco de Padilha e Zvyagintsev. “Capernaum” significa “caos” em árabe, e é isso que o filme nos dá a ver, o contínuo caos social, o caos que nós humanos produzimos na relação com os outros e com a realidade, um caos que sabemos ser parte de nós mas que nos habituámos a domar para criar a cultura sobre a natureza.





Falando o filme sobre tantas e imensas vertentes desse caos e dessa relação homem-natureza, foi com algum espanto que no final ao abrir o Letterbox me deparei com as críticas mais populares ao filme, não apenas com notas baixíssimas mas todas focando-se num único ponto desse caos: o controlo da natalidade. A história apresenta uma criança de rua que decide levar os pais a tribunal por o terem feito nascer, dizendo no final que aquilo que quer é que os pais não tenham mais filhos. Para a ala esquerda da crítica, caiu o “carmo e a trindade”, dizem-nos que isto é um filme eugénico, a realizadora logo atacada de pertencer à direita libanesa e andar a fazer dinheiro à custa dos pobres, um filme que não entende que o problema são os políticos e os senhores da guerra, e depois vem apontar o dedo aos pobres pais e ao sexo desenfreado. Estas críticas são imensamente populares, ainda para mais porque em contra-corrente à chamada burguesia de Cannes que ousou dar um prémio a tal filme, mostrando que quem vai a tais festivais é tudo gente que vive numa bolha e não percebe nada deste mundo.

Talvez todos estes pseudo-defensores dos direitos de todos terem os filhos que quiserem, devessem ter atentado na sigla que surge colada ao casaco da criança que percorre todo o filme e diz SPSS. Talvez pudessem ter parado para pensar que SPSS é um software usado pelas Ciências Sociais para compreender os problemas das sociedades, e ajudar a encontrar formas de melhorar as vidas dessas pessoas. Talvez se estes críticos compreendessem um pouco melhor o mundo em que vivem, soubessem que nos países ricos em que vivem, existe todo um sistema de saúde nacional montado, que faz exatamente isto, que tem todo um sistema de Planeamento Familiar montado que passa pela oferta de consultas, informação e acesso gratuito aos mais diversos meios anticoncepcionais, tudo para evitar o descontrolo e insustentabilidade dessa natalidade.

Mas o filme é muito mais do que essa banal defesa do controlo de natalidade, o filme mostra a que ponto pode chegar um lugar, Beirute, que já foi a Paris do médio-oriente nos anos 1960, e que por causa de uma guerra-civil motivada pela força das convicções religiosas, se deixou afundar e autodestruir. A realizadora, Nadine Labaki, já tinha atacado o problema das religiões no filme “Where Do We Go Now?” (2011) usando como fundo a Lisístrata de Aristófanes, dando conta de uma realizadora que não faz filmes apenas porque é giro, mas porque sente a necessidade de pôr o dedo na ferida. E isso mesmo voltou a fazer neste “Capernaum”, pondo a nu os problemas da sociedade libanesa mostrando-lhes o que vai mal no seu país, apontando o dedo sem pudor, e dizendo bem alto que é preciso fazer alguma coisa. Sim, porque existe uma sociedade libanesa que vê cinema, o filme não foi feito para os senhores europeus ou americanos poderem apreciar a arte que se faz nos países “pobres”.

Nadine Labaki e Zain Al Rafeea em rodagem. Numa entrevista Labaki refere que todo foi filmado sem quais acessos especiais nem cortes de trânsito, incluindo a atriz da Etiópia chegou mesmo a ser presa durante a rodagem por não ter papéis.

Um filme destes facilmente cairia na exploração da pobreza, do sentimento fácil, apelando meramente à pena e compaixão, mas nem aí têm razão os seus detractores, apenas no final Labaki permite uma tal sequência. Todo o filme está centrado num personagem que é uma criança de 12 anos, Zain, muito franzina, mas imensamente resiliente, que nunca se vai abaixo por mais fundo o lugar em que se encontre, luta sempre, até ao final. Não há aqui qualquer exploração sentimentalista, antes existe sim o enaltecimento das qualidades humanas, daquilo que nos motiva a lutar todos os dias, a justiça, e daquilo que mantém os humanos em pé, a solidariedade e a empatia. Labaki utiliza os personagens como veículos da força humana capaz da sobrevivência nos mais inóspitos lugares, lutando contra todos os problemas recorrendo à inteligência armados pela justeza.

Temos de aceitar que a construção de Zain é magistral, não apenas pela performance ímpar da criança (ela própria um refugiado sírio na Líbia, hoje a viver na Noruega com os seus pais) mas pela composição criada para a sua apresentação, que põe em evidência desde o início o modo como a inteligência e o espirito crítico faz a diferença num mundo em que todos se limitam a seguir os exemplos à sua volta. Os seus pais quando questionados pelo tribunal é apenas isso que dizem, que foram assim tratados pelos seus pais, e por isso como eles continuam a fazer o mesmo. Mas Zain não se limita a fazer o mesmo que os seus pais ou os amigos do bairro, porque Zain não se limita a estar parado em casa, todos os dias tem de partir à luta, empurrado pelos pais e pela necessidade de alimentar todos aqueles irmãos. E é dessa luta diária que Zain extrai que lutando poderá conseguir mais, que fazendo outras opções poderá chegar a algo diferente, e não limitar-se a aceitar o mínimo que lhe querem oferecer. Existem duas cenas absolutamente excecionais e instigantes, uma inicial em que Zain dá a sua camisola à sua irmã para que ela consigo controlar o fluxo menstrual, e possa esconder à sua mãe que já entrou na puberdade, e uma outra em que Zain surge a aperfeiçoar o sotaque sírio para poder dirigir-se a um centro de apoio a refugiados sírios e assim conseguir comida para ele e para o bebé de 1 ano de quem toma conta.

Podemos dizer que o filme arrisca excessivamente, que quase se poderia ler como um dedo apontado à parte da sociedade em questão, atirando-lhes todas as culpas pelo seu insucesso, que é uma clara visão de direita, de que os pobres são pobres porque o querem ser. Mas querer ver tal mensagem no filme de Labaki, só pode partir de quem se ocupa de deturpação das mensagens e convicções dos outros. Se realmente o problema fosse esse, e fosse isso que corresse nas veias de Labaki, porque raio iria ela mostrar que pode brotar tanta inteligência de uma criança vinda de uma família tão indigente? Porque raio colocar em cena uma refugiada da Etiópia que tem de fugir para a clandestinidade porque os patrões ricos para quem trabalha não admitem empregadas grávidas? Porque raio colocar tanta enfâse nas repugnantes leis que permitem ter homens a casar com crianças de 11 anos?

Ainda bem que a crítica internacional soube compreender esta obra e agraciar a sua receção, só tenho pena que os júris do BAFTA e do Oscar não tenham também compreendido, tendo deixado-se seduxir por um muito inferior "Roma" (2018).

fevereiro 11, 2018

A cultura de imitação chinesa

É um dos pilares da civilização, base da educação e sobrevivência, o ato de imitar. Começa na figura dos pais, segue para os irmãos e familiares, continua com os amigos, depois colegas de trabalho, e nunca termina. No entanto existe uma distintiva atitude perante este ato, intrinsecamente humano, entre as culturas ocidental e oriental. No ocidente, esquecemos a importância da imitação, aceitamos o remix com dificuldade, já no oriente, a imitação é vista como o objetivo último. Se já não nos surpreende ver todo o tipo de cópias de roupas ou eletrodomésticos de marcas europeias criadas na China, ver cidades ocidentais completamente replicadas do outro lado do planeta ainda nos espanta.

Tianducheng, China

O boom económico, movido por um capitalismo assente numa escala gigantesca, tem permitido à China desenvolver-se nas mais diversas direções, mesmo naquelas em que nenhum ocidental algum dia pensaria. Já sabíamos que existiam cidades fantasma gigantescas por lá, com os números a mostrar que a China se tornou também numa fábrica de cimento, mas ter cidades réplica, como Tianducheng de Paris, ou Suzhou com a sua própria Tower Bridge, ou uma Thames Town é algo que nos provoca e questiona. Os jornais referem-se a este fenómeno, como "falso", "bizarro" ou até mesmo como "roubo".

Tianducheng, China

Tower Bridge, Suzhou, China

No ocidente somos movidos por uma "necessidade" de nos singularizarmos, de nos tornarmos diferentes, não queremos ser bons, queremos ser melhores, a imitação é vista como ato menor e de incapacidade. Já no oriente, base da cultura assente na colaboração em vez da competição, a imitação indica respeito, o conhecimento e aceitação do outro, o "ser igual" é o objetivo, não o "ser melhor". Isto explica muitas das diferenças entre a China e os EUA, nomeadamente das leituras que fazem dos valores do copyright, da inovação, da criatividade e arte, e da vida.

Apenas para nos provocar e desafiar, deixo algumas constatações:
Criámos a ideia de que se não nos destacarmos não sobreviveremos por habitarmos um mundo com excesso de população, no entanto vivemos num continente que nem metade da população da China possui. 
A Europa viveu durante muito tempo entre estes dois pólos, gerindo a relevância entre a competição e a colaboração, no entanto nas últimas duas décadas, em contra-ciclo com os valores de união que conduziram ao alargamento dos países da União Europeia, passou a adotar mais e mais lógicas societais diretamente importadas dos EUA. 
Não existe original porque não existe criação no vazio, a base da criação é a imitação, no entanto desprezamos por completo aquele que imita.

dezembro 29, 2017

It's Complicated (2014)

O livro de Danah Boyd, "It's Complicated: The Social Lives of Networked Teens", teve grande impacto quando saiu. Na altura marquei-o para ler, mas fui adiando porque do que fui lendo, dizia pouco que me surpreende-se. Agora que o li, e continuando a dizer que não traz nada novo, se visto como livro de divulgação de ciência, acho que traz algo novo, mas mais importante que isso, algo imensamente relevante para a sociedade geral. O discurso sobre as tecnologias e os adolescentes nos media e numa grande parte da cultura que se vai produzindo está completamente desfasado da realidade. 


Aliás esse desfasamento é tão grande que se alguém parasse para tentar lê-lo com sentido, veria a sua esquizofrenia, já que por um lado diz que os adolescente são muito precoces com as tecnologias, mas por outro lado são muito ingénuos com a sua privacidade e com os perigos que correm. E é exatamente este discurso feito de mitos que Dana Boyd desmonta ao longo de todo o livro. Boyd não é apenas uma professora universitária, fechada na redoma da academia, o facto de trabalhar numa das mais relevantes empresas de tecnologia, a Microsoft, como investigadora social principal, dá-lhe uma experiência ímpar ao juntar os dois lados: a academia e suas metodologias; e a indústria e suas tecnologias. Boyd conhece os adolescentes, porque os estudou de modo metódico ao longo de anos, mas conhece também todas as tecnologias que esses adolescentes usam, por dentro.

A metodologia seguida por Boyd:
“To get at teens’ practices, I crisscrossed the United States from 2005 to 2012, talking with and observing teens from eighteen states and a wide array of socioeconomic and ethnic communities. I spent countless hours observing teens through the traces they left online via social network sites, blogs, and other genres of social media. I hung out with teens in physical spaces like schools, public parks, malls, churches, and fast food restaurants.
To dive deeper into particular issues, I conducted 166 formal, semistructured interviews with teens during the period 2007–2010.2 I interviewed teens in their homes, at school, and in various public settings. In addition, I talked with parents, teachers, librarians, youth ministers, and others who worked directly with youth. I became an expert on youth culture. In addition, my technical background and experience working with and for technology companies building social media tools gave me firsthand knowledge about how social media was designed, implemented, and introduced to the public. ”
O que nos diz Boyd sobre os Nativos Digitais
“As sociologist Eszter Hargittai has quipped, many “teens are more likely to be digital naives than digital natives.” Eszter Hargittai 
“Media narratives often suggest that kids today — those who have grown up with digital technology — are equipped with marvelous new superpowers. Their multitasking skills supposedly astound adults almost as much as their three thousand text messages per month. Meanwhile, the same breathless media reports also warn the public that these kids are vulnerable to unprecedented new dangers: sexual predators, cyberbullying, and myriad forms of intellectual and moral decline, including internet addiction, shrinking attentions spans, decreased literacy, reckless over-sharing, and so on. As with most fears, these anxieties are not without precedent even if they are often overblown and misconstrued. The key to understanding how youth navigate social media is to step away from the headlines—both good and bad—and dive into the more nuanced realities of young people.”
E sobre a Identidade e os “contextos colapsados”
“Mark Zuckerberg, the founder of Facebook, is quoted as having said, “Having two identities for yourself is an example of a lack of integrity.” 
“Even when teens have a coherent sense of what they deem to be appropriate in a particular setting, their friends and peers do not necessarily share their sense of decorum and norms.” 
“What makes this especially tricky for teens is that people who hold power over them often believe that they have the right to look, judge, and share, even when their interpretations may be constructed wholly out of context.” 
“A context collapse occurs when people are forced to grapple simultaneously with otherwise unrelated social contexts that are rooted in different norms and seemingly demand different social responses. For example, some people might find it quite awkward to run into their former high school teacher while drinking with their friends at a bar. These context collapses happen much more frequently in networked publics.”
“In Iowa, I ended up casually chatting with a teen girl who was working through her sexuality. She had found a community of other queer girls in a chatroom, and even though she believed that some of them weren’t who they said they were, she found their anonymous advice to be helpful. They gave her pointers to useful websites about coming out, offered stories from their own experiences, and gave her the number of an LGBT-oriented hotline if she ran into any difficulty coming out to her conservative parents. Although she relished the support and validation these strangers gave her, she wasn’t ready to come out yet, and she was petrified that her parents might come across her online chats. She was also concerned that some of her friends from school might find out and tell her parents. She had learned that her computer recorded her browser history in middle school when her parents had used her digital traces to punish her for visiting inappropriate sites. Thus, she carefully erased her history after each visit to the chatroom. She didn’t understand how Facebook seemed to follow her around the web, but she was afraid that somehow the company would find out and post the sites she visited to her Facebook page. In an attempt to deal with this, she used Internet Explorer to visit the chatroom or anything that was LGBT-related while turning to the Chrome browser for maintaining her straight, school-friendly persona. But still, she was afraid that she’d mess up and collapse her different social contexts, accidentally coming out before she was ready. She wanted to maintain discrete contexts but found it extraordinarily difficult to do so. This tension comes up over and over again, particularly with youth who are struggling to make sense of who they are and how they fit into the broader world.” 
E ainda sobre privacidade:
“Just because teenagers use internet sites to connect to other people doesn’t mean they don’t care about their privacy. We don’t tell everybody every single thing about our lives.... So to go ahead and say that teenagers don’t like privacy is pretty ignorant and inconsiderate honestly, I believe, on the adults’ part.”
Deixo também algumas conclusões gerais que me parecem sintetizar muito bem todo o espírito do livro:
“It is easy to make technology the target of our hopes and anxieties. Newness makes it the perfect punching bag. But one of the hardest—and yet most important—things we as a society must think about in the face of technological change is what has really changed, and what has not (..) “It is much harder to examine broad systemic changes with a critical lens and to place them in historical context than to focus on what is new and disruptive.” 
“teens are as they have always been, resilient and creative in repurposing technology to fulfill their desires and goals. When they embrace technology, they are imagining new possibilities, asserting control over their lives, and finding ways to be a part of public life. This can be terrifying for those who are intimidated by youth or nervous for them, but it also reveals that, far from being a distraction, social media is providing a vehicle for teens to take ownership over their lives.”

O livro está editado em Portugal pela Relógio d’Agua sob o título “É Complicado. As Vidas Sociais dos Adolescentes em Rede” (2015).

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017

maio 16, 2015

Subempregados

"Underemployed" (2015) é uma banda desenhada autobiográfica de Jackie Roche que aborda o impacto da Grande Recessão sobre os recém-licenciados, apontando a quase ausência de emprego qualificado, incapaz de dar conta de vidas cheias de sonho e energia.



"Underemployed" (2015) de Jackie Roche

A Grande Recessão nasceu do rebentar da crise imobiliária nos EUA, em 2007/2008, tendo um impacto muito para além da geografia dos EUA, atingindo praticamente todo o globo, a tempos diferentes. Juntamente com esta, o avanço tecnológico passou a funcionar como tábua de salvação na redução de custos, para empresas e instituições, gerando ondas sucessivas de diminuição de emprego desde então. Em breve estaremos a fazer 10 anos pós-início da crise, e esta não deu ainda quaisquer sinais de recuperação. Porque se até aqui quem detinha muito dinheiro ia investindo facilmente na bolsa, em bancos, em empresas e em países, agora com toda a economia em risco contínuo de colapso, em que as redes de dinheiro público foram também já esgotadas, quem tem muito dinheiro prefere investir na compra de "arte".

Daqui resulta o filme que podemos experienciar ao longa desta magnífica banda-desenhada de Roche, que nos dá conta de um casal com licenciaturas e mestrados, em boas universidades, e mesmo assim não vai além dos trabalhos temporários, sazonais, part-time, e por fim freelance. Isto corrói-me por dentro, porque não se está a passar apenas nos EUA, vejo isto em Portugal, para todo o lado que me viro. Vejo jovens altamente qualificados, com tanto para dar à sociedade, ao país, mas totalmente atados de pés e mãos, sobrando apenas a emigração, como se lá fora tudo se resolvesse por simples passe de mágica!

Esta é uma banda-desenha que bate forte porque não fala de algo no passado, de algo que aconteceu à sociedade, com alguém que teve a pouca sorte, mas que relata o presente, o aqui e agora, duro como a vida que precisa de continuar a ser vivida, dia após dia.

Ler e ver a obra completa.

maio 19, 2014

A importância das bibliotecas

"Why Libraries Matter" (2014) é um pequeno documentário sobre as livrarias públicas de Nova Iorque que desvela um pouco sobre vidas reais do mundo contemporâneo. Um mundo em que nos habituámos a acreditar que porque todo o conhecimento está disponível na internet, as escolas e as bibliotecas deixaram de fazer sentido. Porque está na internet, qualquer pessoa pode aceder-lhe, qualquer um se pode auto-formar! O filme foi criado por Julie Dressner e Jesse Hicks e distribuído online pelo The Atlantic.




Ora o que vemos neste pequeno filme é exactamente aquilo que tenho vindo a discutir aqui a propósito da sociedade de informação e das alucinações do ensino à distância para milhões de pessoas (MOOCs). Os seres humanos precisam de contacto humano, precisam de interacção humana. O que aqui vemos são redes de relações montadas a partir de um centro nevrálgico social que é neste caso específico, a Biblioteca Pública. As Bibliotecas Públicas funcionam aqui como verdadeira extensão das Escolas Públicas, mantendo a ligação ao conhecimento para quem já não tem acesso à escola, e estendendo essa ligação para quem ainda a frequenta.

O mais interessante é verificar que a Biblioteca soube adaptar-se às novas necessidades dos seus visitantes, que já não a procuram apenas para aceder a livros, mas a continuam a procurar para aceder ao mesmo de sempre, o conhecimento. E fazem-no nestas bibliotecas porque ao contrário de outros exemplos, não se deixaram ficar paradas na posição de meros armazéns de livros. A Biblioteca sempre foi um centro de conhecimento, e numa sociedade de informação a sua importância não se perdeu, antes pelo contrário, aumentou tremendamente. Mais do que nunca, a função do bibliotecário é de proximidade com os visitantes, de guia, de criação de humanismo na relação com os registos e objectos desprovidos de vida.

novembro 19, 2013

robôs e o consumismo

Mais uma pequena curta de animação criada pela Big Lazy Robot, de quem ainda no mês passado aqui tinha trazido a curta Keloid (2013). Agora com iDiots (2013) resolveram deixar a ficção-científica para trás, assim como espetáculo visual, e criaram uma pequena pérola de crítica social. Muitos irão identificar-se, e questionar-se sobre as suas ações e comportamentos, nomeadamente os meus colegas mais geeks e mais próximos de uma marca que todos conhecem. Mas não se iludam com a marca, a crítica é sobre todos nós.


Como dizem os criadores, "é apenas uma pequena brincadeira, e não deve ser levada demasiado a sério". Apesar disso, não deixa de ser um objecto acutilante, capaz de desencadear reflexão, e não apenas o deslumbramento pela técnica do filme. Não é que nos abra uma nova perspectiva sobre o mundo que habitamos, já todos percebemos que o mundo do consumismo é isto, mas nunca é demais relembrar-nos. O mais impactante, acaba por estar na analogia entre nós e aquelas caixinhas vermelhas, supostamente desprovidas de um sentir humano. Será que nos estamos a transformar neles?

fevereiro 09, 2013

Steam quer ser uma App Store

Na semana passada publiquei um artigo na Eurogamer sobre os problemas da "multidão" nas App Stores. A ausência de curadoria dos jogos disponibilizados na App Store faz com que o número de jogos aí disponíveis tenda para o infinito em termos do tempo que temos disponível para os jogar. Pois esta semana Gabe Newell veio ingenuamente (será mesmo?) dizer que quer transformar o Steam numa App Store.

"One of the worst characteristics of the current Steam system is that we've become a bottleneck. There's so much content coming at us that we just don't have enough time to turn the crank on the production process of getting something up on Steam. So whether we want to or not, we're creating artificial shelf space scarcity.
So the right way to do that is to make Steam essentially a network API that anyone can call. Now, this is separate from issues about viruses and malware. But essentially, it's like, anyone can use Steam as a sort of a distribution and replication mechanism.
It's the consumers who will draw it through. It's not us making a decision about what should or shouldn't be available. It's just, you want to use this distribution facility? It's there. And customers decide which things actually end up being pulled through. So Steam should stop being a curated process and start becoming a networking API." [Gabe Newell, Video]
É depois muito interessante ler os comentários ao discurso de Newell na Gamasutra, pensei eu que iria encontrar ali a comunidade delirante com estas ideias, mas não. Deixo aqui alguns dos melhores comentários que vêm totalmente de encontro ao que disse no artigo na Eurogamer a propósito da App Store. É claro que a Gamasutra é uma revista seguida essencialmente por criadores, e a perspectiva que aqui podemos ler é a de alguém que sabe o que custa desenvolver e garantir o retorno investido no seu trabalho.

Simon Ludgate: "I rarely buy any games for my Google Android phone because of the lack of curation: I have no way of sifting through heaps and heaps of crapware to find a game worth playing, let alone buying. If the same thing happened to Steam I'd be forced to bail out."

Robert Boyd: "Right now, Steam sits at a happy medium between extremely curated storefronts like XBLA and anarchy like we see in the mobile space. If they don't tread carefully here, they could ruin that delicate balance."

Ameet Virdee: "I think this is quite simply about profitability. He wants to leverage the goodwill he's developed with Steam so there's less work for them for more gain (a traditional Valve practice, and nothing bad in itself for a business). You can make and lose money quite easily as a speculative trader, but you always make money as a trade broker. By letting anyone set up a steam store he's letting them take the risk and make the curating effort, while taking a cut from everything that actually sells...essentially crowd-sourcing the approval process."

Este último comentário pode parecer algo cínico face a tudo o que conhecemos da Valve e de Gabe Newell, mas é um comentário correcto. No fundo sintetizando tudo, temos Newell a dizer - "Nós não temos recursos para fazer a curadoria de tudo o que nos chega, por isso em vez de investirmos nos recursos, vamos passar esse trabalho para vocês".


Aliás este é um discurso muito em voga em tudo o que mexe com a internet, desde a arte à política. A internet criou os meios para que todos possam dar a sua opinião, o problema é que alguns destes iluminados começaram a confundir a opinião da multidão com democracia. Para quem estiver interessado em perceber em maior profundidade as problemáticas por debaixo desta falácia aconselho vivamente o texto Why Social Movements Should Ignore Social Media de Evgeny Morozov publicado esta semana na New Republic. Um magnífico texto de análise e resposta ao livro Future Perfect: The Case For Progress In A Networked Age (2012) de Steven Johnson.

julho 17, 2011

contador online: jogos, mobile, social e economia

Um contador da produção digital que passa pelo mundo online dividido em quatro categorias: Social, Mobile, Games, Heritage. Cada uma destas categorias dá que pensar, naquilo que o mundo se transformou, na quantidade de informação produzida e na quantidade de criatividade em constante ebulição.
É preciso ter em atenção que os valores aqui apresentados não são reais, menos ainda relatados em tempo real, são antes uma estimativa aproximada realizada pelo autor da ferramenta com base em várias fontes que procura manter atualizadas. As fontes podem ser consultadas no site do autor.

 Games in 1 day

Mobiles in 1 day

Social in 1 day

 Heritage in 1 day

outubro 04, 2010

Televisão anos 90

Depois do documentário de André Valentim Almeida onde se analisava a geração e o consumo de TV nos anos 80, vem agora um documentário sobre a geração que consumiu a TV dos anos 90 por Cristina Boavida, Zapping - 18 anos de televisão privada em Portugal (2010). Se traçar o perfil do consumo televisivo dos anos 80, com 2 canais não é difícil, traçar o dos anos 90, com 4 canais, também não. Mas traçar esse consumo no momento actual é outra coisa.

A melhor expressão e talvez a que mais qualifica a TV portuguesa dos anos 90 é dada por Alberta Marques Fernandes, a cara que abriu a TV privada em Portugal, ao dizer, "dessacralizámos a televisão" ao mesmo tempo que Felisbela Lopes, professora da Universidade do Minho, define o efeito como um salto para o abismo do "voyeurimo".

Já quando o António Barreto nos diz que "o Espaço Politico hoje é a Televisão", está a falar desfasado no tempo, como se estivéssemos em 2000 e não em 2010. António Barreto fala a partir do trabalho que fez no excelente documentário Portugal, um retrato social (2007), mas nesse trabalho terminaram a pesquisa sob os auspícios da corrente vinda dos anos 90. Uma corrente que se vem fechando ao longo da primeira década de 2000 e que em 2010 é já totalmente diferente. Em 2010 Portugal e o resto do mundo é diferente.

É verdade que nas três décadas assistimos a 3 grandes transformações da relação da Televisão com o espaço mediático e social:

. nos anos 80 assistimos à abertura ao mundo externo, com a invasão dos programas estrangeiros (Animação e Cinema)

. nos anos 90 assistimos à abertura às pessoas do país, com programas populares (Big Show Sic, Perdoa-me, etc) e com os "visionários" da década Ediberto Lima e Emídio Rangel.

. nos anos 2000 apesar de José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes terem pegado na galinha de ovos de ouro de Ediberto e Rangel, e que lhe valeu o reconhecimento (leia-se audiências) durante toda a primeira metade da década (Big Brother, Jornal da Sexta, etc.), na segunda metade a alteração da paisagem mediática deu-se em profundidade.

Em 2010 podemos ver como a questão já não passa pela Linha Editorial, nem pela Grelha de Programação, nem pelo Reality Show mais alucinado, não é mais uma questão de conteúdos mas radicalmente de forma ou acesso aos mesmo. Com o cabo e a diversidade de Canais Temáticos, a Internet e a possibilidade de ver e ouvir o que se quer, e as redes sociais que levaram o conceito de proximidade onde a televisão nunca poderia ter levado deu-se a descentralização do meio de acesso às massas.
A televisão como caixa continua em casa das pessoas, mas tem hoje muito mais uma função de Montra do que de Janela. Na montra colocamos o que queremos, na janela vemos o que nos é dado a ver. É uma montra tecnologicamente evoluída que nos permite mudar a grande ritmo o que vemos, segundo não só as nossas preferências, mas também segundo os nossos estados de espírito e de humor do dia, e da hora. O media passou de "T" maiúsculo a "t" minúsculo perdendo a capacidade de agir como media e passou a agir como mero suporte dos conteúdos.

Como é dito a fechar a reportagem, a televisão que conhecemos, e que teve um papel relevantíssimo durante quase 50 anos de história da humanidade, "está hoje em vias de extinção", fruto da transformação mais importante ocorrida na nossa história enquanto espécie. A alteração de que falamos é a transformação do processo de comunicação do analógico em digital e a disseminação do canal de transmissão bidireccional que é a internet tornando-se num canal omnipresente.



Zapping - 18 anos de televisão privada em Portugal (2010)