dezembro 25, 2015

"Perguntem a Sarah Gross" (2015)

Uma experiência que nos toca e mexe com o nosso ser, capaz de nos questionar sobre o porquê de estarmos aqui, num livro sem pretensões estilísticas que joga tudo no desenho de um enredo que coze história e puzzle em profundidade e nos obriga a virar páginas sofregamente em busca de respostas.


Perguntem a Sarah Gross” é claramente um livro baseado na vontade de fazer passar uma ideia, uma mensagem, estando assim muito mais focado naquilo que quer contar do que naquilo em que se deve tornar. Ou seja, a obra não se foca nela, nem o autor está preocupado com o seu devir, aqui só importa dar conta de uma realidade, de um espaço e tempo, desvelar os seus registos históricos e efeitos e levar o leitor a sentir-se próximo desse passado. Percebe-se que o autor está focado em fazer sentir ao leitor um pequeno limiar da experiência porque passaram milhões de seres humanos na nossa história recente, o Holocausto, esperando desse modo contribuir para que mais pessoas, pelo menos todos os seus leitores, não pensem, não desejem, nem permitam que o que aconteceu possa alguma vez mais voltar a repetir-se.

Em essência “Perguntem a Sarah Gross” dá conta da história da cidade polaca Oswiecim, que passou a chamar-se Auschwitz com a invasão alemã, e dos terrores aí vividos durante a 2ª Grande Guerra. Acompanhamos uma família a dois tempos, pré-guerra e pós-guerra, durante os quais vamos aprendendo sobre a história e seus efeitos, e assim compreendendo um pouco melhor o que se passou, e como foi possível passar, servindo para aumentar em nós a incredulidade no ser-humano, fazendo deste livro uma obra conseguida.

A mensagem passa mas à custa de algumas fragilidades, desde logo porque sendo o autor português, teria preferido ver a família Gross situada em Portugal e não nos EUA. Sei que o fluxo de migrantes para os EUA foi totalmente diferente do fluxo para Portugal, mas também sei que muito do nosso imaginário está contaminado pelos contadores de histórias americanos. Tudo o que aqui vemos neste livro é fruto desse universo americano standard — os colégios, as universidades, os judeus e os italo-americanos — tudo tornado parte da cultura global, porque fortemente exportado pelos seus contadores de histórias. Sei que ao escrever desta forma, a obra de João Pinto Coelho tem capacidade para se tornar num best-seller do New York Times, e só estranho a esta altura ainda não existir uma tradução para inglês e a sua distribuição nos EUA! Aliás questionei-me várias vezes porque é que, tendo em conta a ligação do autor aos EUA e à língua,  não foi escrita diretamente em inglês tendo em conta já uma distribuição global.

Mas cabe-nos a nós, e só a nós portugueses, dar conta do que somos, e do que queremos ser, e isso só pode ser conseguido por via da arte, da produção cultural. Daí a necessidade imperativa de verbalizarmos aquilo que somos, seja na literatura, no cinema, na música. Mais, aquilo que pode tornar uma obra de um português relevante lá fora, ainda que tenha de se dotar de contornos globais, é a sua singularidade, o seu exoticismo proveniente da singularidade do país em que vive. É isso que torna obras como “O Menino de Cabul” de Khaled Hosseini tão atrativas, e que por várias vezes fui recordando ao ler este livro.

Posto de lado o pano de fundo escolhido pelo autor, e focando-me apenas no texto e assumindo a mestria do tratamento dado ao enredo, levantam-se problemas no tratamento dado aos personagens. No final do livro, mais do que “perguntar a Sarah Gross” o que precisaria era de perguntar quem era Sarah Gross, já para não dizer, quem era Kimberly Parker. Porque o texto passa todo o tempo a relatar o que lhes aconteceu, dando muito pouco espaço ao que elas intrinsecamente fizeram, ou seja o que pensaram sobre aquilo que fizeram. Vemos as personagens à distância, estamos no centro da ação, mas não lhes tocamos, apesar de se construir empatia com elas, mas é uma empatia que vive dos laços universais — pai, filho, família, etc. — e não destas em particular. E é por isso que no final quando se descobre as ligações de Sarah Gross aos personagens do colégio, temos dificuldade em compreender o que tudo aquilo nos diz, já que sabemos muito pouco sobre o modo como Sarah sente o mundo.  O mesmo acontece com Kimberly, embora esta sofra de alguns problemas de enredo, já que a sua centralidade na ação acaba por não conseguir justificar-se plenamente no final do livro. Porquê Kimberly como narradora em primeira-pessoa, quando ela não passa de mera testemunha, sim, ajuda-nos a ter um ponto de vista mais familiar, já que se trata de uma realidade complexa distante de nós como dela, mas sabe a pouco.

Mas se a obra falha em levar-nos ao âmago das suas personagens, compensa totalmente no modo impressivo como nos leva aos espaços. No início do livro temos mapas do colégio, não temos de Auschwitz, mas julgo-os todos desnecessários porque o autor consegue situar-nos sempre, dar conta dos espaços e sons que circundam toda a ação. O mais impressivo acaba sendo o modo como nos dá a ver Oswiecim, Cracóvia, Plaszów, Birkenau como se vão operando as mudanças de lugares por parte das comunidades judaicas, empurradas pela força das operações militares. O texto coloca-nos lá, no centro da ação, e pela força da descrição e empatia consegue magoar-nos! Por várias vezes tive de fechar o livro, e arredar dali o pensamento, tal a força impressiva do texto.

Para primeira obra, João Pinto Coelho surpreende, dando conta de um excelente domínio na arte de contar histórias, de jogar com a informação, de nos obrigar a trabalhar para ir atrás do que vai dizendo e deixando por dizer. A escrita é suficiente para tornar verbal o  que lhe vai no espírito, apesar de raramente brilhar tão raramente decepciona, estando ao nível de muito best-sellers internacionais e bastante acima de alguns best-sellers nacionais. Mais que tudo, sente-se uma profunda honestidade em todo o relato, uma vontade de testemunhar, de nos dar a ver e sentir aquilo que o “incomoda”.

dezembro 21, 2015

O primeiro falhanço da Pixar

Pensei que o momento de escrever este título tinha chegado quando vi "Planes" em 2013, contudo mais tarde percebi que o filme não era uma produção da Pixar mas do DisneyToon Studios, o estúdio da Disney especializado na produção de spins para DVD, e que por ter ficado acima do normal desse mercado, segundo eles, tinha sido considerado para lançamento em sala. Nessa altura achei incorrecto, o filme era demasiado fraco, e ainda bem que quase desapareceu dos catálogos de animação, tanto da Pixar como da Disney. Mas parece que chegou o dia de escrever o título, com "The Good Dinosaur".




Imagens tiradas do trailer a 1080p

Contada esta primeira parte, quero dizer que enquanto via hoje o filme pensava que a Pixar se tinha decidido a seguir a lógica Disney, criar uma série B para filmes menores, mas qual não foi o meu espanto quando cheguei a casa e verifiquei que não, que o filme tinha sido apresentado como uma obra regular da Pixar, e que figura no seu site ao lado dos restantes. Isto espanta-me, muito mesmo, mais ainda depois de ter lido "Creativity Inc." (2014).

Uma análise séria de "The Good Dinosaur", sem levar em conta as qualidades do estúdio por detrás da obra, tem quase tudo de negativo a apontar, e muito pouco de positivo, sendo talvez o maior problema da obra o storytelling, que é o domínio por excelência da Pixar, e por isso torna tudo isto ainda mais decepcionante. A premissa de partida é a única coisa digna da Pixar — e se os dinossauros não se estivessem extinguido, o que seria dos humanos? —, mas desde logo o tratamento dado à mesma é um enorme desastre — com os dinossauros a surgirem enquadrados tais quais agricultores das grandes planícies do interior dos EUA, e os humanos a assumirem o lugar de cães, animais de estimação! Se é mau no geral, no detalhe piora ainda mais, porque uma vez invertidos os papéis, tanto os personagens como os eventos, não são apenas cópias de múltiplas outras histórias, são verdadeiros clichês, a darem conta de uma total ausência de criatividade. "The Good Dinosaur" parece uma espécie de "Patinho Feio" cruzado com "Rei Leão", mas contado a partir de um conjunto de boas-práticas da psicologia da relação entre pais e filhos.

Houve quem dissesse tratar-se do primeiro filme da Pixar dirigido apenas às crianças, discordo, até porque para além de levar os meus filhos que ainda são crianças, estavam grupos grandes de crianças de ATLs e infantários, e praticamente nunca os vi reagir, tirando os momentos mais fortes de tristeza, repetidos n vezes em busca de emocionar a audiência, e claro da violência, que me surpreendeu — colocar uma criança 6-7 anos a arrancar, graficamente, a cabeça de uma espécie de besouro, quase do seu tamanho — pode parecer engraçado nesta era de videojogos, mas foram várias as crianças a reagir negativamente, e mesmo a chorar na sala.

Vi outras análises a tentarem desculpar o filme puxando pela beleza do seu fotorrealismo, o que mais uma vez me vejo obrigado a discordar. Fotorrealismo não é sinónimo de qualidade, dá apenas conta de mestria técnica. Existem poucos momentos de qualidade artística visual ao longo da hora e meia, começando desde logo pelos personagens, nomeadamente os dinossauros muito fracos — verdadeiros clichês, baços, simétricos, rígidos e infantis — dos quais o pequeno humano se destaca pela positiva, nomeadamente na animação, sendo que todos os restantes são ainda mais fracos que os dinossauros. No campo dos ambientes, os momentos de fotorrealismo que acontecem em cenas de água ou paisagens em planos gerais largos, destoam e retiram-nos do universo ilustrado da animação, por outro lado os cenários são tão simplistas, nada daquilo a que a Pixar nos habituou, tanto no detalhe da modelação como na seleção de cores que servem a vida de todo aquele suposto mundo-história.

Não se trata aqui de estar a comparar com a anterior obra-prima da Pixar, "Inside Out", mas antes com toda a história da empresa modelo. Mesmo indo às sequelas mais fracas, "Cars 2" ou "Monsters University", é difícil encontrar algo tão fraco, tão manta de retalhos e tão pouco cuidado, talvez só mesmo um "Planes". Existem várias notícias online que dão conta de problemas ao longo de toda a produção, contudo a Pixar falhou ao não ter abandonado totalmente o projeto, como fez antes com outros filmes.

dezembro 20, 2015

Processos de criação narrativa escrita

Chuck Palahniuk é um escritor americano, internacionalmente consagrado pela obra “Fight Club” (1996), que deu origem ao filme homónimo de David Fincher (1999). Entre 2005 e 2007 Palahniuk desenvolveu um conjunto de ensaios sobre o processo de escrita, tendo criado um total de 36 textos que podem hoje ser lidos integralmente no site LitReactor.



Chuck Palahniuk fotografado por Jonh Gress

Palahniuk tem uma escrita dura, as suas obras rodam à volta do género conhecido por “ficção transgressiva”, ou seja, histórias de liberação das normas da sociedade pela força, o que faz deste um autor muito interessante em termos criativos já que o seu trabalho tem de obrigatoriamente fomentar uma constante troca de descrições entre as internalidades e externalidades, entre os pensamentos interiores dos seus personagens e a sua ação sobre o real. Assim, se da leitura dos ensaios resultar a ideia de que estes ensaios servem apenas uma escrita mais cinemática, ou seja exterior e visual, bastará pensar que a descrição psicológica dos personagens não pode existir sem consequência no real, algo que Palahniuk compreende muito bem.

Não li todos os 36 ensaios, até porque não estou à procura de me tornar num romancista, interessa-me mais conhecer os processos, para assim poder analisar melhor o que está por detrás da mente de quem cria. Interessa-me até mais o cinema e os videojogos, mas estes quando narrativos diferem muito pouco da literatura, o que faz com que qualquer bom realizador ou designer de jogos narrativos, seja obrigado a deter uma grande bagagem de leitura, reforçando assim a interligação entre estes três meios.

Em caso de dúvida reparem no processo de escrita mais fortemente referenciado por Palahniuk ao longo dos vários ensaios, o “unpacking”. Este processo não tem nada de novo é comumente conhecido como “desconstrução”, mas se Palahniuk opta em sua vez por “unpack”, não é por acaso, é porque dá conta, de um modo muito mais descritivo e visual, do que realmente se trata. Ou seja, o “tirar da caixa” ou “desempacotar” assume uma relação direta com o processo de expressão ou verbalização, isto é, de dar vida exterior a uma ideia que temos apenas na nossa mente, dentro da caixa, que vemos como o nosso cérebro, ou crânio. Assim quando temos uma ideia para algo que deve acontecer numa história não chega pensar a ideia em termos imaginários, é preciso realizar sobre essa todo um processo de desempacotação, capaz de traduzir essa mesma ideia em algo externo que a expresse. E é aqui que entram os outros meios, porque esse “algo” pode ter a forma de texto, mas pode ter a forma de filme ou de jogo, é indiferente porque o unpacking tem de acontecer sempre.

Posso dizer que do que li fiquei deveras impressionado. Palahniuk não floreia nem tenta construir teorização sobre o processo de escrita, é muito direto e concreto. Ou seja, os conselhos que vai descrevendo são dirigidos a questões muito práticas, questões que raramente ouvirão numa aula de literatura, porque não dizem respeito à estética mas apenas e só ao processo de criação artística. Apesar disso, o modo como descreve o que tem a dizer segue toda uma postura académica, com uma estrutura metódica e focada na aprendizagem, com os textos ordenados segundo uma composição tripartida: 1) pequena história introdutória que dá vida ao conceito; 2) discussão e desconstrução do conceito; 3) trabalho de casa ou sugestões para aplicar os conceitos. Assim resolvi escolher alguns excertos que mais me chamaram a atenção, e transcrevi para aqui algumas passagens:


3: Using “On-The-Body” Physical Sensation
“It’s one thing to engage the reader mentally, to enroll his or her mind and make them think, imagine, consider something. It’s another thing to engage a reader’s heart, to make him or her feel some emotion. But if you can engage the reader on a physical level as well, then you’ve created a reality that can eclipse their actual reality. The reader might be in a noisy airport, standing in a long line, on tired feet – but if you can engage their mind, heart and body in your story, you can replace that airport reality with something more entertaining or profound or whatever.”
..
“Words like “searing pain” or “sharp, stabbing pain” or “throbbing headache” or “ecstatic orgasm” don’t evoke anything except some lame-ass paperback thriller book. Those are the cliches of a cheating writer. Little abstract short-cuts that don’t make anything happen in the reader’s gut.
No, you want the pain – or whatever physical sensation – to occur in the reader, not on the page. So un-pack the event, moment by moment, smell by smell. Make it happen, and let the sensation of pain occur only in the reader.”

6: Nuts and Bolts: “Thought” Verbs (online)
“In six seconds, you’ll hate me. But in six months, you’ll be a better writer. From this point forward – at least for the next half year – you may not use “thought” verbs.  These include:  Thinks, Knows, Understands, Realizes, Believes, Wants, Remembers, Imagines, Desires, and a hundred others you love to use. ”
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“Instead of saying:  “Adam knew Gwen liked him.” You’ll have to say: “Between classes, Gwen was always leaned on his locker when he’d go to open it.  She’d roll her eyes and shove off with one foot, leaving a black-heel mark on the painted metal, but she also left the smell of her perfume.  The combination lock would still be warm from her ass.  And the next break, Gwen would be leaned there, again.” In short, no more short-cuts.  Only specific sensory detail: action, smell, taste, sound, and feeling.”
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“Thinking is abstract. Knowing and believing are intangible.  Your story will always be stronger if you just show the physical actions and details of your characters and allow your reader to do the thinking and knowing. And loving and hating.”
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“Un-pack. Don’t take short-cuts.”

16: Learning from Clichés… then Leaving them Behind
“One of the best self-teaching methods is to “ape” or mimic the style of writers you enjoy.
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We learned to write the way so many apprentice painters learn to copy masterpieces in museums. This is a fun, effective way to learn another writer’s techniques from the inside, duplicating them until they come naturally in your own work. Then, you can create variations on the techniques, breaking the rules and combining them with the techniques you’ve learned by copying other writers. That way, by mixing and sampling and copying – not just writers but people you hear speaking, telling stories next to you at Starbucks – that’s how you develop a personal, signature “voice” for your own work.
Don’t worry, even if you become a parrot, echoing the voice of another writer in everything you write – you’ll get past that. You’ll get bored and evolve. Another voice will arrive to teach you something new. Most of us seem to create ourselves from the behavior modeled by our peers. We pick and choose speech patterns and gestures and mimic them. The ones that work, we incorporate into our daily presentation. It’s the same with writing styles.”

19: Effective Similes (Diferentes da Metáfora)
“I hate similes. Tose phrases that compare one thing to another. “Her hair had the softness of rabbit’s fur.” Or, “His cheeks were like raw meat.”

Anytime you want to use a simile, a metaphor will usually work better. Stronger. Instead of: “Being married to Jim was like driving five years down a dirt road”... the stronger version is: “Being married to Jim was five years of driving down a dirt road.” Or better yet, “Being married to Jim left you shaky as a five-year drive down a dirt road.”

“Limit your similes. Every time you compare something inside of a scene to something that’s not present, you distract your reader – taking them out of the moment – and losing energy. “The preacher’s hands were like pale birds,” forces us to picture birds, then maybe doves, maybe some other white birds, pigeons, nesting or flying, blue sky, clouds, and we’re lost. To avoid this, use only your strongest similes, and try to reuse them. Consider, “The preacher’s pale hands curled together in his lap, nested still and tight as a pair of dead birds.” Again, unpack the verbs – exactly how is one thing similar to the other. And describe the actual item before comparing it to something else.”


Por fim deixo um conselho meu sobre o modo de usar estes 36 ensaios. Não vejam neles as linhas mestras das quais não se podem desviar, mas antes linhas orientadoras que nos podem ajudar a progredir. Todo este tipo de trabalho é sempre muito atacado por estar a tentar normativizar processos artísticos, do meu lado sou totalmente contra tais ataques, já que não é nada disso que se procura aqui. Interessa apenas aqui iluminar um caminho possível, criar atalhos para a compreensão da arte, no fundo transmitir conhecimento sobre um processo, aquilo que passamos todo o tempo a fazer enquanto professores. Mas é verdade que se não aceito os ataques pela normativização, tenho de admitir que existem aqui alguns perigos, como é normal em qualquer atalho.

O primeiro diz respeito ao tipo de conhecimento em questão, porque sendo um processo de criação artística que depende de forte conhecimento tácito, levanta obstáculos à apreensão por mera transmissão de informação. Ou seja, não é possível verdadeiramente apreender nenhuma das técnicas descritas nestes ensaios sem realizar um grande investimento experimental, passar horas e horas a escrever, produzir centenas e centenas de páginas, até que estas regras, aqui tão simples, se tornem parte da natureza de quem as pretenda dominar.

O segundo perigo ou problema, assenta sobre o potencial de se poder criar a ideia, errónea, de que conhecendo o processo que os escritores usam deixa de ser necessário passar pelas obras que estes criaram. Não podemos esquecer que aquilo que temos aqui é apenas um conjunto de estruturas, de sínteses de padrões de escrita, uma espécie de esqueletos que suportam a carne, as histórias. Para quem quer escrever, realizar ou desenhar jogos, é preciso consumir muita carne, pois só esta poderá dar base suficiente para a criação de novas histórias. Sem a leitura em profundidade e diversidade é impossível produzir algo que vá para além do senso comum, ou da imitação superficial do que nos rodeia no dia-a-dia, daí que a leitura seja fundamental para qualquer criador, não apenas o escritor, mas também o realizador e o designer.


Os ensaios não estão em livre acesso, o que me levanta muitas objeções, nomeadamente porque os textos foram oferecidos pelo autor, que os poderia ter transformado em livro e vendido, mas optou por não o fazer. Deste modo têm duas opções, se vos interessar o site, que apresenta muitos outros conteúdos além destes, inscrevem-se e fazem download, de outro modo podem procurar online e irão encontrar várias compilações dos 36 textos, deixo um exemplo.

dezembro 19, 2015

"Jane Eyre" (1847)

Um livro poderoso que nos fala da essência do devir humano, da sua luta constante por se individualizar sem perder a ligação social, algo que assume tanto mais valor por ser atribuído a uma mulher, e mais ainda por ter sido escrito por uma mulher em 1847. Foi preciso um espírito muitíssimo independente, sagaz, profundamente estruturado e educado, para fugir à rede de convenções que a aprisionariam por essa altura. É um romance obrigatório, mais ainda para qualquer mulher que, ainda hoje passados mais de 160 anos, continua a ter de lutar contra muitas dessas convenções.

"É uma falta de consideração condená-las ou ridicularizá-las quando se empenham em fazer mais ou em aprender mais que aquilo que os costumes decretaram ser necessário para o seu sexo." (p.149)
Das várias heroínas clássicas — Elizabeth Bennet (Orgulho e Preconceito, 1813), Catherine Earnshaw (O Monte dos Vendavais, 1847) ou Emma Bovary (Madame Bovary, 1857) — Jane Eyre destaca-se cabalmente, não se afirmando por nenhuma das caraterísticas convencionalmente atribuídas às mulheres: como a fragilidade, embora dotada dela; assim como a loucura, motivo do granjear de complexidade narrativa, embora também dotada dela. Jane Eyre representa muito mais do que uma mulher à procura de ser feliz, ela representa o ser-humano que se procura a si mesmo, que busca encontrar o seu lugar na sociedade sem contudo permitir que o seu enredamento a impeça de viver como sente, nem que para isso tenha de colocar a sua vida em questão.
"Eu não sou pássaro nenhum, e não há rede capaz de me prender. Sou um ser humano livre, dotado de vontade própria, que agora vou exercer deixando-o." (p.333)
Mas ser dotada de capacidade para fazer valer a sua liberdade não faz de Jane alguém que perdeu a sua feminilidade. Ao contrário do que acontece com algumas das personagens emancipadas do entretenimento contemporâneo — Ellen Ripley, Sarah Connor, Lara Croft, etc. — que na ânsia por responderem à paridade homem/mulher, acabam por assumir ideais gerais masculinos, como ainda recentemente referia num texto no IGN. Jane não é apenas forte, é-o mas sem nunca perder toda a sua sensibilidade, quando segue a sua vontade própria não deixa de se preocupar com quem fica, fazendo uso de toda a sua capacidade empática para se colocar no lugar do outro, algo profundamente feminino.

Charlotte Brontë deve este idealismo à época vitoriana em que se formou, mas deve-o provavelmente mais ainda a toda a sua formação e educação, que desde cedo lhe permitiu iniciar atividades de criação escrita, para o que se propôs imaginar novos países, novas lutas e costumes. O que não deixa de contrastar com este seu livro, o seu maior legado, que é cabalmente autobiográfico, mas que ao mesmo tempo dá conta de uma biografia fora dos cânones do seu tempo. Daí que se me sugira refletir sobre o quanto dos seus mundos imaginários serviriam de simulação do real que experienciava, uma espécie de jogo de hipóteses e ações. Que provavelmente foi graças a toda essa fértil imaginação, devidamente verbalizada em textos e assim mais forte e real, que Charlotte conseguiu criar um forte ideal do mundo, do qual retirou grande parte da energia que lhe permitiu lutar contra as amarras das convenções.
"Os preconceitos, como é bem sabido, são mais difíceis de erradicar dum solo que nunca foi arado ou fertilizado por meio da educação; ficam tão enraizados como ervas daninhas entre as pedras" (p.446)
Jane Eyre surge como defensora da educação como garante do livre arbítrio humano, servindo-se da dúvida metódica para compreender o mundo em que vive, e assim questionar a moral assim como a religião, nunca as desprezando, mas antes procurando elevar a sua compreensão.
"Deus concedeu-nos, em certa medida, o poder para sermos obreiros do nosso destino..." (p.474)
Todo este livro é uma luta, do princípio ao fim, uma luta para nos questionar, nos fazer compreender quem somos. Como romance, que trata o inevitável enlace homem/mulher, é muito mais do que o desenrolar dos conflitos que levam aos seus encontros e desencontros, isso é aqui mais decoração temática, já que o foco está na demonstração cabal da igualdade de direitos e deveres que os unem. O fundamento deste romance é um ideal perseguido pela sua autora, que para lá chegar nos leva através de um caminho árduo, com muitas dúvidas e questões que pesam sobre ela, mas também pesam sobre nós, leitores, conduzindo-nos pela mão até bom-porto.
"Não lhe estou a falar com a linguagem dos costumes, das convenções nem sequer da carne mortal... É o meu espírito a dirigir-se ao seu espírito, como se ambos já tivéssemos passado pela sepultura e nos encontrássemos agora aos pés de Deus, como iguais que somos!" (p.332)
Tudo aquilo que Charlotte transpõe para esta obra continua imensamente atual e relevante, mas se a sua mensagem passa, não é apenas pela qualidade das suas ideias, deve-o muito também a toda a sua imensa força expressiva. Seguindo uma estrutura em primeira-pessoa, envolvida por uma escrita que vai do escorreito ao intrincado, sempre bastante elaborada, é capaz de imprimir um realismo verdadeiramente impressivo a todo o seu relato.


Edição lida: Charlotte Brontë (1847), "Jane Eyre", Editorial Presença, 2011, 596p

dezembro 17, 2015

Videojogo do Ano [Indie:2015] - “Her Story”

Na semana passada dei aqui conta do videojogo do ano criado pela grande indústria, hoje dou conta do que considero ser o videojogo do ano criado por uma pequena equipa, os chamados independentes. Existem vários outros trabalhos que poderia aqui referir, e espero ter tempo de fazer uma listagem mais alargada de títulos deste ano, mas se escolho um é porque realmente marcou para mim o ano. Já tinha falado de “Her Storyno IGN quando ganhou o IndieCade 2015, e com o aproximar do fim do ano podemos ver como o jogo vai surgindo nas mais variadas listas, desde a Time ou New Yorker ao Guardian (as listas dos sites de videojogos ainda não começaram a sair), tornando-o num dos videojogos incontornáveis deste ano. Do meu lado, as razões que sustentam esta escolha são essencialmente três: inovação, guião e interpretação.




Her Story” é um pequeno jogo baseado em vídeo interativo, que disfarçado de experiência estética dos anos 1990 cria algo completamente novo que não se dá à superfície, mas que da mera exigência de abertura ao formato, desenvolve uma experiência que nos suga para o seu interior, fazendo-nos esquecer o mundo e o meio, concentrando toda a nossa cognição e emoção na interação com o labirinto narrativo.

Somos convidados a analisar uma base de dados em vídeo, criada pela polícia em 1994, pouco ou nada nos é dito sobre os vídeos, assim como sobre o que estamos à procura, sendo que toda a mestria do jogo emerge do modo como, a partir da total liberdade de procurar e ver o que se quer, nos consegue manipular e conduzir verdadeiramente a jogar com as palavras-chave. A primeira palavra-chave está escrita, “Murder”, clicando em “Search” e visionando o primeiro vídeo que surge, somos de imediato atirados para o meio de uma história de mistério que nos atiça fortemente a curiosidade. Daí em diante, a cada nova palavra, que intuitivamente o guião do jogo nos vai convencendo a procurar — palavras que formam a base do storytelling: locais, nomes (personagens), e ações (eventos) — a curiosidade segue em crescendo, até que damos por nós a procurar diferenciar múltiplas linhas de tempo no enredo, por meio do texto que vai sendo debitado e das datas fixadas no ecrã de cada vídeo, algo que se adensa mais quando nos começamos a questionar sobre quantas personagens centrais existem verdadeiramente, e que relacionamentos têm entre si.

A inovação de “Her Story” surge da enorme capacidade para repescar um formato de videojogo tentado mas falhado dos anos 1990, dando-lhe uma nova vida por meio de uma mescla poderosa entre os artifícios da linguagem do cinema e o poder algorítmico do texto interativo, criando assim um novo género de videojogo, totalmente capaz de nos envolver. Temos aqui o melhor do cinema, o seu intrínseco apelo ao voyeurismo, juntamente com o melhor da literatura, a desconstrução psicológica dos personagens. Do lado da interação, somos levados a acreditar numa limitada possibilidade de ação motivada pela sua superfície plástica, mas que ao entrar no jogo nos vamos apercebendo que é todo o seu contrário. A aparente simplicidade da interface serve apenas de filtro visual para um mundo altamente complexo e intrincado de possibilidades e escolhas, no qual nos cabe a nós encontrar o fio que tudo liga por meio do diálogo com o próprio sistema.

É deste diálogo que emana do sistema à medida que progredimos no jogo, que emerge o segundo elemento que me levou a escolher “Her Story”, o seu guião, ou a sua escrita. Toda a interface funciona em sintonia com os diálogos da personagem do jogo, que por sua vez respondem diretamente às palavras-chave pelas quais interagimos verdadeiramente com o sistema. A grande questão da escrita começa no imaginar do que cada pessoa procuraria numa base de dados policial, quando tentando desvendar um crime. Algo que se complexifica quando temos de pensar um desenho do texto de modo a garantir que as pessoas — procuram e encontram — os textos que dão sentido ao que estão a ser levadas a pensar. Este segundo nível assume forte complexidade porque o texto não é apresentado como um todo, nem tão pouco de forma linear, mas antes recortado em pequenos clips de video, que podem ir dos 5 segundos a um minuto. Ou seja, o guião tem de garantir que os jogadores irão procurar um conjunto de palavras centrais, que lhes irão permitir começar a descascar a fábula da narrativa, sem contudo forçar o jogador, mas ao mesmo tempo gratificando-o, dando conta de que está a progredir no caminho correto.

O criador Sam Barlow, designer e guionista de "Silent Hill: Shattered Memories" (2009), já tinha aí dado conta de todo o seu fascínio pela psicologia humana. Aqui vai ao âmago dos nossos processos de cognição, conseguindo manipular as nossas escolhas e antecipar não raras vezes as nossas conjecturas mentais, desmontando-as logo a seguir para assim nos lançar na dúvida constante. Quando pensamos que nos estamos a aproximar da verdade e jogamos tudo numa palavra-chave, um novo indício surge e fura toda a teorização que vínhamos desenvolvendo até ao momento. Se toda a progressão está escrita de forma soberba, o seu desenlace eleva toda a experiência, porque munido de um forte twist narrativo capaz de ainda assim manter um final totalmente em aberto, o que só por si, dá conta de toda a mestria de storytelling interativo que temos aqui patente.

Na sua componente mais plástica a obra não se socorre apenas da interface de base de dados, que diga-se está brilhantemente concebida com todo o detalhe visual e sonoro — até às fluorescentes que piscam, zunem e se reflectem num ecrã CRT — a dar conta dos anos 1990, mas centra-se essencialmente numa personagem que é interpretada por Viva Seifert, que não sendo atriz profissional, com um passado de ginasta olímpica, realiza um trabalho absolutamente impressionante. Se todo o sistema de jogo é inovador e o guião é brilhante, o todo só emerge porque quando colocado nas costas de Seifert, esta deslumbra. Poderíamos ser levados a pensar que ela está simplesmente a ser ela, e não existe um verdadeiro trabalho interpretativo, mas estaríamos a ser profundamente injustos, sendo algo que obrigatoriamente temos de descartar quando percebemos verdadeiramente a dimensão, ou dimensões, do personagem que Seifert está a interpretar.

O resultado final é uma obra original, que abre todo um novo género no mundo dos videojogos, e que não tendo a profundidade de agência de “Papers, Please” (2013) consegue ir além no campo da emocionalidade, o que não deixa de trazer à liça o velho debate entre os problemas e vantagens do grafismo vs. imagens reais.


Por fim, mas não menos impressionante, temos acesso a toda esta magnífica experiência por apenas cinco euros.

dezembro 16, 2015

O cérebro estético

Anjan Chatterjee é professor de neurologia na Universidade de Pennsylvania onde desenvolve investigação no campo recente da Neuroestética, um campo que procura dar conta do modo como terá surgido a arte, o que nos motivou e motiva para esta. Em "The Aesthetic Brain: How We Evolved to Desire Beauty and Enjoy Art" (2013) o autor lança-se ao problema central desta abordagem, grande interrogação: se tudo aquilo que somos hoje é fruto de um processo adaptativo de milénios em função da melhor condição de sobrevivência - selecção natural de Darwin - como é que surge a arte, algo que supostamente não tem um fim, nem utilidade?


Chatterjee dá conta da história dos estudos sobre o belo, sobre a importância do sexo na atractividade humana, assim como da paisagem, dá conta das abordagens empíricas e o seu choque com as abordagens filosóficas. Passa em resumo muito do que tem sido esta busca, para chegar ao seu objetivo que é propor uma nova abordagem explicativa sobre o fundamento da arte.

Assim parte das duas grandes teorias evolucionárias que procuram explicar de onde nos surge esta capacidade para apreciar e reconhecer o belo e como se enraizou tanto na nossa cognição: a arte como instinto, e a arte como subproduto. A primeira dá conta da arte como uma necessidade humana, como parte do nosso devir, afirmando que a arte evoluiu como uma adaptação natural às necessidades que fomos manifestando ao longo do tempo, transformando-se num instinto. A segunda defende que a arte poderá ter surgido como fruto de outras necessidades humanas, de forma um tanto aleatória, tendo-se encrostado nessa e permanecido.

Sobre a primeira Chatterjee dá conta dos estudos de Dutton que eu já aqui dei conta a propósito do livro “The Art Instinct” (2009). E que fundamentam a arte no processo de seleção sexual, algo corroborado por estudos empíricos universais, que dão conta do esforço envolvido no desenvolvimento artístico como um sinal, para o outro, dos talentos. A segunda é talvez a menos acarinhada porque assume a arte como um erro da natureza, fruto do acaso, e por isso mesmo também menos dada a uma teorização cabal.

Ora Chatterjee defende que nem a arte é um subproduto, mas que nem por isso é um instinto. Aliás, o trabalho de Dutton tinha sido baseado no trabalho em que Steven Pinker defendia a linguagem também como um instinto e também este vem sendo rebatido. Deste modo o que temos aqui configura-se desde já como um rebate ao inatismo, procurando demonstrar antes o lado evolutivo e adaptativo, funcionando na intersecção entre biologia e cultura.

Assim a proposta de uma terceira via interpretativa da arte surge a Chatterjee a partir da análise do canto de um pássaro (Munia ou Bengal Finch), que depois de cambiado de habitat, alterou profundamente o seu canto.  Ou seja, no habitat de origem o seu canto tinha como função alertar para os predadores, ou encontrar os amigos. No novo habitat estas pressões desapareceram, tendo deixado espaço, para que as suas capacidades de canto se desenvolvessem e tornassem mais complexas. Ou seja, nesta abordagem Chatterjee defende que depois de cumpridas as necessidades básicas - comida, segurança e sexo - resta-nos o ócio,  libertador das preocupações, stress e controlo, capaz de nos levar a dedicar tempo na maturação e complexificação daquilo que fazemos enquanto ação externa, ou expressiva.
“Art germinates instinctually and matures serendipitously. Its content is a serendipitous mixture born of time and place and culture and personality. Could it be any other way? Being deprived of a grand unifying instinctual theory of art is not a cause for concern. Instead, the diverse, local, and serendipitous nature of art is precisely why art can surprise us, enlighten us, force us to see the world differently, ground us, shake us, please us, anger us, bewilder us, and make believers of us.” (p. 185)
Esta teorização permite dar conta das duas primeiras teorias, porque junta o instinto e o subproduto. Dá ainda conta do modo como a escultura, a imagem e por sua vez as histórias surgiram numa fase tão tardia da nossa espécie, respondendo tanto à vontade artística como à contemplação estética. É uma boa explicação, mas não deixa de ter vários problemas, desde logo porque não deixamos de criar, ou de nos expressar, mesmo quando as necessidades básicas não estão cumpridas. É verdade que o artista só se torna evoluído com muitíssimo treino, e para chegar lá, precisa por um lado de ter as necessidades básicas saciadas, assim como precisa do reconhecimento da sua arte. Ninguém, salvo raras excepções com algum desvio patológico, investe uma vida no aperfeiçoamento de uma arte, se não tiver ninguém com quem a partilhar. Contudo e como o próprio autor nos diz, esta perspectiva é mais uma para nos ajudar a trilhar este caminho, não procura fechar o assunto.

dezembro 15, 2015

Janet Murray: agência dramática

O primeiro livro de Murray, "Hamlet on the Holodeck: The Future of Narrative in Cyberspace" (MIT Press, 1998), é umas das obras mais importantes do campo de estudos das narrativas interativas, capaz de dar conta de uma revolução que apenas despontava nessa altura, tocando em quase todas dimensões da área. Já o seu segundo livro, "Inventing the Medium"(MIT Press, 2011) é bastante menos conseguido, porque traz pouco de novo, demasiado colado a alguns conceitos ultrapassados, algo que se espelha um pouco neste pequeno vídeo da série Future of Storytelling.



O modo como Murray apresenta a agência, nomeadamente a dramática, parece quase dizer-nos que está presente na experiência de qualquer narrativa em qualquer meio. Ainda assim resolvi aqui dar conta do vídeo, pelos belíssimos exemplos que vão servindo de ilustração, mas essencialmente pela ideia central que fecha o filme, e que tem que ver com o propósito da agência, que Murray defende como estando na base da repetição que a interatividade proporciona. Ou seja, o facto de poder repetir escolhas e ações, e ver os diferentes resultados dessas escolhas, permite aos recetores diferentemente de num livro ou filme, aprender pela experiência, pela tentativa e erro.

Enquanto no romance ou filme preciso de ver vários trabalhos para encontrar múltiplas perspectivas sobre um mesmo tema, nos videjogos narrativos, posso ter acesso a essa multiplicidade toda num único artefacto. É uma abordagem interessante, e que acaba por dar conta da importância reflexiva do valor das escolhas numa narrativa, nomeadamente da importância das estruturas em árvore. Repetindo aqui o elogio à boa escolha da imagens de ilustração, friso que neste momento do vídeo, estas palavras são acompanhadas por imagens do, muito relevante para o tema, "Edge of Tomorrow" (2014).

"Janet Murray - Dramatic Agency" (2015)

dezembro 13, 2015

Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt"

A escolha de um jogo capaz de representar o melhor que se fez ao longo de todo um ano é impossível de realizar-se de modo objetivo, por isso aquilo que aqui apresento é como não poderia deixar de ser, subjetivo. Aquilo que é relevante para mim num videojogo não o é para outra pessoa, seja um jogador, um criador ou crítico. Cada um de nós tem abordagens e motivações distintas sobre o meio, logo os relevos que encontramos são também distintos. No meu caso, a principal razão para escolher “The Witcher 3: Wild Hunt” (W3), como o videojogo AAA de 2015, assenta na sua contribuição para a inovação formal do meio, destacada pela sua escrita interativa e mundo aberto.

1. Modo de Jogo
O primeiro elemento a considerar aqui é o modo de jogo. Quando entramos em “W3”, somos convidados a escolher um de 4 modos — Just the Story!"; "Story and Sword!"; "Blood and Broken Bones!"; "Death March!". Pode parecer apenas mais um tradicional sistema de escolha entre fácil e difícil, mas é bem mais do que isso, a escolha entre os dois extremos comporta verdadeiramente dois modos distintos de aceder ao universo de W3. Fundamentalmente o primeiro modo centra a nossa experiência na história, enquanto o último centra a nossa experiência no jogo. Como sabemos os videojogos são constituídos a partir destes dois ingredientes, a história e o jogo que se entrelaçam para criar uma experiência.

Assim ao jogarem no primeiro modo todas as batalhas, puzzles espaciais, e bosses são desenhados para encaixar no ritmo progressivo de uma história. A nossa passagem por estes raramente nos obriga a voltar a repetir sequências, porque dificilmente morremos. Exceptuando claro quando entramos em áreas em que temos “experiência” insuficiente, e aí somos totalmente abalroados, uma componente de extrema relevância na manutenção do foco num mundo aberto. Por outro lado, torna secundário toda a componente de poções, óleos, bombas e signos, permitindo que se jogue todo o jogo sem preparar qualquer poção, nem nos preocuparmos muito com as capacidades específicas de cada signo. O foco na manutenção e atualização da armadura e armas é suficiente. Deste modo consegue-se concentrar toda a atenção do jogador na história de Wild Hunt com Ciri, fazê-lo focar-se nos personagens, e jogar muito mais com as decisões que se vão tomando. Esta experiência do jogo, quase sem morrer, perfaz uma viagem de mais de 50 horas (apenas a história principal).

Por outro lado no quarto modo, todas as sequências de ação assumem um lugar central no jogo. É impossível ultrapassar cada batalha, ou eliminar monstros no terreno, sem primeiro se focar nas suas fragilidades, para as quais é preciso desenvolver as poções correctas, e desenhar a melhor estratégia de signos para conseguir ultrapassar o obstáculo. Neste modo, mais do que a história de Wild Hunt ou Ciri, estamos focados em ser um Witcher (um caçador de monstros), temos de aprender a arte, das poções e espada, para conseguir progredir no jogo. Deste modo, se o jogador não passar à frente as partes narrativas, poderá estar a apontar para uma história principal com cerca de 100 horas, dificilmente se poderá fazer em menos.

Existe muita discussão sobre qual o melhor modo, mas mais uma vez volto à subjetividade que referi no início deste texto, não existe um modo melhor, já que existem jogadores diferentes. Não podemos, como se faz nestas discussões, esquecer que falamos de uma obra interativa, não de um filme ou livro. A obra deve trabalhar com o interator, e não forçar a experiência que o designer imaginou. Se acredito que o aqui temos representa uma evolução séria e refletida desta adaptabilidade à participação do jogador no mundo, acredito mais ainda que dentro de alguns anos deixaremos de precisar de fazer estas escolhas à entrada de cada jogo. Os jogos irão interpretar a forma como jogamos, e estruturar-se em função daquilo que estamos a fazer no mundo de jogo. Porque na verdade, apesar de podermos apontar aqui variações no desenho da jogabilidade, se as virmos a funcionar em conjunto com as acções que cada jogador está disposto a realizar, poderemos ver como a experiências que se retiram acabam por no final se aproximar para ambos os tipos de jogadores, congregando-os em redor do mesmo do jogo. Construir uma poção ou uma bomba pode garantir uma enorme gratificação para alguns, mas não lhes dá mais conhecimento sobre a profissão do personagem, já que tudo não passa de metáforas de representação muito distantes do real. E assim, se para uns ajuda a criar a ilusão de proximidade, o tornar-se no personagem, para outros funciona como uma desconexão da história, já que as acções se configuram como meras tarefas sem apelo narrativo.


2. O género e a consequencialidade
W3 é um videojogo que vai além dos rótulos existentes, não existindo ainda uma forma única capaz de categorizar o tipo de experiência aqui em questão, precisando nós de recorrer a 4 etiquetas para definir o género: Ação, Role-Playing Game, Terceira-pessoa e Mundo Aberto.
Em termos de género W3 faz parte do grande processo evolutivo da forma plástica dos videojogos. A capacidade para mesclar jogo e história esteve desde o início muito mais ao alcance do texto do que do audiovisual. A chamada ficção interativa dos anos 1970 abriu todo um mundo de possibilidades à integração do jogo de papeis dramáticos nos videojogos, que por trabalhar apenas elementos de texto, facilmente manipuláveis por algoritmos, conseguiu atingir picos de interação com o interator, que o vídeo interativo por essa altura nem sequer imaginava. Com a evolução tecnológica avançámos imenso na capacidade expressiva do meio, nomeadamente com o surgimento do CGI 3D, que permitiu começar a manipular a plástica visual com o mesmo nível de detalhe que manipulávamos palavras e letras de um texto.

Existem várias obras que são dignas de menção nesta tentativa de fusão entre RPG (a participação narrativa) e Ação (manipulação e navegação virtual) de entre os quais “Fallout 3” (F3) e a série “Mass Effect” (ME), ainda que tanto F3 como ME1 mantenham uma impressão RPG muito forte, o que se alterou bastante no tomo seguinte da série,  ME2 o mais equilibrado, resvalando já demais para a ação em ME3. Ao contrário destes, temos por exemplo “Walking Dead” capaz de nos levar a participar na história, mas à custa da nossa imersão no mundo (baixa manipulação e navegação), ficando ainda muito colado ao tipo de experiência criada pelos textos interativos. Por outro lado temos “The Last of Us” capaz de criar um nível de manipulação e navegação do mundo que funciona em perfeita sintonia com a história que vai sendo relatada, sendo no entanto totalmente incapaz de se abrir à nossa participação, porque limita a nossa interação à Plástica (manipulação e navegação), forçando o linear no Enredo.
Diagrama da narrativa interativa nos videojogos

Deste modo, W3 é uma espécie de sucessor de F3 e ME2, mas mais do que isso, uma coroação desta abordagem artística à linguagem do meio, capaz de nos oferecer um mundo história audiovisual que reage às ações do jogador, criando uma experiência de profunda consequencialidade. Isto torna-se possível por dois componentes fundamentais: a narrativa interativa e o mundo aberto.


3. Consequencialidade: Narrativa interativa
O resultado do trabalho narrativo efetuado em W3 é tão impressionante, que a meio do jogo dediquei-lhe um texto, que criei a partir de uma entrevista com um dos escritores principais da obra. Se estiverem interessados nesta componente do jogo, recomendo a leitura e a visualização da entrevista. Focar-me-ei aqui apenas naquilo que ainda não disse nesse texto.

A estrutura da história principal resume-se nos três actos clássicos, para os quais trabalham dezenas de quests principais, mas que funcionam em plena sintonia com as quests secundárias, e em parte tornando mesmo quase obrigatório fazer muitas das secundárias, para se ganhar o aprofundamento completo da história. Ou seja, as ações secundárias, não são aquilo a que nos habituámos em ME2 ou F3, são mesmo dotadas de consequencialidade na narrativa principal, nomeadamente na forma como conseguimos compreender e sentir todo aquele mundo. Em termos de história, subscrevo a descrição do Aníbal Gonçalves no IGN, de que temos aqui por um lado o poder da fantasia de "The Lord of the Rings" a funcionar com a força da intriga humana e familiar de "Game of Thrones", o que torna W3 num dos jogos mais maduros em termos de história, na linha "The Last of Us". Apesar da abordagem interativa, W3 não deixa de seguir o modelo dramático em 3 atos, no sentido de potenciar ao máximo a experiência emocional dos jogadores, e que passo a elencar:
[Prólogo: Introdução ao mundo pelo sonho

Ato 1: Iniciamos a nossa busca por Ciri (a jovem feiticeira, imensamente poderosa, treinada por Geralt, o nosso witcher/bruxo), que nos vai permitir conhecer quase todos os personagens do jogo, assim como ficar a conhecer quase todo o território [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 2: Encontrado o rasto final de Ciri, teremos de reunir todos os nossos amigos de viagem do Ato I, para impedir que Ciri seja levada [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 3: Aqui chegados, é necessário encontrar uma solução final para dar conta de quem pretende raptar Ciri [cerca de 12 horas no Modo História].

Epílogo: Erradicação da superstição]
O nível de detalhe da escrita da história - composta de 450,000 palavras, o equivalente a 4 romances - é fundamental na capacidade de resposta do jogo. Ao longo das 50 horas de jogo encontramos milhares de diálogos, na sua maioria dotados de escolhas que geram caminhos narrativos específicos, no sentido de atender à participação concreta do jogador. Por aqui desenvolve-se um sentido de conversação plena com a obra, em que apesar de muito ser desenhado e delimitado pelos criadores, muitas são as possibilidades que se abrem na nossa frente para decidir o que fazer, para realizar escolhas que se aproximam do modo — como eu em concreto vejo o mundo, como eu na especificidade acredito que as pessoas se devem relacionar, colaborar e cooperar. W3 é um mundo imaginado por um colectivo de criadores, mas cabe-me a mim, no momento da minha experiência, colaborar com este colectivo na criação daquele universo.
A experiência final que retiro de ter passado 50 horas naquele mundo, não é de mero relato, mas de ter vivido, porque contribuí para o modo como aquele relato se concretizou e fechou. Fui eu que resolvi salvar uns, deixar à sua sorte outros, assim como matar outros; fui eu que decidi romancear com uma e não com outra; fui eu que decidi destronar uns e coroar outros; fui eu que decidi salvar o planeta ou em sua vez proteger aqueles que me eram mais queridos. Isto é participação narrativa, é colaboração autoral na experiência que se desenvolve. Isto é fazer acontecer, e não simplesmente aceder ao que já aconteceu. Isto é a linguagem dos videojogos, agir no presente, em vez de simplesmente testemunhar o passado. Mais do que aprender com os outros que já viveram experiências, aprendemos fazendo, assumindo as responsabilidades de cada uma das nossas ações.
A tentativa falhada de criar uma moral difusa em "Mass Effect"

Se ME2 tinha todo um sistema de impacto das escolhas — Renegade/Paragon — que procurava tornar difusa a moralidade das nossas ações, e assim impossibilitar o jogar estratégico para a construção de um ideal de personagem, W3 simplesmente opta por eliminar qualquer feedback diagramático da moral. Esse feedback por muito difuso que seja, será sempre motivo de manipulação por parte do jogador. Em W3 não existe uma árvore moral das nossas opções, nem sequer somos confrontados com feedback bruto a cada uma das nossas escolhas. Porque mais do que escolher e decidir, é do diálogo que emerge a especificidade da nossa experiência, tal como no mundo real — posso optar por mentir agora, ser honesto daqui a pouco, manipular as crenças das pessoas, ou simplesmente dar-lhes o que elas pedem. Como seres humanos, somos tudo menos binários, somos um caos moral que vive do acaso do contexto em que nos encontramos em cada momento.


4. Consequencialidade: Mundo aberto
Li várias discussões que procuravam pôr em causa o interesse do desenho de W3 em mundo aberto, dando conta que uma jogabilidade mais linearizada, poderia ser mais relevante para os jogadores, nomeadamente porque evitaria a dispersão, mas também porque garantiria um mundo mais coeso e detalhado, já que os criadores não teriam de investir massivamente na criação de um mundo que muito de nós não verão. Ora, parece-me que tudo isto é um contrassenso, já que joga em desfavor do meio, nomeadamente da sua expressividade.
Voltando ao que falei acima, sobre os três grandes domínios da interatividade de um videojogo - manipulação, navegação e participação - só o mundo aberto pode permitir os três. Um jogo como “The Last of Us”, que funciona linearmente, seguindo a abordagem espacial de túnel de storytelling, permite belíssimos níveis de manipulação e navegação, mas impede a participação. Não falo aqui das escolhas e decisões nas árvores de diálogos, mas das escolhas e decisões no espaço. Ou seja, o mundo aberto não se vem tornando standard por mero capricho, ou por tentar competir no marketing de quem faz o maior mundo como se acusa, ele é um elemento vital. Veja-se um dos casos mais emblemáticos na demonstração da participação espacial, o “Dishonored” (2012), em que a navegação e manipulação do espaço é aberta obrigando-nos a tomar decisões, que por sua vez produzem consequencialidade ao nível da jogabilidade, podendo mesmo resultar em alterações narrativas. Isto foi também explorado mais recentemente na série “Assassin’s Creed”, que começou por ter um mundo aberto apenas nas áreas jogáveis, sem efeito prático nos momentos de cutscene, e mais recentemente em “Assassin's Creed: Unity” (2014) apesar de continuar de portas fechadas à participação especificamente narrativa (com os diálogos), abriu-se a este modo participativo por via do espaço no momento de cada grande assassinato.

Sendo a participação o mais importante no design de mundos abertos, temos ainda o factor de imersão por via da credibilidade. Poder navegar por mapas espaciais sem impedimento, escolhendo as quests que se fazem a meu bel-prazer e não por imposição linear, operada pelos autores do jogo, garante para além da minha participação no desenrolar da progressão da experiência, a credibilidade da minha ação, que por sua vez oferece a credibilidade no universo de jogo, e assim a imersão. É verdade que por vezes entramos em áreas adjacentes em que os inimigos nos matam com um único golpe, porque estão muito acima da minha experiência, mas isso faz parte do design de mundos abertos, e na vejo isso como um problema para a experiência, apenas diz ao jogador que é melhor não ir já por ali, não o impedindo de tentar ir se assim o desejar.

Dou o exemplo da primeira travessia para Skellige que é suposta só acontecer depois de várias quests principais em Novigrad, e consequentemente elevação do XP, mas que eu de tanto insistir acabei por conseguir realizar mesmo não tendo os supostos XP necessários. Claro que notei no fim de passar as duas sequências, que existia ali um clímax narrativo a que eu tinha chegado antes do tempo, mas na verdade foi para mim muito interessante ter lá chegado antes, já que a primeira passagem por Novigrad é talvez dos momentos menos conseguidos em todo jogo, pela sua calma e quests demasiada tarefeiras. Ou seja, o mundo aberto permitiu-me criar toda uma experiência em função da minha volição no jogo, e não do que me ditam os seus criadores.
Numa outra situação, menos relevante mas contudo impactante, fruto do mundo aberto e persistente, abandonei um barco meio partido por sereias voadoras junto a uma ilha pequena numa determinada fase do jogo, tendo depois, muito mais tarde e por outras razões, voltado a passar por esse local, e encontrado esse mesmo barco, identificado porque partido tal como o tinha deixado, criando a estranha impressão "é o meu barco", uma sensação de posse, mais do que de um barco, do território de jogo, o que só por si funciona como um poderoso argumento de credibilidade, diria quase um afrodisíaco de imersão.

É deste conjunto, participação narrativa e espacial, que emerge aquilo que consideramos ser o elemento fundamental da expressividade dos videojogos, a agência, ou consequencialidade. Ou seja, o sentimento de que a minha atuação sobre aquela obra é consequente, de que eu, enquanto indivíduo sou levado em consideração. É isto que andamos há 30 anos a tentar desenvolver no campo dos jogos narrativos, e é isto que W3 faz bem, não querendo dizer que atingimos o último estágio deste processo, mas estamos cada vez mais perto de poder dizer "missão cumprida".

O menos bom do jogo anda à volta da arte visual, principalmente a animação. W3 tem bons artistas visuais, tecnicamente muito dotados, mas não tão bons artisticamente como por exemplo a equipa de “Assassin’s Creed: Unity”. Já os seus animadores, por culpa própria ou das equipas de programação, raramente conseguem brilhar. Não podendo de forma alguma dizer que é mau, longe de mim tal ideia, o trabalho é muito bom, só não consegue chegar ao nível excepcional que apresenta a escrita e o design de jogo. Contudo, esta equipa merece todo o nosso respeito, tanto pelo trabalho brilhante que apresenta como pela forma humilde como o faz, veja-se o texto abaixo que vem dentro da caixa do jogo, inspirador.
Nota de agradecimento da equipa CD Projekt que vem no interior da caixa de W3


Saber mais:
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa
Videojogos de 2015.

dezembro 06, 2015

"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa

Estou a 2/3 da história principal de “The Witcher 3: Wild Hunt”, mas posso dizer desde que já que estou apaixonado pela sua escrita, não apenas pela profundidade psicológica imprimida à história, mas pelo seu discurso, a forma ou o "como", a história está a ser contada, é impressionante. Jogando Witcher 3 podemos sentir como todo o universo narrativo nos videojogos evoluiu ao longo dos últimos 20 anos, não apenas a sua construção, mas também nas expectativas que temos face a estes. Witcher 3 não está apenas interessado em criar jogo ou interatividade, em criar uma relação sensorial, existe uma vontade enraizada na equipa de criadores de desenvolver algo capaz de tocar o imaginário semântico dos jogadores, de criar nestes, novas formas de ver o mundo, nomeadamente de aprender mais sobre o modo como nos relacionamos enquanto espécie. Witcher 3 pode até partir de um universo de pura fantasia, mas fá-lo com profundas preocupações humanas, e foi por isso que procurei saber mais sobre quem estava por detrás de tudo isto, tendo encontrado na rede uma belíssima entrevista com Jakub Szamałek, um dos escritores principais de Witcher 3, e da qual darei conta nas próximas linhas.



Antes de entrar nas questões relacionadas com o jogo em si, queria dar conta do contexto, que se por um lado parece estranho que um jogo desta dimensão, em termos financeiros (o custo de produção rondou os 75 milhões de dólares), surja num país do leste da Europa, a Polónia, é provável que isso seja aquilo que justifica que tenhamos aqui algo bastante diferente, com um posicionamento que vai buscar inspiração fora de Hollywood, procurando antes beber nos clássicos da literatura europeia.
We show people in Poland that it’s a serious business, that you can produce works of culture that are a hit globally… this is something that up until now has been very difficult, there are a lot of books and films that are written or produced in Eastern Europe but they usually don’t become terribly popular in the west. I think video games are the only medium in which we have been able to produce something that has been appreciated on a global scale. It’s very satisfying.”
Mas se isto é possível a partir da Polónia não é por acaso, e as suas razões devem servir na reflexão da indústria portuguesa de videojogos, não apenas esta, mas de toda a nossa indústria criativa. Porque as razões não passam pelo clima, como ainda há pouco tempo se discutia numa entrevista da GameReactor a José Teixeira que trabalhou nos Efeitos Visuais de Witcher 3, embora possa ter a sua influência, mas assenta essencialmente na formação e cultura da massa cinzenta que suporta estas indústrias. Veja-se o caso do responsável pela escrita do jogo,
“Jakub is a former Oxbridge student with a PhD in ‘Ancient Mediterranean and Near Eastern Studies and Archaeology’. If that doesn’t sound impressive enough, he has authored two (soon to be three I hear) critically acclaimed novels, while also writing for developer CD Projekt Red on a small project called The Witcher 3: Wild Hunt. With all of those credentials under his belt you could suppose that he’d be doing something like lecturing at universities or researching the origins of mankind. The reality is that he predominantly writes for video games — a pretty great profession if you ask me.”
Desta frase ressaltam dois elementos de grande relevância para o caso português: a necessidade de formação; e sua valorização/aceitação. Ou seja, trabalhar nas indústrias criativas em 2015 requer das mais altas competências algumas vez exigidas por alguma indústria, além da investigação científica. Não basta jogar muitos jogos, consumir muito produto criativo, embora ajude, assim como não basta paixão e querer fazer, embora seja fundamental. É necessária toda uma estrutura de base capaz de potenciar, catapultar, tudo o que se consome juntamente com toda a vontade de fazer, para se poder ir verdadeiramente além. Não nos podemos esquecer que estamos competir a um nível global, e não com os nossos vizinhos de bairro.

Temos que nos deixar de frases bacocas como — “Portugal tem licenciados a mais” ou “somos um país de Drs” — fundamentadas apenas no preconceito, sem qualquer suporte empírico, e que apenas servem para nos atirar mais para o fundo no cenário global. Em 2015 já passou tempo suficiente para termos uma democracia amadurecida, para nos deixarmos de tiques salazarentos, e assumir que para enfrentar o mundo em que vivemos, o ponto de partida começa numa simples licenciatura. Que se queremos verdadeiramente enveredar pelo desenvolvimento de indústrias criativas como solução para a nossa falta de matérias primas, teremos de investir na educação, não apenas financeiramente, mas essencialmente em vontade de aprender, de aprofundar o real, ser capaz de abstrair mais e mais camadas da sua estrutura constituinte.

Dito isto, que me parece relevante, e não é novo para quem segue este blog, tenho vindo a falar disto com outros exemplos, como a clássica Escandinávia ou a Coreia do Sul e as suas indústrias electrónica e automóvel (2011, 2013, 2013) ou até no caso por exemplo da artista nacional Capicua. A Polónia é apenas mais um exemplo, é verdade que é um país muito maior que o nosso, podíamos alegar fatores de escala, mas estaríamos apenas a iludir-nos, já que no caso da indústria de videojogos, a escala nunca pôde depender do país de origem. Verdade que um país maior gera maior fricção criativa, mas cabe-nos a nós encontrar a melhor forma de potenciar essa fricção, por exemplo tendo menos grandes cidades, concentrando mais os esforços nas que temos.

E agora o sumo da entrevista da Forerunner a Jakub Szamałek. Podem ver o vídeo realizado ou ler desde já os pontos que me pareceram mais relevantes na conversa, com algumas considerações sobre as mesmas.

Entrevista com Jakub Szamałek, escritor principal de Witcher 3


Sobre a complexidade da escrita
A escrita nos jogos é completamente diferente da escrita para um livro, desde logo por duas razões: a repetição e a avaliação. Ou seja, os personagens podem interagir repetidamente com o jogador, gerando repetição de um diálogo ou monólogo que pode perder todo o seu efeito dramático, enquanto num “book you don’t have to worry about how to make a repetitive conversation interesting”. Por outro lado, como o texto segue em estruturas em árvore, é necessário testar todos os caminhos possíveis e analisar se os seus elementos constituintes continuam a fazer sentido depois das múltiplas interações permitidas.

Sobre a agência e criação de personagens credíveis em Witcher 3
Os personagens com quem interagimos, não são adereços do mundo de jogo, todos eles possuem os seus objetivos e motivações intrínsecas, o que faz com que se tornem sujeitos, vão além da caracterização gráfica. O objetivo, como descreve Jakub passa por eliminar aquela sensação estranha que temos muitas vezes nos jogos, de que os personagens estão ali apenas para debitar informação, de forma a realizar a progressão da narrativa.

Acaba sendo desta vontade dos criadores que emana uma outra característica menos positiva, que por vezes surge mais acentuada: a constante necessidade de dar algo em troca de algo. Ou seja, sempre que vamos falar com alguém que pode ter algo que nos interessa, já sabemos que vamos ter de proceder a uma troca de favores, o que se torna em si repetitivo do ponto de vista da interação e escrita. Contudo, nem sempre é visível este efeito, já que o guião não se limita a este ciclo de interação com o jogador. Ou seja, existe desde logo uma preocupação de desenhar as trocas por via de verdadeiras necessidades e preocupações dos personagens, mas o que garante a envolvência assenta no modo como os personagens tomam conta da relação connosco e procuram, em diversos ciclos interativos, ganhar a nossa confiança e obter de nós o que não estávamos inicialmente preparados para dar. No fundo temos uma escrita profundamente entrosada graças ao desenho de ciclos de conversação, dotados de acessos participativos ou de interação pelo jogador, em que as nossas escolhas no diálogo e ações vão influenciando os personagens e a sua relação connosco, servindo assim um aprofundamento da nossa relação com estes, e por sua vez com todo o universo de jogo. Falamos essencialmente de agência, da consequencialidade da nossa presença naquele mundo.
“It’s very gratifying to see how people get invested in the game, the other day I saw I giant thread on Reddit about a quest that I wrote and people were discussing what they did and why they did it… something that I think is unique to video games is that people identify more strongly with characters because they assume the role of that character while they are playing. The decisions that you face in a game touch you more profoundly than choices you read about in a book for instance; in a video game it’s more personal to you.”
O mais interessante que Jakub nos diz sobre tudo isto é o quão barato é na verdade construir todo este sentimento de agência, tudo aquilo que os jogadores verdadeiramente procuram extrair de um jogo está ao alcance de uma simples caneta e papel. Basta saber ativar a imaginação dos jogadores,  o que claramente requer, como diz Jakub, “competência na escrita”, e que se pode ver em abundância em Witcher 3, mas que ainda se vai vendo pouco no mundo dos videojogos, o que facilmente se percebe, já que uma grande parte das pessoas que está na indústria domina muito pouco a componente da escrita. Aliás basta recordar os tempos áureos dos videojogos, que o entrevistador aqui relembra, com Carmack a lançar uma das mais ridículas frases de sempre do meio, mas que tanto sentido fazia e continuou a fazer durante muitos anos depois: “Story in a game is like story in a porn movie. It’s expected to be there, but it’s not that important”. Como tudo mudou, e em tão pouco tempo.



Sobre a não-linearidade e multilinearidade
Desde logo Witcher 3 apresenta um problema que poucos outros videojogos ou projetos de narrativa interativa apresentaram até agora, uma gigantesca dimensão de estrutura de eventos, algo provavelmente apenas comparável com as séries de televisão e telenovelas. A estrutura central, a chamada “main quest”, é enorme, mas as “secondary quests”, que se revelam aqui ao contrário da grande maioria dos outros jogos, partes integrantes da narrativa central, ao serem dotadas de consequencialidade bidireccional, tornam todo o jogo insanamente gigante. Como diz Jakub, o desenho dos diálogos acaba por dar origem a “massive flowcharts e branching trees”, o que eleva a complexidade do que está a ser feito em Witcher 3 a um patamar que vai muito além da mera boa escrita, sim tem de ser boa, mas tem de existir todo um trabalho de lógica e racionalidade na gestão do sistema que dá estrutura a tudo o que vemos no ecrã. Ou seja, não se trata de um simples trabalho imaginativo, tudo isto assume uma complexidade de abstracionamento que exige dos criadores elevadas competências.

Não deixa de me impressionar a quantidade de personagens e diálogos que se podem encontrar ao longo do mundo de jogo fora da narrativa principal, mas que se interligam perfeitamente com esta, mais ainda quando percebemos que por não serem centrais, serão acedidos por uma minoria de jogadores, e no entanto não deixam de apresentar um enorme cuidado no seu desenho.



Sobre a história e tema
Como disse na abertura deste texto, e apesar da entrevista com Jakub versar mais sobre o discurso e forma, Witcher 3 não deixa de nos impressionar profundamente em termos de história, nomeadamente nos vários temas chamados à discussão, mais ainda quando sabemos que o território de Witcher 3 não deveria ir além da fantasia. Assim temos que Witcher 3 é muito mais do que bruxos e monstros, poções e alquimias, aliás arrisco mesmo a dizer que a contrário da restante fantasia, tudo isso é aqui apenas decorativo. O cerne de Witcher 3 acaba por emergir das pequenas histórias profundamente humanas que vamos desvelando ao longo da nossa viagem pelo seu território fantástico. Ainda tenho de finalizar o jogo para chegar à sua essência, assim espero, mas encontrar e interagir ao longo destes 2/3 com — personagens vítimas de violência doméstica, famílias destroçadas pelos efeitos da guerra, abusos de poder, suicídios por amor, fanatismos religiosos, abortos espontâneos ou discriminação por homosexualidade — tudo tratado com imenso cuidado, detalhe e enorme credibilidade narrativa é para além de inovador, profundamente inspirador no alimentar do sonho de tudo aquilo que este meio ainda tem para nos oferecer.


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Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt",  VI, 2015

dezembro 05, 2015

Os metavideojogos

Mais um trabalho brilhante de William Pugh, co-criador de “The Stanley Parable” (2013) (sobre o qual teci algumas reflexões para a Eurogamer). Ainda não tive oportunidade de jogar “The Beginner’s Guide” (2015) do segundo co-criador de “The Stanley Parable”, Davey Wreden, mas se for pelo menos tão bom como este, quer dizer que os videojogos estão de parabéns pela maturidade que conseguiram atingir, que tão bem se espelha na criatividade por detrás de toda esta metacomunicação.




O título, Dr. Langeskov, The Tiger and The Terribly Cursed Emerald: A Whirlwind Heist é uma clara homenagem a “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (1964) de Kubrick, procurando de certo modo emular a satirização de um momento de tensão, não com a relevância do lançamento de uma guerra nuclear, mas não menos emocionante para todos aqueles que jogam e criam videojogos.

A jogabilidade está reduzida à típica “walking simulation” envolvida, mais uma vez, por uma voz em off que “dialoga” connosco, recorrendo a um texto belissimamente bem escrito, capaz de criar uma das experiências mais cómicas dos videojogos.

Não avançarei muito mais, correndo o risco de revelar em excesso, o jogo tem apenas 20 minutos, mas é gratuito, podendo ser jogado o Steam.