A apresentar mensagens correspondentes à consulta criatividade ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta criatividade ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens

outubro 20, 2018

Vygotsky: Imaginação e Criatividade

Quanto mais leio Vygotsky (1896-1934) mais rendido ao seu trabalho fico. Impressiona-me como conseguiu ele num tempo em que a psicologia era ainda algo bastante rudimentar desenvolver todo o seu trabalho com tanto método e objetividade. E se pensarmos que ele foi contemporâneo de Freud (1856-1939) impressiona ainda mais ver como não se deixou seduzir pela psicanálise, menos ainda pelas suas metodologias (ou ausência delas) para produzir o seu contributo. E por fim, mas não menos impressionante, é sabermos que todo o trabalho que nos deixou, e é bastante, foi criado em apenas 10 anos de vida, tendo morrido com apenas 37 anos. Neste livro "Imaginação e Criatividade na Infância" (1930) ataca duas das suas áreas centrais de interesse: a psicologia da arte e a psicologia do desenvolvimento. Assim ao longo das 100 páginas somos brindados com um conjunto de teorias, conceitos e explicações sobre o modo como a criatividade e a produção artística surge na criança, e se desenvolve no adolescente e adulto.


Não farei uma análise crítica do livro, move-me mais o interesse de sublinhar e reter o conhecimento apresentador Vygotsky. Deste modo destacarei aqui três secções do livro: uma primeira dedicada à definição da criatividade; uma segunda relativa ao processo criativo em ação; e uma terceira sobre o modo de potenciação da criatividade. Assim, sobre o primeiro ponto, Vygotsky dedica-lhe todo o primeiro capítulo, no qual acaba por discutir em profundidade não apenas a criatividade mas também a fantasia que é algo que Bruno Munari defende também como central na criatividade, e já aqui tinha dado conta a propósito do seu livro "Fantasia" (1977).

O que é a criatividade (ver capítulo 1)

"Qualquer ato humano que dá origem a algo novo é referido como um ato criativo, independentemente do que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou uma construção da mente ou do sentimento que vive e se encontra apenas no homem. Se observarmos o comportamento do homem e toda a atividade que desenvolve, com facilidade reparamos que podemos distinguir dois tipos de atividade. A primeira, que podemos designar de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de modo intrínseco, à nossa memória; a sua essência consiste no facto de o homem reproduzir ou repetir modos de comportamento já anteriormente elaborados e produzidos ou ressuscitar traços de impressões anteriores." (p.21)

"Além da atividade reprodutora, é fácil notar no homem outro tipo de atividade que combina e cria. Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socialista, ou um quadro de uma parte da vida passada e da luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não repito impressões vividas por mim outrora. Não restabeleço simplesmente os traços de excitações nervosas pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade, eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado, nem desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo, formar uma ideia, uma imagem ou um quadro." (p.23)

"O cérebro não é apenas um órgão que se limita a conservar e reproduzir a nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão combinatório, que modifica criativamente e cria, a partir dos elementos da experiência passada, novas situações e novos comportamentos. (..) À atividade criadora baseada nas capacidades combinatórias do nosso cérebro, a psicologia chama imaginação ou fantasia." (p.23-24)


Como se processa o ato criativo (ver capítulo 3)

"Antes de criar a personagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstoi teve de detetar as características particulares das duas mulheres que lhe eram próximas; se não o fizesse, não as conseguiria misturar ou fundir na personagem de Natacha. A esta escolha de traços individuais e o abandono de outros podemos na verdade denominar dissociação. Este processo é muito importante em todo o desenvolvimento mental do homem, serve de base do pensamento abstrato e é o fundamento da formação de conceitos." (p.48)

"Vemos deste modo que o exagero, tal como a imaginação, de um modo geral, é tão necessário na arte como na ciência. Não fosse esta capacidade, que se manifestava de modos tão divertidos no conto da menina de cinco anos e meio, a humanidade não seria capaz de criar a Astronomia, a Geologia e a Física.
A parte constituinte seguinte nos processos imaginativos é a associação, ou seja, a junção dos elementos dissociados e alterados. Como já foi notado anteriormente, esta associação pode ter lugar sobre bases diferentes e tomar formas diferentes, que vão da união puramente subjetiva de imagens até à junção científica objetiva, como a que evidencia, por exemplo, a representação geográfica." (p.52)

"Qualquer inventor, mesmo que seja um génio, é sempre o produto do seu tempo e época. A sua criatividade parte de necessidades que foram criadas antes dele e apoia-se nas possibilidades que residem fora dele. É por isso que notamos uma sucessão rigorosa na história do desenvolvimento da técnica e da ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica surge antes de se criarem as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento. A criatividade representa um processo histórico contínuo, em que toda a forma subsequente é definida pela anterior. É exatamente isto que explica a distribuição desproporcional dos inovadores e cientistas entre diferentes classes sociais. As classes privilegiadas dão incomensuravelmente uma percentagem maior de criadores na ciência, na técnica e na arte, porque, de facto, nestas classes existem mais condições para a criação." (p.55)


Os requerimentos da Criatividade (ver capítulo 4)

"Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para afirmar que a fantasia na idade infantil é mais rica e variada do que a fantasia no adulto. No entanto, esta opinião não encontra fundamentação na investigação científica. Sabemos que a experiência da criança é mais pobre do que a experiência do adulto. Sabemos também que os seus interesses são mais simples, elementares e mais pobres; por fim, a sua relação com o seu contexto é igualmente menos complexa, desprovida da precisão e variedade do comportamento da pessoa adulta, sendo que todos estes fatores são importantíssimos definidores do trabalho da imaginação. A imaginação na criança, como mostra esta análise, não é mais rica, mas mais pobre do que a imaginação do homem adulto; ao longo do processo de desenvolvimento da criança também se desenvolve a imaginação e atinge a maturidade na idade adulta." (p.58)

"a imaginação, ao longo do seu desenvolvimento, passa por dois períodos divididos por uma fase crítica. A curva IM representa o desenvolvimento da imaginação no primeiro período. Eleva-se bruscamente e depois, durante bastante tempo, mantém-se no nível atingido. A linha RO, a tracejado, representa o percurso do desenvolvimento da inteligência ou do raciocínio. Este desenvolvimento começa, como se pode ver na figura, mais tarde e aumenta mais lentamente, porque requer uma grande acumulação de experiência e uma maior complexidade na sua elaboração. É só no ponto M que as duas linhas do desenvolvimento da imaginação e do desenvolvimento da inteligência coincidem (..) "A partir do momento do encontro das duas curvas, a da imaginação e a do pensamento no ponto M, o desenvolvimento posterior da imaginação segue, como mostra a linha MN, sensivelmente paralelo à linha do desenvolvimento do pensamento XO. A divergência típica da idade infantil desaparece; a imaginação, estreitamente associada com o pensamento, segue-o agora ao mesmo passo." "uma outra variante, que na figura está simbolizada pela curva MN’, que decresce rapidamente «A imaginação criativa diminui e isto é o caso mais frequente. A exceção é devida apenas aos mais dotados de imaginação talentosa, a maioria dos quais entra a pouco e pouco na prosa da vida quotidiana, enterra os sonhos da juventude, considera o amor uma quimera, etc.»" (p.60)

"A criança pode imaginar muito menos coisas do que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua imaginação e controla-os menos, e por isso a imaginação, no dia a dia, no sentido comum da palavra, isto é, algo de irreal ou inventado, é certamente maior na criança do que no adulto. No entanto, não só o material a partir do qual se constrói a imaginação é mais pobre na criança do que no adulto, como também o caráter das combinações que se juntam a esse material é, na sua qualidade e variedade, inferior em relação às combinações realizadas pelo adulto." (p.61)


A tradução foi feita por João Pedro Fróis a partir do russo. Do que comparei com a versão inglesa, posso dizer que a tradução portuguesa é não só cuidada como mais detalhada.

outubro 13, 2019

A centelha que faltou ao relato

Não posso dizer que desgostei —do livro "The Creative Spark: How Imagination Made Humans Exceptional" (2017) — mas no final senti que nada acrescentou, que tudo não passou de um mero relembrar com um redirecionar interpretativo da História. Fuentes faz um levantamento do evolução humana, e apresenta a Criatividade como o elo que tudo fez girar, sem o qual nunca teríamos chegado à espécie dominante que hoje somos. Como premissa é interessante, o problema é que todo o levantamento feito centra-se apenas no elencar dos eventos ocorridos, sem qualquer relação direta ou particular com a criatividade, ou melhor com todo o manancial de teorias e história sobre a Criatividade. No fundo Fuentes limita-se a apresentar a evolução das capacidades cognitivas como fruto dessa suposta criatividade, tendo eu de lhe dar razão, não é algo propriamente novo, podendo ser se este tivesse apresentado variáveis, factores ou qualificativos próprios dessa tal criatividade ao longo da evolução, distintos das meras componentes de inteligência.


Julgo que o maior problema do livro assenta na quantidade de tempo investida a contar histórias sobre a evolução que estamos todos cansados de ler, e eu nem sequer sou especialista em evolucionismo. De certo modo, sofre do problema dos livros académicos que precisam de apresentar todo o lastro de onde partem, tecendo considerações, mas regendo-se especialmente por apresentar e descrever, o que para um livro de divulgação não funciona. Como se não bastasse, a concretização do livro acaba sendo parca, o recontar da evolução do ponto de vista da criatividade pouco ou nada acrescenta ao que hoje sabemos sobre a Criatividade, tendo-se perdido uma premissa que parecia ter bastante para dar.

março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.

dezembro 31, 2012

Melhor 2012: Mais Vistos e Entrevistas

Passou-se mais um ano e é sempre muito interessante olhar para trás e ver o que se fez, o que se publicou, e procurar compreender ao que é que os leitores deste blog deram mais valor. Analisei os 50 artigos mais visitados, e verifiquei que os três tópicos dominantes são: videojogos, audiovisual e criatividade. Sendo que o audiovisual e videojogos estão praticamente empatados. Por outro lado o tópico da Educação aparece apenas uma vez, mas aparece em primeiro lugar, o que denota duas ideias possíveis: escrevo pouco sobre educação, mas é um tópico que interessa a muitos dos que passam por aqui. Assim deixo aqui em destaque os 21 artigos de 2012 mais vistos neste ano, juntamente com um agradecimento a todos os que por aqui passaram.

Mais Vistos de 2012

01. O Fim da Universidade, ou a simples arrogância tecnológica [Educação]

02. "Estrangeiros", estranhezas do absurdo [Arte/Dança]

03. Minecraft of Thrones, dedicação e talento [Criatividade]

04. "Uncharted 3", incapaz de surpreender [Videojogos]

05. História e tecnologia do primeiro videojogo [Videojogos]

06. "Viagem de Bartolomeu Dias" (1995) [Videojogos]

07. Crioestaminal: da culpa irreversível [Audiovisual/Publicidade/Ciência]

08. "Steve Jobs" de Walter Isaacson, e o seu Manifesto [Livros]

09. "Indie Game: The Movie" é simplesmente inspirador [AV/VJ]

10. Regras da Pixar [Criatividade]

11. Jonah Lehrer forjou citações [Livros/Plágio]

12. "Imagine: How Creativity Works" [Livros]

13. Vídeo, Alemanha e Educação [Audiovisual]

14. Inspiração política para criação de Cartoon-Interactivo [Videojogos]

15. Jogos Flash no iOS (iPhone/iPad) [Tecnologia]

16. Nas ondas de um livro [Audiovisual]

17. Usabilidade do iPad em regime de exclusividade [Tecnologia]

18. Videojogos no MoMA [Videojogos]

19. Artigos "estúpidos" na Sábado?! [Videojogos]

20. "O Talento é Sobrestimado" [Livros]

21. Manikako, a auto-estima na criatividade [Criatividade]

Pelo meio dos 50 artigos mais vistos estão as várias Entrevistas que fui fazendo ao longo de 2012, e que são um outro tipo de artigos que atrai muito interesse além dos videojogos, audiovisual e criatividade. Este ano realizei oito entrevistas com criadores e três sobre artefactos - Toren, Randobot, e Nostalgiqa. De notar que não tenho trazido entrevistas com artistas de videojogos nacionais porque os tenho entrevistado para o livro que estou a acabar de escrever sobre a história dos videojogos em Portugal, e que espero que saia no início de 2013. Ficam aqui os links para todas as entrevistas por ordem alfabética.

Entrevistados em 2012
André Sier - Artista Digital
Artur Leão - Senior VFX Artist
Diogo Valente - Director Criativo
José Alves da Silva - Character Designer 3d
Mário Domingos - Artista 3d
Nuno Caroço - Composite Artist
Pedro Mota Teixeira - Professor de Animação 3d
Rui Louro - Artista 3d


Estatísticas
Foram publicados 332 artigos em 2012, para um número de visitas que ascendeu às 208 000. Sendo que cerca de 30% proveio de Portugal, 30% do Brasil, 20% dos EUA e os restantes 20% de países europeus diversos.

julho 09, 2013

o génio criativo

Depois de ter aqui falado de emergência, trago uma TED que vai no sentido oposto, que procura a razão do sentir, não na biologia, nem na ciência, mas no esotérico, num quasi-paranormal. Admito que a meio da conferência quase desisti e desliguei, mas mantive até ao final. Acabou por ser uma palestra muito interessante, com alguns dados bastante curiosos sobre a nossa cultura (ex. Olé, vem de Ala), mas essencialmente porque nos apresenta uma perspectiva da criatividade, nada académica, mas a partir do interior do sentir de uma artista. Elizabeth Gilbert escreveu o bestseller "Eat, Pray, Love".


Na verdade, o que me entusiasmou nesta TED foi a análise que fiz do que Gilbert descreveu, como o génio. Uma personagem imaginária, externa a nós, que nos serve quando estamos inspirados e conseguimos fazer algo brilhante. O lado funcional, é que nos torna humildes, quando criamos algo genial, não fomos nós, mas o nosso génio. Por outro lado é excelente em termos terapêuticos porque quando o trabalho é menos bom, podemos dizer que não é só culpa nossa, mas do génio que não fez o seu trabalho.
"Na Grécia e Roma antigas - as pessoas não acreditavam que a criatividade vinha dos seres humanos. As pessoas acreditavam que a criatividade era um espírito divino criador que vinha para os seres humanos de uma fonte distante e desconhecida, por razões distantes e desconhecidas. Os gregos chamavam a estes espíritos divinos e assistentes da criatividade, "demónios". Sócrates acreditava que tinha um "demónio" que lhe transmitia sabedoria, a partir de longe.
Os romanos tinham a mesma ideia, mas chamavam a este tipo de espírito criativo desencarnado, génio. O que é fantástico porque os romanos na realidade não pensavam que um génio era um indivíduo particularmente esperto. Eles acreditavam que um génio era uma espécie de entidade mágica divina, que vivia literalmente nas paredes do estúdio do artista, que saía, e invisivelmente assistia o artista no seu trabalho e moldava o resultado desse trabalho.
E depois veio o Renascimento e tudo mudou, tivemos esta grande ideia, de colocar o ser humano, como indivíduo, no centro do universo, acima de todos os deuses e mistérios, não havendo mais espaço para criaturas místicas que ditavam a vontade divina. Este foi o início do humanismo racional, as pessoas começaram a acreditar que a criatividade vinha completamente do próprio indivíduo. E pela primeira vez na história, começámos a ouvir as pessoas referirem-se a este, ou aquele artista, como sendo um génio, em vez de "ter" um génio."
Pensei que a uma determinada altura Gilbert procurasse teorizar o assunto, mas esqueci-me que ela é uma criativa, não uma académica. Nesse sentido,  enquanto ela explicava a ideia de um pensamento, uma inspiração que se aproxima de nós, e que tudo tentamos fazer para agarrar, e assim criar algo único, algo surpreendente, que nos transcende, eu só pensava que isto que ela descrevia, só podia ser o momento em que o nosso cérebro está a juntar os vários pedaços de ideias dispersas no nosso cérebro. O momento em que o processo de remix se inicia, e começamos a atribuir estrutura, e a nossa consciência tenta desesperadamente dar-lhe um significando, um padrão, uma representação.
"[Tom Waits] contou-me um dia ia a conduzir na auto-estrada em Los Angeles, e foi quando tudo mudou para ele. Ele ia acelerando e, de repente, ele ouve um pequeno fragmento de melodia, que entra na sua cabeça como inspiração, que vem elusivo e tentador, e ele quere-o, sabem, é lindo, e ele procura-o mas não tem maneira de o conseguir. Não tem um papel, não tem um lápis, não tem um gravador."

julho 14, 2021

Sistematizar é diferente de Inventar

Este livro, "The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention" (2020), deixou-me com impressões mistas, se por um lado compreendo o esforço de Baron-Cohen na tentativa de contribuir para uma sociedade mais inclusiva — a integração de pessoas com autismo — por outro lado, o modo como o faz, seguindo o culto de algumas valências cognitivas, que estão por acaso neste momento na mó de cima — os criadores de tecnologias digitais — acaba por fazer parecer que se posiciona num dos lados da barricada, e assim no esforço e defesa pela inclusão acaba tornando-se discriminador dos que não possuem essas competências. Por outro lado, muito do discurso aqui apresentado é feito com base em muitas impressões suas apenas, ainda que detentor de muitos estudos na área do autismo, tal não lhe oferece suporte à definição do que são processos de invenção e criatividade. Por fim, uma boa parte da discussão no livro é repescada daquilo que tem vindo a dizer ao longo dos últimos 20 anos, acrescentando pouco de novo. 

maio 31, 2012

Imagine: How Creativity Works (2012)

Imagine: How Creativity Works (2012) é o terceiro livro de Jonah Lehrer. Depois de Proust era um Neurocientista (2007) e How We Decide (2009), dois belíssimos livros de divulgação na área das neurociências, traz-nos agora um trabalho à volta das questões da criatividade. Um livro que faz todo o sentido no seguimento de How We Decide, porque a criatividade no fundo, não é mais do que um processo refinado de tomada de decisões, de resolução de problemas.


Em termos gerais o livro é muito interessante, condensa muito daquilo que se tem estudado sobre o assunto em poucas páginas, carregadas de exemplos e estudos que suportam o que se vai alegando. Apesar de me parecer um bom livro, julgo que fica algo abaixo daquilo a que Lehrer nos habituou. Senti o estilo da escrita a aproximar-se demais de alguns bestsellers de divulgação de ciência, como os livros de Malcolm Gladwell ou Daniel Pink, que pegam em meia dúzia de casos e constroem um livro a partir desses casos. Nos seus anteriores dois livros, Lehrer usava os casos apenas como mote para ir ao fundo das questões, para sobre eles trabalhar a forma como ele próprio vê a realidade. Dando a sua visão pessoal, contribuindo para um avanço do pensamento. Aqui por vezes parece que se fica por agregar casos que suportem uma ideia, sem depois a aprofundar na sua visão pessoal.

Síntese de ideias do livro narrado pelo próprio Jonah Lehrer

Apesar de tudo isto é um livro obrigatório. Food for thought, para vos ajudar no vosso caminho. Não é um livro de receitas, mas em certa medida pode quase funcionar como tal. Em termos específicos existem vários momentos altos no livro, que diga-se, lê-se muito rapidamente e fluidamente. Passo assim em revista aqui alguns dos pontos que mais me interessaram desta leitura.


1. Analisar de fora (Outsider)

O livro começa com o caso de R&D do produto Swiffer. Depois dos PhDs em química terem chegado à conclusão que não era possível melhorar mais os produtos de limpeza, a Procter & Gamble resolveu fazer outsourcing numa empresa de design. Pedindo especificamente um produto novo. Estes, ao contrário dos químicos, não foram ver como melhorar o produto, mas foram antes tentar perceber como é que a actividade era realizada, passaram 3 anos a estudar os comportamentos das pessoas que limpam o chão. Gravaram e viram centenas de horas de vídeo, até que um dia viram alguém usar papel de cozinha meio-húmido para limpar o sujo e deitar fora. E foi aqui que se deu a epifania para criar o Swiffer.


O que a Procter & Gamble aprendeu com tudo isto foi que as soluções por vezes têm de vir de pessoas não especialistas, pessoas de fora do meio. Neste sentido Lehrer dá também o exemplo da 3M uma das empresas que mais patentes tem criado nos últimos anos, porque praticamente se dedica apenas à inovação e ao desenvolvimento de novas ideias para outras empresas. E o que estes fazem no seio da empresa, é muito particular. Possuem pessoas de áreas científicas muito distintas que rodam regularmente entre distintas áreas, mesmo que nada tenham a ver com elas. Para além disso existem processos na empresa que sugerem o transporte de técnicas de umas áreas para outras. Depois de ler isto, sem dúvida que a 3M merece um estudo em profundidade relacionado com a noção de transdisciplinaridade.


Com tudo isto a Procter&Gamble e outras empressa resolveram criar o site Innocentive. Neste site depositam os problemas que as suas equipas de R&D não conseguem resolver. E esperam que apareça alguém que seja capaz de oferecer uma solução. Pode parecer uma forma de outsourcing barata, uma vez que no fundo não há investimento. Mas não é disso que se trata. O que está aqui em questão é garantir que pessoas que nada têm que ver com aquelas áreas possam surgir com uma ideia a partir de um ponto nunca antes imaginado possível. É algo que vai muito para além dos focus groups ou inquéritos, porque podemos ter milhares de pessoas a olhar para o problema de ângulos inimagináveis. E só isso per se garantirá à partida avanços e inovação. Aliás Lehrer dá o caso de um físico que resolvia problemas de química,
“Ed Melcarek, a seven-time solver on InnoCentive, perfectly exemplifies this finding. Although Melcarek has a master’s degree in particle physics, he has never solved a physics challenge on InnoCentive. Instead, he peruses the chemistry and engineering categories on the site, searching for problems that might benefit from his expertise.”
2. Epifania e Serendipidade

A meio do livro Lehrer tenta definir mais em concreto o conceito de criatividade, acabando por o rotular de momento de epifania. Aquele momento em que a nossa mente vê claramente a ideia cristalizada, em que se faz luz. Um momento que é normalmente precedido de serendipidade na associação de ideias mentais. Lehrer fala nas ondas Alfa, que se verificam nos momentos que precedem a epifania. É como se estas varressem o nosso cérebro à procura de ligações, até descobrir o caminho entre ligações correcto. Quando encontram dá-se a epifania. Ao que parece estas ondas alfa não se activam de modo igual em todos nós, e parece, não é uma verdade absoluta, que as pessoas que produzem doses mais elevadas destas ondas são normalmente mais criativas, mais capazes de gerar novas ideias.


Em termos menos técnicos, Lehrer define de forma muito interessante o que diferencia a epifania do pensamento analítico, dedutivo ou indutivo. É que aqui a ideia aparece-nos à mente de modo quasi-instântaneo, como que empurrada pela serendipidade, enquanto no analítico sentimos claramente a nossa mente a deambular por entre ideias e pensamentos em busca de soluções lógicas.

3. Trabalho e Foco

Mas a criatividade não é, de todo, apenas fruto da serendipidade, e de ondas alfa. Lehrer dá-nos muitos exemplos ao longo do livro que demonstram o quanto a criatividade advém e muito do trabalho duro e persistente.
“The reality of the creative process is that it often requires persistence, the ability to stare at a problem until it makes sense. It’s forcing oneself to pay attention, to write all night and then fix those words in the morning. It’s sticking with a poem until it’s perfect; refusing to quit on a math question; working until the cut of a dress is just right. The answer won’t arrive suddenly, in a flash of insight. Instead, it will be revealed slowly, like a coastline emerging from the clouds.”
Exemplos disto são a quantidade enorme de cientistas, artistas e outros que tomavam drogas para acelerar o seu trabalho, para se manterem acordados, tudo em nome da persistência da busca pelas respostas. E daqui Lehrer vai falar-nos de um caso extremamente interessante que é o de Clay Marzo, um surfista campeão mundial com Síndrome de Asperger. O que o Asperger faz é normalmente levar a pessoa a evitar o contacto social e a concentrar-se intensamente numa actividade. Neste caso Marzo só consegue estar bem consigo próprio estando dentro de água, e a surfar. Pode passar mais de 8 horas diárias a fazê-lo.



E é isto que faz a diferença, alguém que treina, e treina, e treina vai tornar-se cada vez melhor. Não porque é um criativo, com excesso de ondas Alfa, mas por focar-se, treinar, experimentar, testar, tão intensivamente que acabará por conseguir desenvolver qualidades que os outros não conseguem. E a verdade é que se procurarem por doentes com Asperger vão encontrar muitos que se deram muito bem na vida. Apesar de não estarem identificados como tal, muitos acreditam por exemplo que Bill Gates, Steven Spielberg, Mark Zuckerberg entre outros sofrem de Asperger. A razão é a sua declarada inabilidade para lidar com o social, e a sua obsessão com aquilo que fazem. Estes possuem um problema que os leva a focar todas as suas energias apenas naquilo que lhes interessa, e podem por isso conseguir destacar-se.

Isto não quer dizer que o Asperger seja uma bênção. Um doente com asperger pode focar-se em coisas que não são de todo relevantes em termos financeiros na nossa sociedade. Por exemplo saber os nomes todos de listas telefónicas, ou contar folhas de árvores. Ou seja, o que nos diz este ponto, é apenas e só, que a capacidade de nos focar-nos intensamente sobre algo pode ajudar em muito ao desenvolvimento de acções criativas, originais, que inovam.

4. Deixar Fluir

Neste ponto Lehrer trabalha sobre as questões da limitação do nosso córtex pré-frontal, que já tinha discutido em How we Decide, e dando vários exemplos que poderão ler no livro. O que me interessa aqui reter é o facto de o nosso córtex pré-frontal ser limitado em termos de quantidade de informação que consegue processar. Ou seja enquanto estamos totalmente conscientes não conseguimos lidar com mais do que 5 a 7 elementos simultaneamente. Existem drogas que ajudam, os chamados desinibidores, e existem pessoas que conseguem de algum modo suspender esse controlo do córtex pré-frontal, embora isto tenha as suas consequências no resto dos comportamentos.
“The lesson of letting go is that we constrain our own creativity. We are so worried about playing the wrong note or saying the wrong thing that we end up with nothing at all, the silence of the scared imagination. While the best performers learn how to selectively repress their inhibitions, to quiet the DLPFC [Dorsolateral Prefrontal Cortex] on command, it’s also possible to lose one’s inhibitions entirely. The result is always tragic, but it’s a tragedy often limned with art.”
O nosso sistema DLPFC é dos últimos a desenvolver-se integralmente durante a nossa infância. Por isso existem ideias como a de Picasso “Every child is an artist. The problem is how to remain an artist once we grow up”. Ou seja o que se passa é que em crianças os nossos sistemas de censura não estão activos, e à medida que vamos crescendo vamo-nos tornando cada vez mais conscientes impossibilitando o improviso, ficando demasiado preocupados com o dizer a coisa errada no momento errado. Como refere Lehrer "It’s at this point that the infamous “fourth-grade slump” in creativity sets in, as students suddenly stop wanting to make art in the classroom.” 

Ainda assim podemos sonhar com a fluição de ideias mesmo em adultos, temos é de saber como. Por exemplo o passear livremente pela cidade experienciando as suas sensações, aquilo que Baudelaire qualificou de actividade de Flanêur, podem ser momentos que ajudem a exponenciar a criatividade. Porque é nesses momentos de despreendimento, de deixar fluir, que somos capazes de estabelecer mais pensamentos associativos entre ideias que jazem no nosso inconsciente. Aliás alguns estudos feitos sobre a sesta, demonstram o quão positiva esta é em termos criativos, por permitir esses momentos de relaxe e abertura ao inconsciente na troca de ideias.
“Once we fall asleep, the prefrontal cortex shuts itself down; the censor goes eerily quiet. Meanwhile, neurons all across the brain start shooting out squirts of acetylcholine. But this isn’t the usual excitement of reality; this activity is semi-random and unpredictable. It’s as if the mind is entertaining itself with improv, filling nighttime narratives with whatever spare details happen to be lying around.”

5. Social e Small Talk (Pixar)

Num estudo realizado sobre os musicais da Broadway chegou-se a uma conclusão que nos parece perfeito senso comum, mas que devemos recordar constantemente.
“creative collaborations have a sweet spot: “The best Broadway teams, by far, were those with a mix of relationships,” Uzzi says. “These teams had some old friends, but they also had newbies. This mixture meant that the artists could interact efficiently — they had a familiar structure to fall back on — but they also managed to incorporate some new ideas. They were comfortable with each other, but they weren’t too comfortable.”

Ou seja, para que possamos ser mais criativos, não devemos estar apenas rodeados de grandes amigos, nem de grandes desconhecidos, precisamos de uma mistura saudável. Por outro lado não basta juntar as pessoas de qualquer forma e esperar que estas colaborem apenas e só. Para isso Lehrer dá o excelente exemplo da Pixar, e dos seus métodos de trabalho. A Pixar lançou-se na construção de um novo edifício que foi totalmente pensado por Steve Jobs para poder estimular a criatividade dos criadores da Pixar. Nesse sentido em vez de criarem 3 edifícios separados, foi criado apenas um, e foi criado um enorme hall no centro do edifício de modo a permitir que todos se encontrassem. Para Jobs a questão central de uma empresa passava pela estimulação de interação entre os seus empregados.

But Jobs realized that it wasn’t enough simply to create an airy atrium; he needed to force people to go there. Jobs began with the mailboxes, which he shifted to the lobby. Then he moved the meeting rooms to the center of the building, followed by the cafeteria and coffee bar and gift shop. But that still wasn’t enough, which is why Jobs eventually decided to locate the only set of bathrooms in the atrium.
Jobs acreditava que os melhores encontros acontecem por acidente, no hall, no estacionamento, no bar. Jobs sabia que a chamada small talk não era uma perda de tempo, que as conversas aleatórias seriam uma fonte constante de novas ideias. E este tipo de ambiente é o que podemos hoje encontrar em empresas como a Apple, a Google ou a 3M. Como disse Brad Bird o criador de Incredibles e Ratatouille
“The atrium initially might seem like a waste of space . . . But Steve realized that when people run into each other, when they make eye contact, things happen. So he made it impossible for you not to run into the rest of the company.”

6. A Crítica é fundamental na criatividade

Um outro ponto importante no livro de Lehrer e que é ainda trabalhado na questão dos métodos de trabalho da Pixar, tem que ver com uma das maiores falácias de sempre no mundo das técnicas de criatividade, nomeadamente a técnica do Brainstorm. Vários estudos têm mostrado que esta técnica não é particularmente feliz quando comparada com outras, ou mesmo quando comparada com indivíduos a trabalhar isoladamente. Ainda assim, eu acredito particularmente no seu potencial, mais ainda se seguirmos a lógica espacial apresentada no ponto anterior.


Ou seja, o que Alex Osborn nos disse sobre a sua ideia do Brainstorm é que esta devia ser aplicada de forma a evitar a crítica. Ou seja juntar as pessoas e levá-las a regurgitar tudo o que lhes vai na mente, sem o receio de que alguém as criticasse. Isto faz algum sentido quando pensamos no ponto acima discutido sobre o Deixar Fluir. O problema é que os estudos têm demonstrado que as ideias que surgem dos normais processo de brainstorm são em número e qualidade reduzidas.

Na Pixar, todos os dias de manhã existem reuniões de Brainstorm, mas com uma nuance muito distinta de Osborn, é que aqui todos devem contribuir, criticando aquilo que está mal feito. Apontando os defeitos, chamando as coisas pelos nomes. O problema de um brainstorm deste tipo é que tem de ser muito bem gerido e regrado, porque corre o risco de rapidamente resvalar para a agressividade. Nesse sentido a Pixar impõe a seguinte conduta, denominada de Plussing. Uma ideia muito simples, que passa por, sempre que alguém critica alguma coisa, essa crítica deve conter um Plus, ou seja uma nova ideia que ajude a combater o problema encontrado. Segundo Charlan Nemeth, psicólgoca at UC-Berkeley, o que acontece é que,
“the reason criticism leads to more new ideas is that it encourages us to fully engage with the work of others. We think about their concepts because we want to improve them; it’s the imperfection that leads us to really listen.”
Aliás é por causa disto que as provas de doutoramento ou mestrado, ou os processos de revisão de artigos dos nossos pares, são tão importantes, nomeadamente quando trabalhados numa perspectiva crítica. É que para eu apontar uma crítica a um trabalho tenho de me envolver totalmente com ele, tenho de entrar dentro da cabeça do seu autor, e pensar como ele, ver a raiz do problema e procurar a sua solução. Se for apenas para dizer bem, esse processo nunca chega a acontecer. Envolver-me com o trabalho significa que não só o aluno vai ganhar, mas eu próprio ganho.


Charlan Nemeth realizou mais alguns estudos que demonstram a raiz do problema do brainstorming tradicional, e que passa pelo facto de o nosso cérebro não funcionar muito bem em termos de livre associação de ideias. Temos tendência para associar ao comum, fácil e familiar. Se perguntam por cor azul, o nosso cérebro diz Céu, ou Oceano. O interessante é a sugestão descoberta por Nemeth para evitar estes buracos do nosso pensamento associativo, e que passa por estimular as pessoas com ideias contrárias, mesmo que erradas, mas que nos façam tirar do marasmo do cliché.

Num dos seus estudos, colocou sujeitos a dizer as cores dos slides que passavam na tela, e no meio dos sujeitos colocou um colaborador, que de vez em quando gritava umas cores ao lado, ou menos usuais, como em vez de dizer vermelho dizia rosa, ou em vez de azul, Turquesa. Quando a seguir questionou as pessoas que tinham sido expostas à sessão com o colaborador que emitia respostas contrárias ou à margem, as pessoas reagiam com respostas mais invulgares que o grupo que não tinha sido exposto ao colaborador. Ou seja, à pergunta associativa para azul, já não diziam céu ou oceano, mas diziam por exemplo Smurfs ou Tarte de Amora.


7. A fricção humana e não a cidade

Este último ponto que aqui discuto é aquele em que mais discordo do pensamento de Lehrer. Ele monta todo um discurso para justificar o facto de que as Cidades são por natureza mais criativas que os meios pequenos, as aldeias. Lehrer suporta-se em Geoffrey West que nos diz que,

"As cities get bigger, everything starts accelerating. Each individual unit becomes more productive and more innovative. There is no equivalent for this in nature. Cities are a total biological anomaly. But you can’t understand modern life without understanding cities. They are the force behind everything interesting. They are where everything new is coming from."
É verdade que concordo com a necessidade de “fricção urbana”, esta pode ser muito útil e benéfica. Aliás responde àquilo que Jobs professava, de todos encontrarem-se com todos, da small talk, do inesperado. Mas não podemos tão facilmente extrapolar isto de um grupo de pessoas para um grande cidade. E o maior problema é que isso está à vista, se por exemplo Silicon Valley é um dos maiores centros criativos do mundo, por outro lado cidades gigantescas na China, México ou Brasil não se tornam automaticamente criativas apenas através da sua densidade populacional. Lehrer admite que estas discrepâncias entre cidades existem e procura trabalhar o problema realizando uma interessantíssima comparação, mas na qual falha para mim o seu objectivo. Realiza uma comparação entre a Route 128 em Boston e Silicon Valley, segundo Vivek Wadhwa, professor da Duke

 “If you were betting on an area to dominate [the tech sector] in 1975, you’d have been wise to bet on Route 128. It had a giant head start over everywhere else. The region had several elite research universities, such as MIT and Harvard, and a long list of successful technology firms. These companies had big contracts with the Defense Department and controlled the market for microchips and electronic hardware."
A verdade é que a história não deu razão a este pensamento. Aliás este caso de Leher está mal desde o ponto de partida, porque Moutain View em San Jose, era um lugar agrícola em 1956 quando William Shockley o co-criador do transístor aí se instalou para abrir a Shockley Transistor Corporation, que viria a impulsionar a criação da Intel. Vejam o que é hoje Mountain View, o que demonstra que foi possível gerar grande criatividade num meio pequeno. Para além disso, Mountain View tinha nessa altura uma população de 6 mil pessoas, e em 2010 apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, e patentes criadas, está abaixo das 100 mil pessoas, longe, muito longe de ser uma grande cidade.

Mountain View

Depois Lehrer vai tentar demonstrar que o problema da Route 128 ter perdido para Silicon Valley se deveu ao facto de esta ser dominada por empresas gigantes que preservavam segredo de tudo o que faziam e que com isso impediam a criatividade de brotar. Ao contrário de Silicon Valley aonde as pequenas empresas dependiam umas das outras para se fazerem valer, e que por isso partilhavam muitas ideias. O que é em parte verdade, a partilha criativa é um enorme estímulo à criatividade, mas não é o único caminho.  

Steve Wozniak e Steve Jobs com o Apple I

Para fechar o assunto Leher dá o exemplo do aparecimento da Apple baseado no sistema de partilha, que é verdade. Nisso Wozniak era totalmente diferente de Jobs, tinham visões muito diferentes. Mas a verdade é que a marca criativa deixada pela Apple, não é o Apple I e II de Wozniak, mas o Macintosh e o iPhone, que por sinal foram criados em grande segredo por Steve Jobs. A diferença, é que esses produtos foram criados em segredo, mas por uma equipa de pessoas que trabalhava sob um ambiente criativo igual ao que foi discutido acima no caso da Pixar.


Jobs era extremamente indelicado e rude nas críticas que fazia aos seus colaboradores, mas a verdade é que exigia destes que também fossem críticos e exigentes para com ele. Nas suas reuniões, não era anormal existirem grandes discussões e perturbação emocional entre as pessoas, e estas insurgirem-se contra as ideias de Jobs. Claro que se o fizessem teriam de ter argumentos para sustentar a sua crítica. E talvez seja esse um dos maiores segredos da história da Apple. A discussão profundamente crítica e exigente dos mais ínfimos detalhes dos produtos em desenvolvimento.

Para fechar, este não é o derradeiro livro sobre Criativade, talvez porque isso não seja possível, porque esta é em si mesma impossível de definir. Na sua essência, a criativdade é a originalidade, sempre diferente, não padronizável. Aliás como o próprio Jonah Lehrer admite quase no final do livro "Every creative story is different".

junho 26, 2012

modos operacionais da Criatividade

John Cleese é conhecido por ter feito parte dos Monty Python, mas é uma pessoa com pensamento próprio, além do humor, capaz de realizar meta-humor e teorizar sobre o acto de que aqui falamos, a criatividade. Trata-se de uma comunicação realizada em 1991, por isso algo datada, mas talvez não tanto como iremos ver.


Cleese começa por dizer-nos que a ciência à volta da Criatividade, não mudou muito nos últimos anos, e de certo modo terá estagnado nos anos 60, o que talvez não seja mentira. A verdade é que ainda hoje em 2012, olhamos para a criatividade como algo misterioso, quando na verdade não existe muito aqui para descobrir ou descortinar. Destaco partes da comunicação directamente aqui para o texto, para que se possa ter uma ideia do que é dito e ao mesmo tempo possa ajudar-nos a criar uma estrutura da comunicação como um todo. Assim Cleese começa por dizer aquilo que a criatividade não é,
“Creativity is not a talent, it is a way of operating…creativity is not an ability that you either have or not have, it is for example and this may surprise you, absolutely unrelated to IQ, provided you’re intelligent above a certain minimal level that is, but McKinnon showed in investigating scientists, architects, engineers and writers that those regarded by their peers as most creative were in no way whatsoever different in IQ from their ‘less creative’ colleagues. So in what way were they different? Well, McKinnon showed that the most creative had simply acquired a facility for getting themselves into a particular mood, a way of operating, which allowed their natural creativity to function…indeed he described the most creative when in this mood as being childlike, that they were able to play with ideas, to explore them, not for any immediate practical purpose but just for enjoyment, play for its own sake.”
Daqui vai passar a definir então que modo é este que algumas pessoas adquiriram e que lhes permite serem de certo modo mais criativas. Cleese descreve este modo como um sistema, com duas posições, aberto e fechado.


Modo Fechado
"I mean the mode that we are in most of the time when at work. We have inside us a feeling that there's lots to be done and we have to get on with it if we're going to get through it all. It's an active (probably slightly anxious) mode, although the anxiety can be exiting and pleasurable. It's a mode which we're probably a little impatient, if only with ourselves.  It has a little tension in it, not much humor.It's a mode in which we're very purposeful, and it's a mode in which we can get very stressed and even a bit manic, but not creative."

Modo Aberto 
"By contrast, the open mode, is relaxed… expansive… less purposeful mode… in which we're probably more contemplative, more inclined to humor (which always accompanies a wider perspective) and, consequently, more playful. It's a mood in which curiosity for its own sake can operate because we're not under pressure to get a specific thing done quickly. We can play, and that is what allows our natural creativity to surface."
Cleese explica que apesar de o modo Aberto ser o que conduz ao momento criativo, não podemos operar sempre nesse modo, pois o momento da implementação precisa de focagem, precisa de fechar para poder proceder à construção e descrição da ideia. Ora o que nos falta é saber como podemos potenciar o Modo Aberto, e sobre isso Cleese descreve um conjunto de 5 factores: Espaço, Tempo, Tempo, Confiança e Humor.


1 - Espaço
"Let's take space first: you can't become playful and therefore creative if you're under your usual pressures, because to cope with them you've got to be in the closed mode.
So you have to create some space for yourself away from those demands. And that means sealing yourself off.
You must make a quiet space for yourself where you will be undisturbed."
2 - Tempo
"It's not enough to create space, you have to create your space for a specific period of time. You have to know that your space will last until exactly (say) 3:30, and that at that moment your normal life will start again.And it's only by having a specific moment when your space starts and an equally specific moment when your space stops that you can seal yourself off from the every day closed mode in which we all habitually operate."
"So combining the first two factors we create an "oasis of quiet" for ourselves by setting the boundaries of space and of time."
3 - Tempo
"Most creative professionals always played with a problem for much longer before they tried to resolve it, because they were prepared to tolerate that slight discomfort and anxiety that we all experience when we haven't solved a problem.You know I mean, if we have a problem and we need to solve it, until we do, we feel (inside us) a kind of internal agitation, a tension, or an uncertainty that makes us just plain uncomfortable. And we want to get rid of that discomfort. So, in order to do so, we take a decision. Not because we're sure it's the best decision, but because taking it will make us feel better.Well, the most creative people have learned to tolerate that discomfort for much longer. And so, just because they put in more pondering time, their solutions are more creative.The third factor that facilitates creativity is time, giving your mind as long as possible to come up with something original."
4 - Confiança
"When you are in your space/time oasis, getting into the open mode, nothing will stop you being creative so effectively as the fear of making a mistake.Now if you think about play, you'll see why. To play is experiment: "What happens if I do this? What would happen if we did that? What if…?"The very essence of playfulness is an openness to anything that may happen. The feeling that whatever happens, it's ok. So you cannot be playful if you're frightened that moving in some direction will be "wrong" -- something you "shouldn't have done.So you've got risk saying things that are silly and illogical and wrong, and the best way to get the confidence to do that is to know that while you're being creative, nothing is wrong. There's no such thing as a mistake, and any drivel may lead to the break-through."
5 - Humor
"Well, I happen to think the main evolutionary significance of humor is that it gets us from the closed mode to the open mode quicker than anything else.I think we all know that laughter brings relaxation, and that humor makes us playful, yet how many times important discussions been held where really original and creative ideas were desperately needed to solve important problems, but where humor was taboo because the subject being discussed was  "so serious"?No, humor is an essential part of spontaneity, an essential part of playfulness, an essential part of the creativity that we need to solve problems, no matter how 'serious' they may be.So when you set up a space/time oasis, giggle all you want."
A conferência tem cerca de 35 minutos, e pode ser vista na íntegra no vídeo abaixo. Aí poderão encontrar muito mais coisas, para além do que aqui resumo a partir das palavras de Cleese, poderão ouvir por exemplo muitas piadas sobre o modo como se Muda uma Lâmpada :)



[O texto da comunicação foi copiado da transcrição online]

fevereiro 01, 2015

"Creativity Inc." (2014)

É um livro impressionantemente honesto e extremamente relevante, uma leitura inebriante da primeira à última página. As principais razões para tal: 1) é um dos livros mais importantes já escritos sobre gestão de criatividade, tendo-se já tornado um clássico obrigatório; 2) é um livro construído com base numa premissa fruto de validação científica; 3) é um livro sobre tecnologias CGI e Animação, sobre a Pixar e a Disney; 4) é um livro sobre a realização de um sonho, fruto de grande ambição, visão e muita humildade. Para que se compreenda a relevância deste livro é preciso compreender quem é o autor, e o que fez. O livro foi escrito por Ed Catmull, fundador da Pixar e seu actual presidente, a única empresa na história do Cinema a ter criado mais de uma dezena de filmes (14), sem nunca ter conhecido o falhanço, com todos os filmes a atingirem o 1º lugar do Box Office, metade conseguiu o Oscar de Melhor Animação (7). Não existe nenhuma outra empresa no ramo do cinema, dentro ou fora da animação, que se compare com a Pixar, e é por isso que se torna tão importante compreender o que constitui a estrutura desta empresa.


Catmull começa o livro discutindo a origem da sua paixão, nos anos 1950 quando via os desenhos animados da Disney na televisão percebeu que era aquilo que queria fazer na sua vida. Sinto aqui alguma sintonia, mas no meu caso não foi a Disney, foi a Pixar. Tal como “Snow White” tinha sido a primeira longa de animação em 1937, “Toy Story” tornou-se na primeira longa de animação 3d em 1995. Ambas estas duas conquistas estão ao nível do primeiro passo da humanidade na Lua, por tudo aquilo que exigiram do ser humano em duas frentes: arte e tecnologia.

Para termos “Toy Story” foi preciso juntar três pessoas - Ed Catmull, John Lasseter e Steve Jobs. Como Catmull frisa várias vezes ao longo do livro, não basta talento, muito esforço e dedicação, muito daquilo que fazemos nas nossas vidas é fruto de vários acasos. Neste caso, se Jobs não tivesse sido despedido da Apple, ou se Lasseter não tivesse sido despedido da Disney, nunca teria existido a Pixar, mas estas são apenas duas das imensas bifurcações que possibilitaram que algo que começou como um sonho na cabeça de Catmull se tivesse tornado em algo real.

Uma das dimensões que mais me interessou neste livro foi perceber de que era feito Catmull, e como é que alguém com formação tão tecnológica foi capaz de desenvolver tanta sensibilidade pelos aspectos criativos. A minha conclusão depois da leitura do livro, e é algo que o próprio refere, embora não o afirme, é que o seu modelo de gestão de criatividade é baseado no modelo de peer-reviewing académico. Catmull antes de ser empresário, licenciou-se e doutorou-se em Ciências da Computação na Universidade do Utah, onde teve mais uma vez a sorte de trabalhar num dos momentos, e com uma das equipas, mais importantes da Computação Gráfica e Interacção Humano-Computador, na qual se encontravam Ivan Sutherland e Alan Kay. A sua tese de doutoramento (“A subdivision algorithm for computer display of curved surfaces”, 1974) daria origem a um algoritmo de render. Aliás ainda hoje, para mim, Catmull soa a render porque foi dos primeiros que me recordo de usar na modelação e rendering 3d.

A experiência académica de Catmull revelou-se crucial no modo como este iria passar a lidar com o conhecimento e com os seus colegas de trabalho. O conhecimento é fruto da partilha, da humildade, do reconhecimento dos demais, de ouvir e construir sempre com os outros, sempre pela via da experimentação e validação junto dos pares. O mundo académico é um ambiente descentralizado, em que cada investigador tem grande autonomia, o que tem o seu lado bom, mas obriga a que este tenha de ser proativo, capaz de se orientar, de encontrar o seu caminho, ainda que o seu trabalho só possa evoluir com o reconhecimento dos seus pares. Foi exactamente este tipo de cultura que Catmull implementou na Pixar, é este o fundamento do "BrainTrust", a equipa, rotativa, que na Pixar analisa e discute regularmente as produções em curso (mais detalhe nos pontos 5 e 6 da análise de "Imagine").

Catmull professa assim uma gestão baseada na frontalidade e abertura, na descentralização e desierarquização, na autonomia e responsabilização de cada ser individual, tudo fundamentado em dois elementos centrais, a honestidade e a humildade. Se dúvidas houvesse quanto a estes dois elementos, basta pensar, quem seria o presidente de duas multinacionais envolvidas em milhões, que faria um livro abrindo e revelando todos os detalhes da sua forma de trabalho, dos seus sucessos, mas também dos seus falhanços? Mas este livro não é apenas uma confissão, ou diário, é muito mais do que isso e Catmull vai frisá-lo a meio do livro. A razão principal porque escreveu este livro foi porque teve hipótese de validar o método de gestão criado na Pixar. Em 2006, depois de se tornar presidente da Disney, implementou aí o mesmo método de gestão de cultura criativa, seguindo uma abordagem experimental científica, procurando evitar contaminar variáveis, e o método emergiu, com nuances mas com os resultados que hoje conhecemos (veja-se nomeadamente os filmes "Wreck-It Ralph" (2012) e "Big Hero 6" (2014)). A Disney mudou radicalmente o seu modelo de gestão ao bom estilo Fordiano, e tem hoje o seu próprio BrainTrust, batizado "StoryTrust".

Diga-se que o método não emerge apenas de Catmull, ele é fruto de um projecto a três cabeças - Catmull, Lasseter e Jobs. Catmull o especialista em computação gráfica, Lasseter o especialista em storytelling e Jobs o especialista em inovação pela arte e criatividade.  Foi a obsessão deste trio por cada um dos seus domínios que permitiu o surgimento de uma Pixar. À gestão criativa em modo de peer-reviewing de Catmull, juntou-se o brilhantismo do storytelling em animação de Lasseter (vejam ou revejam “Luxo Jr” (1986), já perdi a conta ao número de vezes que mostrei este filme em aulas), a estes juntou-se a obsessão de Jobs pela fusão entre arte e tecnologia, e pela qualidade, sendo capaz de preferir perder milhões cancelando um produto ou filme, a ter um fracasso comercial.

Da esq. para a dir.: Ed Catmull, Steve Jobs e John Lasseter

Existe muito mais que gostaria de dizer sobre este livro, sobre a Pixar, sobre os “três mosqueteiros”, mas isso também estragaria o interesse da leitura para quem ainda não leu. É verdade que me deixei inebriar com o livro, dado o meu amor pela Disney e Pixar e claro todo o reconhecimento que tenho pelo legado tecnológico de várias pessoas que são aqui centrais, o Steve Jobs e a Apple, mas também Ivan Sutherland e Alan Kay, e claro Catmull, que além de se ter tornado num gestor de topo, é antes de tudo um cientista da computação. E talvez mais importante ainda, nada disto existiria sem o fruto principal, o legado artístico de Walt Disney, Ollie Johnston e Frank Thomas, e do que ficará de criadores como John Lasseter, Andrew Stanton e Brad Bird.

Deixo aqui no final apenas algumas indicações do modelo de Catmull, mas são apenas isso, indicações. Leiam o livro, absorvam-no e tentem aplicar os seus ideais pelas empresas por onde passarem.
  1. As pessoas e os seus talentos, são mais importantes que as ideias.
  2. Contratem pessoas pelo seu potencial, não pelo seu passado.
  3. Contratem pessoas que sejam mais inteligentes que vocês.
  4. Todos devem sentir-se livres para contribuir com ideias. Todos.
  5. Eliminem o medo. 
  6. Não escondam os problemas, é o primeiro passo para o falhanço
  7. As primeiras conclusões, estão quase sempre erradas.
Para que estes princípios possam ser aplicados, é necessário seguir algumas lógicas de acção no seio da empresa:
  1. Honestidade e Candura. Centrais, sem honestidade a candura não emerge, e sem ela a crítica construtiva não surge.
  2. Medo e Falhanço. Preciso falhar para avançar, sendo que o medo de falhar é central, é preciso atacá-lo desde a raíz.
  3. A Mudança. Um ponto, que julgo muito relevante nestes tempos conturbados de crise, sobre a mudança, a sua necessidade, e formas de o fazer sem criar demasiados atritos, desconfiança e medo.
:: Why change?
“Many of the rules that people find onerous and bureaucratic were put in place to deal with real abuses, problems, or inconsistencies or as a way of managing complex environments. But while each rule may have been instituted for good reason, after a while a thicket of rules develops that may not make sense in the aggregate. The danger is that your company becomes overwhelmed by well-intended rules that only accomplish one thing: draining the creative impulse.”

:: How to approach change?

“Pete has a few methods he uses to help manage people through the fears brought on by pre-production chaos. “Sometimes in meetings, I sense people seizing up, not wanting to even talk about changes,” he says. “So I try to trick them. I’ll say, ‘This would be a big change if we were really going to do it, but just as a thought exercise, what if …’ Or, ‘I’m not actually suggesting this, but go with me for a minute …’ If people anticipate the production pressures, they’ll close the door to new ideas—so you have to pretend you’re not actually going to do anything, we’re just talking, just playing around. Then if you hit upon some new idea that clearly works, people are excited about it and are happier to act on the change.”
Por fim, fecho com o aspecto central de toda esta leitura, uma reiteração que vai surgindo ao longo do livro por Catmull:
To reiterate, it is the focus on people—their work habits, their talents, their values—that is absolutely central to any creative venture.


Ler também
O primeiro filme CGI, criado por Catmull há 40 anos
Como funciona a Criatividade, baseado no modelo da Pixar,
O storytelling por Andrew Stanton
O legado de Steve Jobs

Nota quantitativa no Goodreads.

Actualização 2.2.2015:
Descobri que o livro foi entretanto traduzido para português e lançado por estes dias, tendo mantido a mesma capa, mas com o título simplificado, "Criatividade" apenas.